Tem se verificado nos últimos tempos um retrocesso no Direito Penal de nosso país, com a tentativa por parte de alguns órgãos institucionais de servir-se da Justiça como instrumento para a cobrança de tributos. Como já disse a respeito do assunto um ilustre Juiz Federal, em voto proferido no âmbito do Tribunal Federal da Quarta Região (Apelação Criminal n 95.04.06385-3/RS), esta truculência a Idade Média deveria ter sepultado com a vitória de Robin Hood sobre o nefasto Príncipe João. Ao magistrado não fica bem o papel de agente do Fisco, a ameaçar com o cárcere aquele que sonhou investir em atividade produtiva e não logrou êxito.
Ao que parece, quem assim atua não percebe que tal postura apenas alimenta a demagogia graciosa de governantes que, na tentativa de explorar a repressividade ignorante das maiorias mal-informadas, vivem a dizer que "lugar de sonegador é na cadeia" para gáudio da truculência fiscal.
Não se pretende aqui justificar a conduta daqueles que, com a evidente intenção de suprimir ou reduzir tributo, omitem informações, prestam declarações falsas, falsificam notas fiscais, falsificam documentos, livros, etc. Tais condutas, porque encerram a evidente intenção de lesar o fisco, merecem a pronta repressão por parte do legislador e dos operadores do direito. Sem se descuidar, no entanto, do direito ao devido processo legal e à ampla defesa, garantidos pela Constituição a todos os cidadãos, em quaisquer circunstâncias.
Não obstante, há que se estabelecer a diferença entre o contribuinte que deixa de pagar o tributo devido, mediante a prática das mencionadas condutas ilícitas, daquele que deixou de pagar o tributo pela absoluta impossibilidade de fazê-lo, seja em razão de dificuldades financeiras, seja porque duvida da legitimidade do tributo contra si lançado.
No primeiro caso, o da inadimplência por impossibilidade
financeira, que usualmente ocorre em relação aos
chamados "tributos descontados na fonte", entre os quais
o IPI, o Imposto de Renda Retido na Fonte e as Contribuições
ao INSS, não parece razoável que tal contribuinte
deva ser encarcerado, como um criminoso qualquer, como atualmente
está se pretendendo.
A quem não conheça a intimidade de
uma empresa, pode causar forte impressão o quadro que ora
se pinta de um empresário desonesto a locupletar-se do
"desconto", por exemplo, o que é "efetuado"
no salário do empregado. Contudo, tal figura não
ocupa espaço na realidade uma vez que a imposição
da multa sobre o débito já corrigido debelou de
vez a antiga e nefasta prática de eximir-se a empresa de
recolher o débito para auferir vantagens no mercado de
capitais.
Não se negue que o Estado necessita de imensos
recursos para implementar os objetivos de desenvolvimento e bem-estar
social plasmados como princípios em nossa Carta Magna.
E sabe-se, segundo estudos dos órgãos fiscais, que
é alta a taxa de inadimplência fiscal em nosso país.
No entanto, não é colocando o contribuinte "na
cadeia", como se pretende, que se resolverá o alegado
problema da inadimplência tributária. Justiça
Fiscal não se faz com terrorismo.
Também como já afirmou um Ilustre Desembargador
Federal da 2ª Região, em recente voto de "habeas
corpus", a Justiça não é instituição
de sadismo e o banco dos réus não é instrumento
de tortura. O processo penal não pode servir para coagir
o contribuinte a pagar tributos, pena de desfiguração
das próprias instituições, uma vez que o
Ministério Público não é cobrador
de impostos e a Justiça não é instrumento
desta cobrança coativa.
Menos ainda quando a constitucionalidade ou legalidade
da cobrança tributária está posta sob questionamento
administrativo. Nestas condições, ou seja, sem a
regular e definitiva constituição do respectivo
crédito tributário, é totalmente ilegítimo
instaurar-se contra o contribuinte eventual ação
penal sob a acusação da prática de alegados
crimes contra a ordem tributária.
Como se sabe, o nascimento da obrigação
tributária não produz, desde logo, a obrigatoriedade
de pagar, uma vez que ela ainda não é exigível.
