3 REDEFINIÇÃO JUDICIAL PRÉVIA DA CLASSIFICAÇÃO DOS FATOS DA DENÚNCIA OU QUEIXA
3.1 CONCEITO E MOMENTO IDEAL
Tomando por base o conceito de emendatio libelli, podemos afirmar que redefinição judicial prévia da classificação dos fatos é a possibilidade de o juiz, sem modificar a descrição dos fatos contida na denúncia ou queixa, preferencialmente ao analisar o recebimento destas, atribuir-lhe definição jurídica diversa, ainda que, em consequência, tenha que aplicar pena mais grave.
Por analogia com os parágrafos do art. 383 do CPP, caso reconheça a emendatio libelli ab initio e o crime da nova definição jurídica permita suspensão condicional do processo, o juiz determinará a abertura de vista ao órgão ministerial para que proponha a alteração por aditamento à denúncia, no caso de crime de ação penal pública, ou por simples petição, no caso de ação penal privada. Por outro lado, se, ao analisar o recebimento da inicial acusatória, o julgador entender que cabe emendatio libelli ab initio para crime de competência de outro juízo, deverá, de imediato, remeter-lhe os autos, mesmo sem o aditamento da denúncia. Em qualquer caso, havendo a emendatio libelli antecipada, as partes devem tomar conhecimento, para poderem exercer o contraditório ou o duplo grau de jurisdição [20].
Obviamente, essa redefinição prévia ocorre também em abstrato, ausente qualquer apreciação probatória, posto que necessita dos mesmos elementos exigidos para a emendatio libelli da sentença: a descrição dos fatos da peça acusatória; a definição jurídica sobre eles, também da mesma peça; a compreensão judicial por inadequação desse último elemento para a adequação típica do primeiro.
Não se pode esquecer que o único motivo pelo qual a emendatio libelli prevista no art. 383 do CPP deve ser realizada na sentença é estar essa norma inserida no título Da Sentença do referido diploma adjetivo penal, não havendo nenhuma cláusula normativa nesse sentido. Será, entretanto, válido esse argumento? Antes de esboçar uma resposta, convém fazer outra pergunta de resposta simples: a mutatio libelli, inserida no art. 384 do CPP e localizada no mesmo título, deve ser efetuada necessariamente na sentença? A resposta é obviamente negativa, pois a mutatio nunca foi realizada em sentença judicial. Na redação originária, o juiz vislumbrava a possibilidade de reconhecer nova definição jurídica, em razão da presença nos autos de prova de circunstância elementar, não contida, explícita ou implicitamente, na denúncia ou na queixa. Nesse caso, abria vista do processo para as providências previstas no caput do art. 384 ou no seu parágrafo único.
Na redação atual, essa medida não é mais necessária, limitando-se o magistrado ao recebimento ou não do aditamento da denúncia dela decorrente [21]. Assim, respondendo à indagação originária, não há motivo para sustentar-se o argumento da posição do instituto no CPP – o fato de estar o artigo que trata da emendatio libelli inserido no titulo Da Sentença – como obstáculo insuperável ou impedidor para ser ela realizada em momento processual diverso da sentença.
Nada obsta que a decisão do magistrado em adotar uma definição jurídica diversa seja tomada na primeira análise da peça inicial acusatória, seja denúncia ou queixa. A antcipação dessa providência é importante para que o rito já comece adequado, ou para que o juízo seja o inequivocamente competente.
O rito previsto na Lei nº 11.343/06, para os crimes de drogas, traz uma excelente oportunidade para exemplificar a possibilidade de se exercer o contraditório antes do recebimento da denúncia, dada a apresentação de defesa prévia escrita antes do recebimento da denúncia. Com isso, o acusado já poderia influenciar na decisão judicial de proceder à emendatio libelli antecipada por ocasião do recebimento da inicial. Igual medida pode ocorrer com o procedimento previsto para os crimes contra a Administração praticados por servidores públicos (arts. 513 a 518 do CPP).
Nos demais ritos, não há essa oportunidade e, por isso, não se deve deixar de atentar para a possibilidade de ser procedida pelo juiz a redefinição legal dos fatos narrados pela acusação após a juntada da resposta escrita ou defesa prévia, já que, a teor do art. 397 do CPP [22], trata-se de uma reavaliação da inicial acusatória. Este era o entendimento do projeto de lei que originou a minirreforma do Código de Processo Penal [23], no sentido de que a sistemática fosse similar à da Lei de Drogas (Lei nº 11.343/08), com a notificação inicial para resposta escrita e, só depois, procedendo-se à citação para a audiência de instrução e julgamento [24].
