I. Considerações prévias
Inicio este artigo (re)lembrando dois fatos importantes: 1º) a Constituição da República vigente foi elaborada objetivando construir uma Sociedade mais justa - tanto em termos sociais, quanto em termos políticos e econômicos - e, concomitantemente, dotar o cidadão de meios jurídicos eficazes contra o arbítrio do Estado e o poder dos grandes conglomerados econômicos, quer sejam conglomerados nacionais, quer seja conglomerados internacionais; 2º) vivenciamos um período histórico de reestruturação do sistema econômico onde impera a lógica do sistema de mercado transnacional e internacional, mas tal reestruturação não pode, em momento algum, se sobrepor aos direitos e garantias legais mínimas do obreiro, direitos e garantias esses tão duramente conquistados ao longo dos últimos dois séculos.
Também é importante destacar que o "caput" do art. 170 da "Lex Fundamentalis" vigente dispõe que a ordem econômica tem como fundamentos a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa.
Salvo melhor juízo, parece-me que o legislador constituinte originário de 1988, ao inserir a expressão "trabalho humano" antes da expressão "livre iniciativa", quando da redação do supracitado artigo, estabeleceu uma hierarquia valorativa a ser observada rigorosamente no tocante à regulamentação normativa das atividades econômicas e socioculturais, a saber: nenhuma norma legal (lei "stricto sensu", decreto, portaria, etc.) poderá desconsiderar o primado da valorização do trabalho humano ao regulamentar as relações econômicas e sociais incluindo aí, obviamente, as relações de trabalho.
Impende ressaltar, ainda, a índole tutelar do Direito do Trabalho quanto ao hipossuficiente, qual seja, o obreiro, índole essa consubstanciada no vestuto brocardo "in dubio pro operario".
Na verdade, a tutela do Direito do Trabalho diz respeito mais aos direitos e garantias da classe trabalhadora e menos ao empregado enquanto indivíduo. Nesses termos, busca preservar uma relação harmoniosa entre o capital e o trabalho, visando, via de regra, corrigir as desigualdades existentes e, portanto, propiciar a melhoria das condições social, econômica e cultural do trabalhador.
Dentre os direitos do empregado tutelados pelo Direito do Trabalho, três se sobressaem: o direito a perceber um salário justo, o direito à preservação da saúde e o direito à preservação da honra pessoa e profissional.
As convenções coletivas do trabalho e os acordos coletivos do trabalho se alicerçam na autonomia privada coletiva. Por oportuno, na esteira do magistério do eminente jurista e professor Amauri M. Nascimento, é de se destacar que "a atuação do Estado não deve aniquilar as liberdades econômica e social. (...) Certo é que o direito do trabalho contemporâneo, dentre as suas múltiplas fontes, tem na autonomia privada coletiva uma das suas mais valiosas construções, ainda inacabada". (1)
Nessa ordem de idéias, entendo que a liberdade sindical e de negociação coletiva constituem-se em verdadeiras cláusulas pétreas, a teor do art. 60 da atual "Lex Legum", e, portanto, insusceptíveis de serem contrariadas por norma infraconstitucional.
Frise-se, ainda, que a dogmática jurídica reconhece que o crédito trabalhista é super-previlegiado, preferindo, inclusive, ao crédito fiscal. Tal entendimento é acolhido pela jurisprudência dos nossos pretórios e pela legislação.
Por derradeiro neste tópico, faz-se necessário lembrar que os serviços públicos são prestados diretamente pelo Estado ou através de empresas públicas ou privadas, sobretudo mediante os institutos da concessão ou da permissão.
II. Da inconstitucionalidade do artigo 624 da CLT
O artigo 624 está inserido no Título VI da CLT, "Das Convenções Coletivas de Trabalho".
O artigo em epígrafe está assim redigido, "in verbis":
"Art. 624 - A vigência de cláusula de aumento ou reajuste salarial que implique elevação de tarifas ou de preços sujeitos à fixação por autoridade pública ou repartição governamental, dependerá de prévia audiência dessa autoridade ou repartição e sua expressa declaração no tocante à possibilidade de elevação da tarifa ou do preço e quanto ao valor dessa elevação."
Tal dispositivo versa sobre a hipótese de reajuste salarial de categorias que laboram em serviços públicos, reajuste salarial esse oriundo de convenções coletivas de trabalho.
Entendo que o artigo consolidado ora em comento é claramente inconstitucional sob um dúplice motivo, a saber: 1º.) o caráter alimentar, por excelência, do salário; 2º.) a vedação de reajuste salarial sem a prévia audiência da autoridade pública ou repartição governamental fere a dignidade e a primazia do trabalho como fator de produção e de riquezas, não estimulando a produtividade individual e coletiva através do percebimento, por parte do empregado, da justa remuneração a que tem direito em face do seu labor.
O primeiro motivo supracitado carece de maiores considerações. Destarte, aceitar que o aumento salarial dependa da anuência da autoridade é deixar o trabalhador e sua família à míngua.
Por oportuno, é forçoso destacar que a República Federativa do Brasil tem, dentre outros fundamentos, o respeito à dignidade humana (CF/1988, art. 1º., inc. III).