A exigibilidade, no direito tributário, se acrescenta à
obrigação por meio de um "procedimento administrativo",
de competência exclusiva da Administração
Pública, que tem o poder-dever de realizá-lo, dando-se
a esse ato o nome de lançamento.
Não são poucos os casos em que o Fisco
exige o pagamento de "tributos" que ao final são
declarados inconstitucionais. A título de exemplo, lembre-se
que recentemente foram declarados inconstitucionais a Contribuição
Previdenciária sobre remuneração a administradores
e autônomos; o FINSOCIAL; o PIS sobre Receita Bruta; a incidência
da TRD a título de correção monetária;
a incidência retroativa da TRD com "juros de mora"
(decisões do próprio Conselho de Contribuintes)
etc.
Em não havendo crédito tributário
exigível não se pode imputar ao contribuinte pena
por "deixar de recolher" obrigação que
a própria lei considera suspensa. "Época própria",
no sentido das leis penais tributárias, é o momento
em que o crédito torna-se exigível. Como deixar
de recolher aquilo que sequer existe? E como se falar em "época
própria" antes da definitiva constituição
do crédito?
Há uma evidente antinomia entre o disposto
na Lei 8.212, art. 95-d, e na Lei 8.137, art. 2-II (leis penais
que cuidam da simples inadimplência), e os dispositivos
constitucionais (art. 5., LV) e as normas gerais de direito tributário
(CTN, art. 145-I), uma vez que estas últimas asseguram
o contraditório e amplo direito de defesa no procedimento
de constituição do crédito tributário
ao mesmo tempo em que as leis penais definem como crime o simples
"deixar de recolher" sem a definitiva constituição
do crédito.
Assim, enquanto não decidida pela instância
administrativa ou judicial acerca da exigibilidade do tributo
pretendido, e posto em discussão, não pode ser instaurada
a instância penal, pena de se estar condenando a pessoa
por crime impossível, conforme definição
contida no art. 17, do Código Penal.
Recentemente, talvez com a intenção
de afastar a controvérsia em torno da questão sob
análise, introduziu-se na legislação fiscal
dispositivo proibindo ao órgão fazendário
de expedir "representação fiscal para fins
penais" para o Ministério Público, antes de
decisão final na esfera administrativa acerca da exigência
do crédito fiscal correspondente. A norma está contida
no art. 83, da Lei 9.430, de 27/12/96.
A nosso ver, se realmente a intenção
foi deixar evidenciado que o contribuinte não pode sofrer
sanções de ordem penal, sem que o crédito
tributário esteja definitivamente constituído, a
redação do dispositivo é defeituosa e não
muito clara. Da forma como foi redigido, o dispositivo deu margem
para que o Ministério Público alegasse que nenhuma
Lei poderia lhe tolher a sua atividade institucional, prevista
no art. 129, VIII, da Constituição.
No entanto, não se trata de impedir que o
Ministério Público exerça sua função
institucional. Cuida-se tão somente de conjugar a faculdade
contida no citado art. 129, VIII, da Constituição,
com as demais normas constantes na mesma Carta e do Sistema, que
impossibilitam a aplicação de qualquer sanção
contra o contribuinte em relação a crédito
tributário cuja exigibilidade esteja suspensa, pendente
de questão prejudicial. Como já ressaltado, se o
crédito sequer existe, uma vez que está suspensa
a exigibilidade, não pode se cogitar em delito por não
recolhimento de tributo "descontado".
Por estas razões, é de se concluir
pela invalidade de qualquer representação ou abertura
de inquérito policial, assim como eventual ação
penal intentada contra o contribuinte em relação
a pretenso crédito constante de processo administrativo
fiscal ainda não findo (ou, mais grave ainda, inexistente),
uma vez que, não existindo crédito exigível,
nenhuma sanção pode ser imposta ao contribuinte
ou a seus administradores, pelo não recolhimento das importâncias
pretendidas, sob pena de violaçãodas
normas gerais de direito tributário constantes do Código
Tributário Nacional, que tem estatura de Lei Complementar,
assim como e principalmente, das garantias do devido processo
legal, contraditório e ampla defesa inscritas na Constituição
Federal.