3.2 ENTENDIMENTO DOUTRINÁRIO E JURISPRUDENCIAL
Estranhamente, a doutrina e a jurisprudência são contrárias à redefinição judicial da classificação dos fatos narrados na denúncia ou queixa em qualquer outro momento que não seja por ocasião da emendatio libelli, isto é, na sentença. O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou de forma contrária à possibilidade da redefinição judicial antecipada. Esse entendimento também é adotado pelo Superior Tribunal de Justiça, bem como pelos Tribunais Regionais Federais e pelos Tribunais dos Estados, conforme demonstram os seguintes julgados:
Não é lícito ao juiz, no ato de recebimento da denúncia, quando faz apenas juízo de admissibilidade da acusação, conferir definição jurídica aos fatos narrados na peça acusatória. Poderá fazê-lo adequadamente no momento da prolação da sentença, ocasião em que poderá haver a emendatio libelli ou a mutatio libelli, se a instrução criminal assim o indicar [25].
Habeas corpus. Não tem poderes o juiz para, no despacho de recebimento da denúncia, considerar inconstitucional o decreto-lei em que se fundou, e dar nova definição jurídica do fato. Só o dominus litis tem poderes para alterar a classificação do delito, ao oferecer a denúncia. Habeas corpus denegado [26].
Não cabe ao juiz, ao receber a denúncia, classificar o crime nela transcrito. A definição jurídica do fato supostamente delituoso, constante na denúncia, cabe ao Ministério Público como titular que é da ação penal. A análise quanto à correta capitulação somente deve ser feita por ocasião da prolação da sentença, de acordo com o disposto no art. 383 do CPP [27].
No nosso entendimento, o primeiro julgado transcrito deixou de lado toda a gama de direitos que, no decorrer da instrução, podem ser cerceados. Ademais, o que significa "não ser lícito ao juiz"? Significa que é ilícito, que é contrário à norma? Que norma é essa? Ou será que apenas não há previsão na norma? E como fica tal argumento diante dos poderes judiciais de condução do processo, da analogia e dos princípios jurídicos envolvidos? A doutrina majoritária tem posicionamento similar ao entendimento jurisprudencial:
Se fosse admitida tal hipótese [a retificação da denúncia ou queixa no seu recebimento], tratar-se-ia de um indevido prejulgamento, tornando parcial o juízo, além do que a titularidade da ação penal é exclusivamente do Ministério Público ou do ofendido, conforme o caso. Assim, não cabe ao magistrado, recebendo a peça acusatória, pronunciar-se, por exemplo, da seguinte forma: "Recebo a denúncia por extorsão, com base no art. 158 do Código Penal, e não como roubo (art. 157, CP), como descrito pelo promotor" [28].
O demandado defende-se dos fatos a ele imputados, não da sua tipificação legal [...]. Dessa forma, o juiz não deve rejeitar a peça inicial, por entender errada a classificação do crime. Entendemos, também, que ele não poderá receber a denúncia ou a queixa dando aos fatos nova capitulação, pois o poder de classificá-los, neste momento processual, é dos respectivos titulares [29].
O primeiro entendimento transcrito – a exemplo de vários julgados – comete o grave erro de, ao menos aparentemente, confundir a emendatio libelli com a desclassificação. É preciso lembrar que aquela, sendo apenas uma análise técnica da correlação dos fatos narrados com a capitulação legal imposta na peça acusatória, é feita em abstrato, não ensejando análise de prova.
Os argumentos de que o juiz não tem legitimidade para alterar a classificação da acusação [30], por possível aditamento durante a instrução e de que somente tem a oportunidade de corrigir a imputação na sentença, quando autorizado pelo art. 383 do CPP, são por demais repetidos. Porém, a fundamentação de tais argumentos não é suficientemente sólida. Tanto a correção efetuada na sentença como a ora proposta, efetuada no primeiro contato do juiz com a denúncia, não visam à alteração da peça inicial. Não é fisicamente apagado o escrito na denúncia nem se faz uma substituição no conteúdo dos seus termos. É mais uma questão de compreensão do magistrado. A partir dela, age o juiz de acordo com o entendimento de que o crime imputado é o da nova classificação por ele efetuada. E isto pode ocorrer tanto na sentença como na condução do processo.
