Alguns doutrinadores sustentam a inconstitucionalidade do enunciado n. 711 da Súmula de Jurisprudência Predominante do Supremo Tribunal Federal, que tem a seguinte redação: "A lei penal mais grave aplica-se ao crime continuado ou ao crime permanente, se a sua vigência é anterior à cessação da continuidade ou da permanência". Dizem esses autores que a retroatividade da lex gravior no caso dos crimes continuados implicaria violação ao princípio da irretroatividade da lei penal, previsto na Constituição Federal em seu art. 5º, inciso XL.
Para entender o caso é preciso ter bem em conta as diferenças e semelhanças entre os crimes permanentes e continuados. Nos crimes permanentes, a consumação não ocorre "em" um determinado momento, mas "durante um determinado intervalo de tempo". Durante esse lapso temporal, pode-se afirmar que o agente está praticando o mesmo e único crime.
Dessa forma, se a consumação (marcada pela permanência) começa enquanto vigente uma lei e se estende até que outra lei (mais grave) entre em vigor, teremos de admitir que o crime (que não pode ser cindido) também foi praticado sob a égide da nova lei in pejus. O crime em questão é efetivamente único e deverá ser regido por apenas uma lei. No caso, a lei a ser aplicada será aquela que estiver vigente quando a permanência (e a própria consumação do crime) cessar: no caso, a última, ainda que mais grave.
Os doutrinadores não sentem maiores dificuldades em admitir essa conclusão, que é textualmente preconizada pelo Enunciado n. 711. Defender a aplicação da lei anterior mais benéfica seria permitir ao agente que continuasse indefinidamente a praticar o crime valendo-se de uma legislação mais branda. Basta imaginar um seqüestro iniciado sob o império de uma lei, de modo que o agente mantenha a vítima em cativeiro indefinidamente, enquanto a legislação muda para agravar a mesma conduta. Teria esse sujeito o beneplácito do direito, exclusivamente porque iniciou sua conduta há mais tempo? Alguém que viesse a iniciar um seqüestro depois da vigência da nova lei teria menos tempo total de permanência do seqüestro e incidiria em crime mais severamente apenado?
O direito não pode levar a absurdos. Se a permanência do crime continua até o advento de uma lei mais grave, deverá o agente ser responsabilizado nos termos dessa lei mais grave, sob pena de privilegiar-se a situação daquele que se encontra há mais tempo cometendo a infração penal de natureza permanente.
Já no caso dos crimes continuados, o que temos são vários crimes praticados em sequência, de modo que a configuração de uma situação de continuidade – a partir do preenchimento dos requisitos previstos no art. 71 do Código Penal – permite a concessão de um benefício ao réu: em vez de uma responsabilização por todos os crimes com a soma das penas, a aplicação da pena mais grave com um simples aumento.
Sendo assim, para efeito de responsabilidade penal, o crime continuado, por ficção, transforma-se em crime único com um mero aumento de pena (situação mais benéfica do que a soma de todas as penas).
Exemplificando, imaginemos que um agente pratica dez furtos simples (art. 155 do CP) em continuidade delitiva. Se pudéssemos somar as penas, considerando que a pena mínima do crime de furto é de um ano, teríamos uma pena mínima de dez anos de reclusão. Com a regra da continuidade delitiva (CP, art. 71), deveremos tomar a mais grave pena aplicada e aumentá-la de um sexto a dois terços. A pena mínima abstrata, nesse caso, será de um ano e dois meses de reclusão (pena mínima de um furto acrescida do menor aumento possível).
De acordo com o Enunciado n. 711 da Súmula de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, aplica-se a lei posterior ao crime continuado se a continuidade cessar sob a égide da novatio legis in pejus. A situação é a seguinte: determinado agente pratica vários crimes em continuidade delitiva. Os primeiros são praticados sob a égide de uma lei anterior menos grave. Os últimos, sob o império de uma lei posterior mais gravosa. De acordo com o referido enunciado, aplica-se ao crime continuado (da mesma forma que ao crime permanente) a lei sob cuja égide tenha cessado a continuidade, ou seja, a última das leis, ainda que mais grave.
