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Emendas à Constituição e a ausência de previsão da República como cláusula pétrea

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9. A cláusula pétrea do direito ao voto e interpretação histórica da Constituição Federal

Não bastasse toda a argumentação exposta, alterar a forma de governo para monarquia também significaria atingir a cláusula pétrea que assegura o direito constitucional ao voto direto, secreto, universal e periódico, limite este expresso ao poder reformador, estabelecido no art. 60, § 4º, inciso II, da Carta Magna.

Isso porque, ao contrário da forma republicana de governo, caracterizada pela eletividade periódica do chefe de Estado, na monarquia o governo é caracterizado pela hereditariedade e pela vitaliciedade, onde o chefe de Estado governa enquanto viver, transferindo o cargo a seu sucessor dentro da linha sucessória dinástica. Assim, não há eleições para escolha do chefe de Estado, não tendo o povo participação política nessa escolha.

Ora, retirar do povo seu direito de escolha do chefe de Estado, conforme prevê o artigo 77 da Constituição Federal, fere a cláusula pétrea do direito ao voto, na medida em que o suprime. A proteção dada pelas cláusulas pétreas abrange qualquer forma de diminuição de seus institutos, e não só a supressão total. Retirar do povo soberano o exercício do voto para eleger seu governante seria um atentado a esse direito.

A vedação atinge a pretensão de modificar qualquer dos elementos conceituais da Federação no sentido de seu enfraquecimento, isto é, que se encaminhe, "tenda" (emenda "tendente", diz o texto) para a sua abolição, ou emenda que "tenda" a enfraquecer qualquer dos direitos e garantias individuais constante do art. 5º. [55]

Vale lembrar que a adoção do sistema parlamentarista de governo implicaria uma eleição indireta e alteração da cláusula pétrea de que o voto deve ser direto. [56] A atual Constituição até admite eleições indiretas para escolha do Presidente da República, mas somente de forma excepcional, quando há vacância nos cargos de Presidente e Vice nos últimos dois anos do período presidencial, conforme o § 1º do artigo 81, e não com regra eletiva para o mais importante cargo do Poder Executivo.

Paulo Bonavides lembra que nas propostas dominantes de introdução ao parlamentarismo há uma inclinação manifesta ao voto majoritário e distrital. Não é possível abandonar a representação proporcional de forma que fiquem sem proteção e sem participação as minorias políticas. Isso acarretaria lesão ao pluralismo político, um dos fundamentos da República. Estas garantias não estão ao alcance do braço reformador, uma vez que os princípios fundamentais se inserem tacitamente na órbita material do § 4º do art. 60. [57]

Finalmente, quanto à problemática da supressão do direito ao voto, Roque Carraza afirma que o voto é cláusula pétrea "e torna possíveis o sistema representativo e o regime democrático, decorrências naturais da forma republicana de governo. Podemos, assim, dizer que pelo menos os reflexos do princípio republicano não podem ser alterados por meio de emenda constitucional". [58]

Também, parece impossível admitir a possibilidade da supressão da república como forma de governo ao interpretar-se a Constituição historicamente. Como afirmado, todas as Constituições Federais republicanas trouxeram em seu corpo a previsão da república como cláusula pétrea, integrando o núcleo imutável do texto juntamente com a Federação.

(...) Desde o primeiro instante, surge o regime já batizado de "republicano-federativo", pela própria pena de Ruy Barbosa. E foi por afeto à federação que esse notável civilista aderiu à República. Para ele, essas duas idéias associadas tornaram-se tão intimamente, que já não podem ser separadas (...). [59]

A primeira Constituição a inovar nesse sentido é a de 1988. E o único motivo pelo qual a o Texto Constitucional de 1988 omitiu a república como cláusula pétrea, como visto, foi em face do plebiscito de 1993, onde o eleitorado poderia optar pela alteração da forma de governo.