Ousamos afirmar que os entendimentos acima transcritos [31] são carentes de fundamentação. E assim entendemos porque abordam a questão superficialmente, relegando-a à previsibilidade legal expressa. No entanto, aqueles que sustentam tais opiniões esquecem que os poderes do magistrado na condução do processo, a analogia e os princípios constitucionais dão suporte a essa decisão. Alguns poucos doutrinadores admitem a redefinição da classificação quando do recebimento da denúncia ou queixa. Senão vejamos:
Embora a classificação dada ao fato na denúncia ou queixa não implique a vinculação do juiz a ela, casos ocorrerão em que, da simples narrativa da imputação, poder-se-á perceber o erro da classificação, daí resultando alterações significativas no processo. Nos casos, por exemplo, em que é vedada (de modo inconstitucional como veremos) a concessão da liberdade, com ou sem fiança, nada impede o juiz de, provisoriamente, alterar a tipificação dada para ampliar a tutela de direitos fundamentais (a liberdade) [32].
O sistema acusatório, que demanda plenitude de defesa e contraditório, em face da pretensão do processo justo, assegura a emendatio libelli, prevista no art. 383 do Código de Processo Penal, na fase da sentença, mas aplicável a todo tempo (quanto antes, melhor) principalmente se resultar em significativa alteração do procedimento [33].
Pode o juiz, quando do recebimento da denúncia, dar ao fato outra classificação jurídico-penal? À primeira vista, não haverá necessidade, mesmo porque o acusado não se defende da tipificação, mas do fato. Contudo, em certas situações, sim. Observe-se que a Lei n. 8.072/90, no seu art. 2º, prescreve não se permitir a liberdade provisória nos homicídios qualificados. Assim, preso em flagrante alguém pela prática de um homicídio doloso, não seria justo que a sua não-liberdade provisória, nos termos do parágrafo único do art. 310, ficasse na dependência da boa ou má vontade de promotor. Nesse caso, deve o juiz proceder a uma análise dos autos do inquérito e, na hipótese de não haver prova da qualificadora, limitar-se a receber a denúncia; e não estando presente qualquer das circunstâncias que autorizam a prisão preventiva, conceder-lhe a liberdade provisória, afastando, ainda que até eventual pronúncia, a qualificadora [34].
Não admitir que o juiz (juiz este garantidor dos direitos individuais do acusado na mais esperançosa atenção aos ditames da doutrina italiana de Luigi Ferrajoli) possa dar aos fatos narrados na inicial a correta qualificação jurídica é admitir o inadmissível, ou seja, a continuidade de um acusado na prisão em razão de um erro do órgão acusador [35].
A jurisprudência, inclusive do STF, em algumas situações, já externou a possibilidade de uma emendatio libelli ab initio:
Habeas corpus [...] Denúncia: errônea capitulação jurídica dos fatos narrados: erro de direito: possibilidade de o juiz, verificado o equívoco, alterar o procedimento a seguir (cf. HC 84.653, 1ª T., 14.07.05, Pertence, DJ 14.10.05).
1. Se se tem, na denúncia, simples erro de direito na tipificação da imputação de fato idoneamente formulada, é possível ao juiz, sem antecipar formalmente a desclassificação, afastar de logo as consequências processuais ou procedimentais decorrentes do equívoco e prejudiciais ao acusado.
2. Na mesma hipótese de erro de direito na classificação do fato descrito na denúncia, é possível, de logo, proceder-se à desclassificação e receber a denúncia com a tipificação adequada à imputação de fato veiculada, se, por exemplo, da sua qualificação depender a fixação da competência ou a eleição do procedimento a seguir [36].
TJPR: Fiança. Benefício concedido. Réu denunciado por crime inafiançável. Magistrado que, empregando a regra da mihi factum, dabo tibi jus, altera a classificação jurídica do fato e defere à mercê. Admissibilidade. Aplicação do art. 383 do CPP – Fiança. "É admissível que o juiz, para deferi-la, dê ao fato delituoso classificação jurídica distinta daquela constante da denúncia" [37].