Determinado segmento da doutrina tem dificuldades em admitir essa disposição, tachando-a de inconstitucional por aproveitar-se da ficção jurídica do crime continuado para estender aos crimes anteriores a maior gravidade da lei posterior. Haveria, segundo dizem, a indevida aplicação da lei mais grave (lei vigente ao tempo da cessação da continuidade) a fatos ocorridos antes do início de sua vigência (os primeiros crimes inseridos na continuidade delitiva), caracterizando retroatividade in pejus.
Essa retroatividade, na verdade, não existe. O que ocorre nada mais é que a simples aplicação dos estritos termos do art. 71 do Código Penal, ou seja, da regra da continuidade delitiva como causa de exasperação da pena pelo concurso de crimes. Referida disposição legal determina, como alternativa à soma das penas, em caso de continuidade delitiva, que se tome a pena do crime mais grave para aplicar-lhe um aumento compreendido na faixa de um sexto a dois terços.
Ao dizer que a lei posterior mais grave se aplica ao crime continuado desde que a continuidade tenha se estendido até o advento da vigência da nova lei, nada mais disse o Enunciado n. 711 da Súmula do STF que o crime mais grave a ser tomado poderá ser aquele praticado sob o império da nova lei, aplicando-se sobre ele a causa de exasperação do art. 71 do Código Penal.
Imaginemos o seguinte: determinado agente pratica dez furtos em continuidade delitiva. Os nove primeiros foram praticados enquanto previa a lei penas que variavam de um a quatro anos de reclusão. O último deles foi praticado após o advento de uma lei que previa, para a mesma conduta, pena de dois a seis anos de reclusão. Imaginando-se que a pena do último crime tenha sido fixada em quantidade superior às penas dos demais (decorrência dos limites abstratos mais severos da novatio legis), a reprimenda a ser tomada para incidência da causa de exasperação de um sexto a dois terços terá de ser a última, decorrente de aplicação da última lei.
Observe-se, contudo, que essa lei, apontada como posterior, é, na verdade, anterior ao fato a que se aplicou (o último fato da cadeia delitiva contínua). Ela se aplicará "ao crime continuado" como simples decorrência do fato de que o último crime da continuidade foi regido por ela, atribuindo-se a esse delito a mais grave dentre as penas aplicadas in concreto.
A nosso juízo, o Enunciado n. 711 da Súmula do STF não pode ser interpretado no sentido de que as penas de cada um dos dez furtos praticados (no hipotético exemplo que propomos acima) sejam fixadas com base nos limites abstratos da nova lei. Cada crime terá sua pena fixada em obediência aos princípios do tempus regit actum e da retroatividade in mellius, jamais por aplicação retroativa de lei mais gravosa. Se a nova lei mais grave se aplicar à continuidade delitiva, terá sido pela mera contingência de essa lei ter servido de base à fixação da mais grave das penas, a qual fora tomada como parâmetro para o aumento previsto no art. 71 do Código Penal.
Uma interessante consequência disso é que a nova lei mais gravosa poderá não ser aplicada se, no caso concreto, um dos crimes antecedentes tiver tido pena maior em razão de circunstâncias judiciais ou legais desfavoráveis especificamente pertinentes ao caso. Ainda no nosso exemplo dos dez furtos, basta imaginarmos que o primeiro deles tenha sido praticado com circunstâncias agravantes que hajam determinado a fixação da pena em dois anos e dois meses, ficando a pena do último crime (com base na novatio legis in pejus) em seu mínimo, ou seja, em dois anos. Nesse caso, o "crime mais grave" para efeito de incidência do art. 71 do CP será o primeiro, não o último dos furtos.
Com base nesses fundamentos, entendemos que o Enunciado n. 711 da Súmula de Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal tem aplicação meramente circunstancial no caso dos crimes continuados e, exatamente por isso, não viabiliza interpretação que permita retroatividade in pejus da lei penal, não padecendo, portanto, do apontado vício de inconstitucionalidade.