Ao contrário da alteração da forma de governo, a mudança do sistema de governo, para o parlamentarismo, já foi por diversas vezes cogitada no cenário político nacional. Sahid Maluf ensina que "em todas as Constituintes republicanas, notadamente as de 1934 e 1946, sob a liderança de Raul Pita, o ideal parlamentarista esteve em pauta, embora rejeitado pela maioria sob fundamentos de que o povo brasileiro não atingiu o estágio político-cultural propício a este sistema de governo". [60]

Porém, mesmo com as tendências parlamentaristas, não se tem informação de ter sido também cogitada a alteração da forma de governo para a monárquica, muito provavelmente porque completamente descabida tal hipótese. E em razão disso permanece uma incógnita a colocação da opção pela forma de governo no art. 2º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

E é assim que se faz necessária uma interpretação histórica d o modelo constitucional republicano, para afirmar que, se foi incluída essa opção a ser feita pelo povo soberano, há de se entender que se tratou de situação de extrema excepcionalidade. Daí a impossibilidade em permitir a alteração da forma republicana de governo através de emenda à Constituição, procedimento este ordinário de reforma constitucional.

Conforme ensina Kildare Gonçalves Carvalho, Desembargador do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na interpretação da Constituição, deve-se dar ênfase ao método histórico, e deve sempre prevalecer o conteúdo teleológico. [61] E a interpretação histórica demonstra que não cabe ao poder constituinte derivado alterar a forma de governo, nem há qualquer intenção nesse sentido, não sendo possível, portanto, tal alteração por meio de emendas à Constituição.

A interpretação histórica consiste na busca do sentido da lei através dos precedentes legislativos, dos trabalhos preparatórios e da occasio legis. Esse esforço retrospectivo para revelar a vontade histórica do legislador pode incluir não só a revelação de suas intenções quando da edição da norma como também a especulação sobre qual seria a sua vontade se ele estivesse ciente dos fatos e idéias contemporâneos. [62]

É difícil afirmar a intenção do legislador constituinte ao incluir um plebiscito para que o eleitorado pudesse optar entre monarquia e república. O que havia nos debates realizados no Congresso em 1986 era um forte movimento favorável à adoção do parlamentarismo como sistema de governo. Mesmo derrotado, o movimento foi feliz em inserir no Ato das Disposições Transitórias o plebiscito do artigo 2º. [63]

Dizer que a ‘Disposição Transitória’ ao admitir a revisão (por maioria absoluta dos membros dos dois ramos legislativos deliberando em um só corpo) após cinco anos de promulgada a Constituição pode ser estendida a todo o resto, e não se limitar àquilo que o plebiscito alterar sobre a forma e o sistema de governo, é dar uma dimensão catastrófica ao erro que foi aprovar a consulta despropositada. E não é só a excentricidade da escolha entre a República e a Monarquia, excrescência que decorreu de um lance fortuito em momento particularmente infeliz do Constituinte e que ficou no texto como uma assombração, não como alternativa razoável de mudança de forma de governo. [64]


10. Conclusão

"As constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que exprimam fielmente os fatores do poder que imperam na realidade social". [65] O poder de reforma da Constituição decorre dessa clara exigência de mutabilidade do texto constitucional, que não deve ser eterno nem imodificável.

E para que o poder reformador manifeste-se de forma legítima, a Carta magna de 1988 estabeleceu mecanismos hábeis para sua alteração, como as emendas à Constituição e a revisão constitucional. As primeiras, como forma ordinária de modificação de texto constitucional, e a última, como forma excepcional de alteração.

A Constituição Federal de 1988 inovou ao não prever a República como cláusula pétrea, permitindo que a forma de governo fosse alterada para Monarquia através do plebiscito realizado em 1993. Diante do caráter excepcional de tal permissão, esse foi o momento único em que a forma de governo pôde ser alterada.

Substituir a atual forma republicana de governo pela forma monárquica de governo significaria uma supressão parcial ao direito constitucional ao voto, e um desrespeito a toda evolução histórico-político nacional, incluindo-se aí o histórico das Constituições Federais Republicanas.