3.3 APLICAÇÃO ANALÓGICA
O art. 3º do Código de Processo Penal é bastante claro ao permitir a analogia (aplicação analógica) no âmbito do ordenamento processual penal, dispondo: "A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito".
Analogia é o meio de autointegração da lei, quando há um caso regulamentado pela lei e outro não. Mas, por guardarem semelhança relevante e terem a mesma razão de regulamentar (ratio legis), é aplicado ao último o mesmo suporte legal que já regulamenta o outro. Sobre o instituto, esclarece Carlos Maximiliano:
O processo analógico, entretanto, não cria direito novo; descobre o já existente; integra a norma estabelecida, o princípio fundamental, comum ao caso previsto pelo legislador e ao outro, patenteado pela vida social. O magistrado que recorre à analogia não age livremente; desenvolve preceitos latentes, que se acham no sistema jurídico em vigor [38].
A doutrina, de modo geral, adota essa definição, mas é importante lembrar que a analogia pressupõe os seguintes requisitos apontados pelo referido autor:
1º) uma hipótese não prevista, senão se trataria apenas de interpretação extensiva; 2º) a relação contemplada no texto, embora diversa da que se examina, deve ser semelhante, ter com ela um elemento de identidade; 3º) este elemento não pode ser qualquer, e, sim, essencial, fundamental, isto é, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo. Não bastam afinidades aparentes, semelhança formal; exige-se a real, verdadeira igualdade sob um ou mais aspectos, consistentes no fato de se encontrar, num e noutro caso, o mesmo princípio básico e de ser uma só ideia geradora tanto da regra existente como da que se busca. A hipótese nova e a que se compara com ela precisam assemelhar-se na essência e nos efeitos; é mister exigir a mesma razão de decidir [39] (grifo nossos).
Norberto Bobbio também estabelece parâmetros para se identificar a "semelhança relevante":
Entende-se por analogia o procedimento pelo qual se atribui a um caso não-regulamentado a mesma disciplina que o caso regulamentado semelhante. [...] Diz-se que a semelhança não deve ser uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante. [...] Para que se possa tirar a conclusão, quer dizer, para fazer a atribuição ao caso não-regulamentado das mesmas consequências jurídicas atribuídas ao caso regulamentado semelhante, é preciso que entre os dois casos exista não uma semelhança qualquer, mas uma semelhança relevante, é preciso ascender dos dois casos uma qualidade comum a ambos, que seja ao mesmo tempo a razão suficiente pela qual ao caso regulamentado foram atribuídas aquelas e não outras conseqüências. [...] Por razão suficiente de uma lei entendemos aquela que tradicionalmente se chama a ratio legis. Então diremos que, para que o raciocínio por analogia seja lícito no Direito, é necessário que os dois casos, o regulamentado e o não-regulamentado, tenham em comum a ratio legis. De resto é o que foi transmitido com esta fórmula: "Onde houver o mesmo motivo, há também a mesma disposição de direito" (Ubi eadem ratio, ibi eadem iuris dispositio) [40].
A possibilidade de se efetuar a redefinição judicial prévia da classificação dos fatos da denúncia ou queixa não está regulada no ordenamento processual penal (não é permitida, nem proibida), Todavia, há a determinação [41] de se efetuar recapitulação semelhante no momento da prolação da sentença (art. 383 do CPP – emendatio libelli). Isso configura, em tese, a possibilidade de analogia, cabendo ao juiz a tarefa de decidir se essa semelhança é ou não relevante. Compete-lhe, portanto, observar se a ratio legis que permitiu a inserção da emendatio libelli no ordenamento jurídico seria a mesma para a sua utilização antecipada, ou seja, na oportunidade do recebimento da denúncia.
Conforme observação feita neste trabalho, quando se tratou especificamente da emendatio libelli, o fato jurídico que deu origem ao dispositivo ou sua razão de existência jurídica decorrem dos princípios expressos nos brocardos latinos: jura novit curia (o juiz conhece o direito) e da mihi factum, dabo tibi jus (dá-me o fato, dar-te-ei o direito). Decorre também dos mesmos motivos a admissão da emendatio libelli antecipada. Ademais, os efeitos seriam os mesmos, pois a proposta é do mesmo instituto, num momento anterior ao convencionado pelos intérpretes, em especial, pela doutrina, ou seja, anterior à sentença.