Nesse passo, a dignidade da pessoa humana é o ponto de partida e de chegada do Direito enquanto Ciência normativa das relações sociais e, nessa medida, o reajuste do salário do empregado que porventura labora em serviço público, claramente é uma verba alimentar (como o são, v.g., a pensão e os honorários profissionais), não podendo e nem devendo estar restrito a autorização prévia da autoridade pública competente que, por sinal, é parte estranha à convenção coletiva de trabalho, ou seja, nem é empregado, nem patrão, e muito menos órgão do Poder Judiciário.
Por oportuno, não é demais lembrar que as convenções coletivas de trabalho, notadamente aquelas submetidas à apreciação da Justiça do Trabalho, representam, por sua própria natureza, o interesse coletivo das partes convenantes e, desde que não contrariem o interesse coletivo, devem ser acatadas rigorosamente durante o prazo de sua validade. (2)
Nessa ordem de idéias, indaga-se: eventual negativa prévia de uma autoridade administrativa que denega o reajuste salarial da categoria sob a mera alegação de contrariar o interesse público e atentar contra a economia pública pode se sobrepor à decisão judicial transitada em julgada que reconheceu o referido reajuste salarial? A mim, salvo melhor juízo, a resposta é um sonoro e inquestionável não.
Quanto ao segundo motivo de inconstitucionalidade, não há margem para discussões mais aprofundadas ou dúvidas de qualquer natureza que os concessionários ou permissionários que explorem serviços públicos devem ser remunerados de forma justa, sob pena de se configurar o enriquecimento sem causa por parte do Erário Público. Entretanto, a justa remuneração do serviço público explorado pelo concessionário ou permissionário não significa que tal remuneração deva se sobrepor aos interesses maiores da Sociedade, dentre os quais, se inclui, evidentemente, o interesse de que o trabalhador receba o que lhe é devido em face do seu trabalho.
"In casu", a construção de uma Sociedade mais justa não poderá nunca ser feita sob a dúbia desculpa de que o reajuste salarial dos obreiros que trabalham em serviços públicos explorados via concessão ou permissão deve ser previamente aprovado pela autoridade pública competente que, repito, é, via de regra, estranha à relação laboral.
A "equação" reajuste salarial do obreiro que labora em serviço público explorado por concessionária ou permissionária estipulado em convenção coletiva de trabalho x autorização prévia da autoridade pública competente deve, necessariamente, ser resolvida em favor do obreiro através da concessão do reajuste salarial ao qual faz jus independentemente da interferência estatal.
Destarte, entendo que a redação vigente do artigo 624 reflete um "dirigismo estatal" ditatorial das relações laborais, dirigismo estatal esse decorrente quando da criação da CLT na distante década de 1940 e que não se coaduna com o ordenamento constitucional vigente, tanto em termos jurídicos, como em termos sociais e culturais. O mundo evidentemente mudou significativamente nas últimas seis décadas e o ordenamento jurídico laboral deve se adequar às mudanças para não se engessar.
Em síntese, vejo que o artigo 624 celetário, tal como está redigido atualmente, é nitidamente inconstitucional devido aos seguintes motivos:
1º) violar a dignidade humana (CF/88, art. 1º., inc. III) e por desconsiderar a valorização do trabalho humano enquanto um dos fundamentos da ordem econômica (CF/88, "caput" do art. 170) e, por via de conseqüência, criar uma exigência obstaculizadora de reajuste salarial, qual seja condicionar o referido reajuste a prévia autorização da autoridade pública que não é parte da relação laboral;
2º.) ferir a autonomia sindical e a liberdade de negociação coletiva (CF/88: arts. 7º., incisos X e. XXVI; 8º., incisos III e VI), as quais são, no meu modesto entendimento, cláusulas pétreas;
3º) some-se a isto, o fato de que a autorização prévia da autoridade pública poderia sobrepujar a decisão judicial de reajuste salarial derivada de sentença normativa transitada em julgado, violando frontalmente, "in casu", os incisos XXXV e XXXVI do art. 5º. da atual Constituição da República;
4º) o caráter alimentar do salário.
Finalizo este artigo fazendo votos que as colocações aqui feitas sirvam de ponto de partida para o aprofundamento das discussões acerca do artigo consolidado objeto deste opúsculo e, assim sendo, possamos, dentro muito em breve, vê-lo eliminado do nosso ordenamento jurídico.
Notas
(1)NASCIMENTO, Amauri Mascaro: Curso de Direito do Trabalho. pág. 191.
(2)Uma leitura do inciso XXVI do art. 7º. permite concluir que a Constituição da República de 1988 reconhece as convenções e acordos coletivos de trabalho como um direito inalienável do trabalhador, tanto como indivíduo, quanto como membro dessa ou daquela categoria profissional.
Referências bibliográficas
Legislação
BRASIL: Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Promulgada em 05.10.1988.
BRASIL: Decreto-Lei nº. 5.452, de 01.05.1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho.
Doutrina
NASCIMENTO, Amauri Mascaro: Curso de Direito do Trabalho. 13ª. ed. revista e aumentada. São Paulo: Ed. Saraiva, 1997.
SAAD, Eduardo Gabriel: CLT Comentada. 39ª. ed. atualizada, revista e aumentada. São Paulo: Ed. LTr., 2006.