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Apesar de não prever a república como cláusula pétrea, a Carta Magna previu a Federação como limitação expressa ao poder reformador. Proteger o federalismo significa proteger todo o processo de descentralização essencial ao nosso modelo federativo. E, inclui-se nessa proteção, a proteção à República.

A forma republicana de governo merece a mesma proteção dada pela Constituição Federal à forma federativa de Estado. "O modelo federativo ao lado do republicano são as duas vigas mestras sobre as quais se eleva o travejamento constitucional". [66]

Assim, mesmo não havendo vedação expressa no texto Constitucional, é impossível alterar a forma de governo no Brasil, de República para Monarquia, por via de emenda à Constituição, constituindo-se a República, portanto, como limite implícito ao poder constituinte reformador e insuscetível de modificação desde o plebiscito ocorrido em 1993.


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Notas

  1. Ferdinand Lassalle, Que é uma Constituição? (Über die Verfassung), p. 17.
  2. Celso Ribeiro de Bastos apud Antonio Carlos Rodrigues do Amaral, A Reforma da Constituição e as cláusulas pétreas, Revista do Advogado, ano XXIII, novembro de 2003, nº 73.
  3. Curso de Direito Constitucional, p. 27.
  4. Fábio Konder Comparato, Direito Público: Estudos e Pareceres, p. 42.
  5. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Vol. 1, p. 372.
  6. Idem, Do Processo Legislativo, p. 288.
  7. Curso de Direito Constitucional, p. 185.
  8. Curso de Direito Constitucional, p. 29.
  9. José Afonso da Silva, Poder Constituinte e Poder Popular, p. 78.
  10. Emenda Constitucional nº 26 de 27.11.1985.
  11. Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 64.
  12. Poder Constituinte e Poder Popular, p. 78.
  13. Cf. Ivan Carlos Novaes Machado, in Inconstitucionalidade da emenda da reeleição, defendendo que a Emenda Constitucional 16/1997 foi aprovada durante a intervenção federal no Estado de Alagoas decretada em 1996, e por isso seria inconstitucional.
  14. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 69.
  15. Em sua redação original, estabelecia o art. 174 da Constituição de 1824: "Se passados quatro annos, depois de jurada a Constituição do Brazil, se conhecer, que algum dos seus artigos merece reforma, se fará a proposição por escripto, a qual deve ter origem na Camara dos Deputados, e ser apoiada pela terça parte delles."
  16. Curso de Direito Constitucional, p. 358.
  17. Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, p. 38.
  18. Cf. Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 66, sustentando a inconstitucionalidade da EC 03/93, que em seu art. 2º, ao autorizar a União a instituir o IPMF, incidiu em vício de inconstitucionalidade, por ferir os princípios da anterioridade e da imunidade tributária recíproca. Ainda, boa parte da doutrina sustenta a inconstitucionalidade da EC 02/92, como será visto adiante nesse trabalho. Outra emenda à Constituição duramente ataca foi a EC 32/98.
  19. Informativo STF 239, Brasília, 27 a 31 de agosto de 2001. MS 22487-DF. RELATOR: MIN.CELSO DE MELLO. EMENTA: PROPOSTA DE EMENDA À CONSTITUIÇÃO. IMPETRAÇÃO DE MANDADO DE SEGURANÇA POR PARLAMENTARES. POSSIBILIDADE. DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO À CORRETA FORMAÇÃO DAS ESPÉCIES NORMATIVAS.
  20. Direito Constitucional, p. 596.
  21. Informativo STF 233, Brasília, 18 a 22 de junho de 2001.
  22. Elementos de Direito Constitucional, p. 37.
  23. Clèmerson Merlin Clève, A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro, p. 199.
  24. A inconstitucionalidade da Emenda 02/92 é defendida por Paulo Bonavides, in A Constituição Aberta.
  25. Gilmar Ferreira Mendes, Jurisdição Constitucional, p. 159.
  26. Curso de Direito Constitucional, p. 183.
  27. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Do Processo Legislativo, p. 292.