3.4 PODERES JUDICIAIS DE CONDUÇÃO DO PROCESSO
Sem dúvida, a condução do processo, do início à sentença [42], cabe ao magistrado e não às partes. Se o Código de Processo Penal não dispõe expressamente sobre a matéria, o Código de Processo Civil, que deve ser utilizado supletivamente, vem sanar o problema, ao estabelecer no art. 125:
O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, competindo-lhe:
I - assegurar às partes igualdade de tratamento;
II - velar pela rápida solução do litígio; [...]
Não podemos fechar questão na concepção de que a capitulação dada na peça acusatória – simples elemento provisório da denúncia ou queixa, porquanto retificável por aditamento até a sentença e, também neste momento, alterável pelo juiz – pode vincular o juiz na condução do processo, quanto ao rito a ser seguido, ao cabimento de suspensão condicional do processo, à afiançabilidade, etc. Se o juiz, quando do recebimento da peça acusatória, não puder alterar a capitulação ali indicada, como se poderá dizer que efetivamente conduz ou preside o processo?
Um promotor de justiça, por exemplo, narra fatos condizentes com o exercício arbitrário das próprias razões (art. 345 do CP), com todas as elementares aplicáveis, mas dá-lhes a definição jurídica de roubo majorado pela prática com arma (art. 157, § 2º, I, do CP). Nessa hipótese, o processo desenvolver-se-á pelo rito ordinário, perante a justiça comum, e não pelo rito sumaríssimo no juizado especial criminal, o que é visivelmente prejudicial ao réu. Assim, seguindo-se a letra fria da lei, somente quando o magistrado estiver sentenciando é que poderá fazer a emendatio libelli e, na forma do § 2º do art. 383 do CPP, encaminhar os autos ao juizado especial criminal. Porem, se a concepção do magistrado quanto aos fatos narrados da peça acusatória for formada com a leitura inicial daquela peça, pode ele, antes mesmo de receber a denúncia e, portanto, antes de haver formalmente processo, encaminhar os autos ao juízo competente.
Deve o juiz conduzir o processo sem ser direcionado pelas partes. Deve orientar-se pela sua concepção formada pelo seu livre convencimento motivado, buscando garantir o acesso à ordem jurídica justa, quanto ao procedimento legalmente estabelecido. Se as partes indicarem caminhos ao juiz e este não os entender adequados ao princípio do devido processo legal procedimental ou a outros princípios, não deve trilhá-los. A esse respeito, poder-se-ia questionar: Que comportamento estaria exercendo um juiz que procede com um rito diverso do que sabe ser adequado aos fatos narrados, que nega a suspensão condicional do processo, que considera o crime inafiançável ou que deixa de reconhecer a prescrição de um delito que, pela classificação do MP, iria cercear esses direitos?
Veja-se, também, que o instituto em análise não visa a um mero amparo ou a uma simples tentativa de conceder direitos ao réu. Pode haver a possibilidade de ser um caso totalmente inverso ou que a emenda capitule um crime mais grave, que impossibilite a concessão desses direitos, apesar de a equivocada classificação feita na peça acusatória o permitir. Visa, sim, à justiça e à integralidade técnica da peça acusatória. É inquestionável que os poderes do magistrado na condução do processo tornam-no capaz de proceder à redefinição judicial prévia da classificação dos fatos narrados na denúncia ou queixa.
3.5 PRINCÍPIOS FUNDAMENTADORES DA MEDIDA
Vários são os princípios constitucionais e processuais que dão suporte à possibilidade de redefinição judicial prévia da classificação dos fatos da denúncia ou queixa. É claro que o devido processo legal procedimental [43] é muito amplo. Assim, não é de se estranhar que ele, como verdadeira panaceia principiológica, venha a amparar o entendimento ora defendido. E isto se fortalecerá com o reforço de outros princípios de natureza processual em relação à redefinição judicial prévia da capitulação dos fatos indicados na acusação.
A igualdade entre as partes é uma decorrência do princípio da igualdade perante a lei insculpido na Constituição Federal (art. 5º, caput). Ela deve ser garantida pelo magistrado na condução do processo, inclusive como dever legal, a teor do art. 125, I, do CPC, já transcrito. A igualdade impossibilita que uma parte prepondere sobre a outra. Mas isto ocorrerá se houver equívoco na definição jurídica dos fatos narrados na peça acusatória e se o magistrado somente puder saná-lo na sentença, após toda a instrução criminal orientada pela capitulação dada na denúncia ou queixa.
