RESUMO
O presente artigo trata da identificação criminal nos moldes trazidos pela lei 12.037, em vigor desde 02 de outubro de 2009. Procura-se sobretudo analisar as inovações trazidas pela lei e tecer alguns comentários sobre a aplicabilidade desta na prática policial.
O processo de identificação criminal do acusado ou indiciado tem por escopo certificar a sua real identidade. Deste modo, evita-se o cometimento de injustiças como manter presa uma pessoa que teve seus documentos furtados ou extraviados.
O art. 6º, inciso VIII do Código de Processo Penal prevê, dentre as várias providências cabentes à Autoridade Policial, a realização da identificação criminal do acusado. Tal identificação, conforme o precitado artigo, é feita pelo processo datiloscópico. Este procedimento é oriundo da sistematização de Juan Vucetich e consiste na análise das cristas papilares dos dedos das mãos. Este processo mostra-se eficaz uma vez que assegura a certeza necessária para a identificação criminal, vez que atende aos requisitos de perenidade, imutabilidade e classificabilidade.
Ocorre que tal processo, principalmente pela sua característica de marcar os dedos com tinta preta para impressão das digitais em papel, tomou conotação de procedimento vexatório, sendo que antes mesmo do advento da Constituição Federal de 1988, houve certa discussão sobre o possível constrangimento ilegal imprimido naquelas pessoas que já foram identificadas civilmente. Neste sentido, o Supremo Tribunal Federal editou a súmula 568, aprovada em 15 de dezembro de 1976, ou seja, antes da Constituição Federal vigente, que prescreve que a identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já tenha sido identificado civilmente.
Nota-se o voto proferido pelo Ministro Antonio Neder na ocasião do julgamento de um dos precedentes (RE 80.732) que levaram à edição da referida súmula de que "os dados identificadores da pessoa podem alterar-se, e os que interessam ao inquérito policial são obviamente os que se verifiquem na ocasião em que o indiciado comete o crime e não os registrados anteriormente e possivelmente desfeitos."
Contudo, o art. 5º, inciso LVIII da Constituição Federal de 1988, contemplou dentre os direitos e garantias individuais que o civilmente identificado não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei. Desta forma, entendemos que a súmula 568 deveria ser revogada tendo em vista a nova ordem constitucional vigente. No entanto, ela continua vigente no rol das súmulas de jurisprudência dominante no STF, constante inclusive no próprio site do Pretório Excelso. Saliente-se que na referida súmula consta a observação de que a mesma está em desuso, conforme se observa do julgado abaixo:
RHC Nº 66881-0 – EMENTA: Identificação criminal. Recurso a que se nega provimento porque o acórdão recorrido denegou o habeas corpus em consonância com a jurisprudência consolidada pelo Supremo Tribunal Federal (Sum. 568). Concede-se, porém, a ordem, de ofício, ante a garantia inserta no art. 5º, LVIII, da Constituição de 1988, ulteriormente promulgada e tendo em vista que o paciente já se acha civilmente identificado.
A vedação constitucional da imposição de identificação criminal ao civilmente identificado origina-se de um passado onde esta prática era tida como um espetáculo midiático, onde a violação da intimidade da pessoa indiciada era devassada. Contudo, uma crítica pertinente é feita pelo renomado doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2007, p-144), ao asseverar que
Trata-se de norma de indevida inserção na Carta Magna, que, à época da sua elaboração, teve por finalidade corrigir a publicidade que se costumava dar ao fato de determinada pessoa – especialmente as conhecidas do grande público – ser criminalmente identificada, como se isso fosse inconveniente e humilhante. A norma tem contorno de direito individual, unicamente porque o constituinte assim desejou (formalmente constitucional), mas não é matéria para constar em uma Constituição Federal. É certo que muitos policiais exorbitaram seus poderes e, ao invés de garantir ao indiciado uma colheita corriqueira do material datiloscópico, transformaram delegacias em lugares de acesso à imprensa, com direito à filmagem e fotos daquele que seria publicamente indiciado, surpreendido na famosa situação de ‘tocar piano’.
Infelizmente, nos últimos tempos tem se observado uma série de fatos lastimáveis onde a prisão de determinadas pessoas foram transmitidas por todas as formas de publicidade possíveis. Sob a alegação da liberdade de imprensa, do princípio da publicidade dos atos processuais, a intimidade das pessoas foi devassada de forma que todo o país pode assistir um verdadeiro "espetáculo", onde as pessoas eram exibidas algemadas, em trajes de dormir, detidas no compartimento das viaturas policias etc. Tudo de uma forma que se enfatizasse o caráter criminoso do ato, sem que referidas pessoas ao menos fossem submetidas ao princípio constitucional do devido processo legal.