  28. Curso de Direito Constitucional, p. 185.
  29. Cf. Sahid Maluf, Teoria geral do Estado, p. 175.
  30. Comentários à Constituição Brasileira de 1988, Vol. 1, p. 17.
  31. Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, p.154.
  32. Cf. Mônica Herman Salem Caggiano, Coordenadora do Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie e Professora Associada do Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito da USP, in Federalismo Incompleto, Revista de Direito Mackenzie, nº 2, ano 1, afirmando que nem poderia ser denominado federalismo o estado autonômico ou regional instalado no Reino da Espanha.
  33. Do Processo Legislativo, p. 293.
  34. Teoria Geral do Estado, p. 360.
  35. Pinto Ferreira, Curso de Direito Constitucional, p. 234.
  36. Sahid Maluf, Teoria Geral do Estado, p. 359.
  37. A Constituição Aberta, p. 392.
  38. Paulo Bonavides, A Constituição Aberta, p. 393.
  39. Luís César Amad Costa, Leonel Itaussu A. Mello, História do Brasil, p. 178.
  40. Celso Ribeiro Bastos, Curso de Direito Constitucional, p. 140.
  41. Geraldo Ataliba, República e Constituição, pp. 15-16.
  42. Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 77.
  43. República e Constituição, p. 17.
  44. Ibidem, p. 16.
  45. Do Processo Legislativo, p. 289.
  46. Cf. Jair Eduardo Santana, in Revisão Constitucional – reformas e emendas, pp. 115-129, tratando do tema de forma extremamente minuciosa, sustentando ser "inegável que a revisão constitucional deve respeitar o que se decida no plebiscito".
  47. A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro, p.199.
  48. Ives Gandra Martins, A antecipação da reforma constitucional, Folha de São Paulo, edição de 11/03/1991, p. 3.
  49. Paulo Bonavides, A Constituição Aberta, p. 58.
  50. Ibidem, p. 58.
  51. Paulo Bonavides, A Constituição Aberta, p. 59.
  52. José Afonso da Silva, Direito Constitucional Positivo, p. 92.
  53. Paulo Bonavides, Curso de Direito Constitucional, p. 59.
  54. Poder Constituinte e Poder Popular, p. 246.
  55. José Afonso da Silva, Poder Constituinte e Poder Popular, p. 245.
  56. Ives Gandra Marins, Celso Ribeiro de Bastos, Comentários à Constituição do Brasil, 4º Vol.- tomo I, p. 357.
  57. Curso de Direito Constitucional, p. 195.
  58. Curso de Direito Constitucional Tributário, p. 73.
  59. Geraldo Ataliba, República e Constituição, p. 16.
  60. Teoria Geral do Estado, p. 272.
  61. Direito Constitucional, pp. 229-230.
  62. Luís Roberto Barroso, Interpretação e Aplicação da Constituição, p. 131.
  63. Sahid Maluf, Teoria Geral do Estado, p. 273.
  64. Geraldo Ataliba apud Eros Grau, Willis Santiago Guerra Filho, Direito Constitucional: estudos em homenagem a Paulo Bonavides, p. 137.
  65. Ferdinand Lassalle, Que é uma Constituição? (Über die Verfassung), p.40.
  66. Celso Ribeiro Bastos, Ives Gandra Martins, Comentários à Constituição do Brasil, Vol. 1, p. 414.
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Sobre o autor
Diogo Fontes dos Reis Costa Pires de Campos

Procurador do Município de São José dos Campos.Especialista em Direito Processual Constitucional pela Universidade Católica de Santos - UNISANTOS.Especialista em Direito Processual Penal pela Universidade Católica de Santos - UNISANTOS. Especializando em Direito Tributário Empresarial pela Fundação Armando Álvares Penteado - FAAP.Membro da Comissão de Incentivos Fiscais e do Grupo de Análise de Incentivos Fiscais da Prefeitura Municipal de São José dos Campos.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Diogo Fontes Reis Costa Pires. Emendas à Constituição e a ausência de previsão da República como cláusula pétrea. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2275, 23 set. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13558. Acesso em: 23 dez. 2024.

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