Não é demais lembrar que, tendo a acusação a possibilidade de definir a capitulação dos fatos inseridos na inicial, existe inegável preponderância dela sobre o acusado, réu ou querelado. Isso porque, desde o início, já pode restringir-lhe direitos, como o direito a um procedimento mais favorável, à suspensão condicional do processo, à afiançabilidade, entre outros.
Dessa forma, é necessário que o juiz proceda à redefinição do enquadramento legal dos fatos preferencialmente quando do recebimento da denúncia. Assim fazendo, realiza verdadeiro chamamento do feito à ordem para assegurar ao acusado os direitos que lhe são legalmente previstos. Nesse sentido, afirma César Asfor Rocha:
Tratar igualitariamente não é tratar da mesma forma, mas tratar de maneira a atingir o acesso à ordem jurídica justa, possibilitando isonomicamente às partes a efetiva defesa de seus direitos, sustentação de suas razões e produção de suas provas. O tratamento paritário das partes diz respeito, portanto, a um procedimento devidamente ordenado pelo contraditório, feito com lisura e sem surpresas e armadilhas para as partes [44].
Com um viés no princípio da igualdade, mas tratando a respeito do princípio do impulso oficial, Rui Portanova declara ser dever do magistrado fazer cessar ou, ao menos, diminuir desigualdades, ressaltando:
Podemos dividir o dever de impulso oficial do juiz em três espécies: [...] c) dever de impulso igualizador. [...] O princípio do impulso oficial igualizador obriga a que o juiz seja atento e interessado no atendimento dos escopos e da efetividade do processo. Assim, o juiz não pode tolerar que as desigualdades materiais entre as partes façam do processo um local de opressão do mais forte sobre o mais fraco [45].
O princípio do contraditório está explícito no inciso LV do art. 5º da Carta Magna e, conforme lembra Humberto Theodro Júnior, "consiste na necessidade de o juiz ouvir, previamente, a pessoa perante a qual irá proferir decisão, garantindo-lhe o pleno direito de defesa e de pronunciamento durante todo o curso do processo" [46]. Esse princípio subsume-se na ideia de ciência-participação [47], segundo a qual é necessário dar ciência ao réu das acusações, das provas e das teses jurídicas, além de garantir-lhe a oportunidade de contra-argumentar esses elementos.
Não se questiona a concepção de que o acusado se defende dos fatos narrados na peça acusatória. Porém, é preciso compreender que uma perfeita definição jurídica dos fatos nela narrados permite uma defesa mais adequada, centrada nos elementos prioritários da tese defensiva. Assim, durante toda a instrução, não existirá a preocupação do defensor do réu com a possibilidade de o magistrado efetuar a emendatio libelli e, por conseguinte, fazer a defesa envolvendo uma eventual vertente da concepção jurídica do membro do Ministério Público ou querelante sobre os fatos articulados. É preciso também ter em mente, conforme lembra Rui Portanova, que "as partes não podem ser surpreendidas por decisão que se apoie numa visão jurídica que não tinham percebido ou tinham considerado sem maior significado" [48]. No mesmo sentido, acrescenta Francisco Tiago D. Stockinger:
Deve-se levar em consideração que o contraditório, em sua essência, significa a possibilidade de haver consignados os argumentos em favor e em desfavor sobre determinado fato ou norma. Por esta razão, o juiz que por sua iniciativa promove o contraditório estará tornando mais legítima a sua sentença, afastando com qualquer estigma a arbitrariedade em sua decisão judicial [49].
O princípio da celeridade ou da razoável duração do processo ganhou relevância quando inserido no texto da Carta Magna pela Emenda Constitucional nº 45, de 31 de dezembro de 2004, dispondo no inciso XXVIII do art. 5º: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação".
Não é propósito deste trabalho tecer considerações sobre o tema [50] nem sobre a falta de definição da expressão "razoável duração do processo" no ordenamento jurídico pátrio ou dos elementos utilizados internacionalmente como referência para tanto [51]. Para fins deste trabalho, basta a óbvia constatação de que, se não houver a necessidade de reencaminhar-se os autos a outro juízo ou de retornar-se a questões como a suspensão condicional do processo, garante-se maior celeridade processual.
Uma redefinição antecipada dos fatos da inicial acusatória permitirá mais celeridade processual. Assim, não haverá perda de tempo com procedimentos previstos nos parágrafos do art. 383 do CPP, os quais não precisariam ter sido realizados – no caso da suspensão processual – ou que poderão ter a necessidade de ser refeitos – no caso de encaminhamento dos autos ao juizado especial criminal ou deste para o juízo comum. Além disso, estará o magistrado "velando pela rápida solução do litígio", dever que lhe é imposto pelo art. 125, II, do CPC.
Em consequência, estará assegurado o princípio da economia processual, lembrando que ele informa todo o sistema processual brasileiro, conforme explicita a exposição de motivos do Código de Processo Civil. Esse princípio impõe ao julgador que conduza o processo conferindo às partes um máximo de resultado com um mínimo de esforço processual. O dispêndio de energia não deve guardar proporção com os benefícios oriundos do processo. Desta forma, uma redefinição judicial prévia evitaria atos desnecessários como os já declinados.
O princípio da eficiência (art. 37, caput, da CF) é normalmente associado ao direito administrativo. Todavia, trata-se de um princípio ordenador de todos os atos praticados pelos agentes públicos e políticos de todos os poderes, inclusive, o juiz e o membro do Ministério Público. No caso das ações penais públicas, cuja peça acusatória é de competência do membro do Ministério Público, uma emendatio libelli ab initio asseguraria o cumprimento do princípio da eficiência, na medida em que não iria gerar para o acusado prejuízos decorrentes da equivocada capitulação legal dos fatos denunciados.
3.6 NULIDADE DA EMENDATIO LIBELLI AB INITIO
Procedida a redefinição judicial prévia da classificação dos fatos narrados na denúncia ou queixa, pode ser ela declarada nula? Antes de responder tal questão, transcreve-se, por oportuno, o conceito de nulidade apresentado por Denilson Feitoza:
Nulidade é o defeito do ato processual ou do processo, que pode ter como sanção a ineficácia. Portanto, nulidade é a característica, qualidade, do ato processual ou do processo, enquanto a ineficácia é a sanção aplicada pela inobservância da forma prescrita em lei [52].
Como se pode depreender do conceito, não é qualquer inobservância à forma legal que acarreta a decretação de nulidade do ato. Assim, ficam excluídos dessa sanção os atos irregulares que não geram consequências ou os que têm como consequências apenas sanções extraprocessuais, bem como aqueles considerados inexistentes, como, por exemplo, um despacho oriundo de autoridade incompetente.
Conforme a sistemática traçada por todo o ordenamento processual pátrio e, para fins deste trabalho, só devem ser estigmatizados com pecha da nulidade os atos que vierem a gerar prejuízo (pas de nullitée sans grief – não há nulidade sem prejuízo). Nesse sentido, dispõe o art. 563 do CPP: "Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa". Na mesa direção é o entendimento da doutrina e dos tribunais superiores:
Negando o excesso de formalismo, com fundamento no princípio da instrumentalidade das normas, a lei estabeleceu o sistema de prevalência dos impedimentos de declaração ou de arguição de nulidades. Sua regra básica é enunciada no art. 563. É o princípio pas de nullité sans grief, pelo qual não se declara nulidade desde que da preterição da forma legal não haja resultado prejuízo para uma das partes [53].
Em se tratando de nulidade processual, há de ser aplicado o princípio do pas de nullité sans grief, cabendo à parte supostamente prejudicada a demonstração do efetivo prejuízo [54].
A respeito dessa matéria, exsurge a seguinte indagação: qual o prejuízo decorrente de uma emendatio libelli ab initio? Pode-se afirmar que não há prejuízo para qualquer das partes. A correção da definição jurídica dos fatos narrados na denúncia não pode ser considerada prejudicial. A ideia de dano deve estar ligada ao conceito de ilicitude e não de adequação, correção e justiça. Se assim não fosse, poder-se-ia considerar danosa qualquer condenação judicial, conforme lição de Galeno Lacerda:
Posso afirmar, e o faço agora com a experiência amadurecida de juiz, que esse sistema é profundamente antiformalista. As disposições analisadas se expandem como largas avenidas de abertura e permitir ao juiz trânsito livre para o milagre, sem os tropeços da forma e na letra, de fazer justiça, de acordo com a própria consciência, amparado em dispositivos do próprio código [55].