Tentando colocar fim a toda esta celeuma, o STF editou a súmula vinculante nº 11 que disciplina o uso de algemas. O fundamento desta súmula foi a alegação de que a imposição do uso de algemas fere o princípio da presunção de inocência do acusado, sendo justificado o seu uso apenas como ultima ratio, sendo que todo o ato deverá ser justificado e fundamentado. Da mesma forma pode-se fazer uma analogia para os casos de identificação criminal do indivíduo que fosse civilmente identificado, sendo que os casos de identificação criminal fossem utilizados como ultima ratio, somente quando as circunstâncias do caso evidenciasse a necessidade da medida.
A exceção do mandamento constitucional deverá ser trazida na legislação infraconstitucional. Como norma de eficácia contida, traz o mandamento primário de que o civilmente identificado não será submetido a processo de identificação criminal. Contudo, reserva à lei infraconstitucional especificar os casos em que este mandamento poderá ser relativizado. Dentre os diplomas normativos que trataram de relativizar o mandamento constitucional, encontram-se o Estatuto da Criança e do Adolescente (art. 109), a Lei do Crime Organizado (art. 5) e a Lei nº 10.054/2000.
Para o presente trabalho, não se analisará os dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e da Lei do Crime Organizado, atendo-se na análise da revogada lei 10.054/2000 para, após, trazer algumas observações a respeito da novel lei de identificação criminal.
As inconstitucionais previsões da lei 10.054/00
Referida lei veio disciplinar de maneira geral a exceção prevista na Constituição Federal quanto à identificação criminal. De uma forma geral, tratou a lei de prever as situações em que a identificação criminal era necessária na medida em que o documento de identidade fornecido pelo indiciado continha elementos que pudessem indicar falsificações ou então devido à sua antiguidade ou ao seu estado de conservação não fosse possível aferir a real identidade do preso.
Contudo, a lei trouxe algumas hipóteses em que a identificação criminal deveria ser feita independentemente da identificação civil, ao prever no art. 3º, inciso I, a identificação criminal dos acusados de envolvimento em casos de homicídio doloso, crimes contra o patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de documento público.
A previsão casuística destes crimes sofreu inúmeras críticas da doutrina especializada por conter um elemento de discriminação atentatório ao princípio da presunção de inocência. Nas palavras de Fernando Capez (2003, p-85),
Na primeira hipótese, qual seja, a de submeter o sujeito à identificação criminal apenas pelo fato de estar sendo indiciado por este ou aquele crime, sem qualquer circunstância que justifique a cautela, a regra nos parece inconstitucional por ofensa ao princípio do estado de inocência, dado que a simples razão de o agente estar sendo indiciado ou acusado da prática de uma infração não pode, por si só, justificar o constrangimento, salvo no caso de envolvimento em quadrilhas organizadas, capazes de forjar documentos falsos.
Além do elemento discriminatório desarazoado, outras críticas foram feitas de que referida previsão atentava também contra o princípio da igualdade. Ao se prever a obrigatoriedade de identificação criminal destes crimes, vislumbrou-se que referidos delitos geralmente são cometidos por pessoas de estratos sociais mais baixos, deixando-se ao largo crimes de igual danosidade social e que geralmente são praticados por pessoas de elevado por econômico. Conforme leciona Pedro Lenza (2006, p-565):
Concordamos com o posicionamento do Professor Damásio que vislumbra a inconstitucionalidade da primeira hipótese que, sem qualquer critério, seleciona alguns crimes, de modo aleatório e discriminadamente. O mestre indaga: ‘E a cifra dourada? E os autores de crimes de colarinho branco? Por que não foram incluídos na imposição vexatória de sujar os dedos? A razão ‘jurídica’ é simples: porque, se incluídos, ao arrumar a gravata para a foto, iriam sujar o colarinho branco!
As inovações da lei 12.037/2009
Em primeiro lugar, a lei 12.037/2009 trouxe no art. 2º um rol de documentos que são considerados para a identificação civil da pessoa. Dentre estes documentos destacam-se a carteira de identidade, mais comumente conhecida como RG, a carteira de trabalho, a carteira profissional, passaporte e a carteira de identificação funcional. Esqueceu-se, contudo, de prever um documento que rotineiramente é utilizado, qual seja, a carteira nacional de habilitação. No entanto, este documento continua hábil a ser apresentado pois o inciso VI do mencionado artigo abre o leque de possibilidades ao prever que outros documentos podem ser utilizados para a identificação do indiciado.
Seguindo a crítica sobre a inconstitucionalidade daquele rol de crimes que possibilitavam a identificação criminal independentemente da identificação civil, a novel legislação não mais o previu, sendo que doravante, somente será identificado criminalmente os casos previstos no art. 3º da lei.
Além dos casos que antes eram previstos na lei 10.054/00 e que continuam na novel lei, qual seja, de fundada suspeita de falsificação do documento ou em casos em que o estado de conservação ou distância temporal impossibilite a completa identificação dos indiciado, a lei prevê a possibilidade de identificação criminal em caso de necessidade para a investigação policial, sempre precedida de autorização judicial (art. 3, IV).
Outra hipótese interessante é a possibilidade de proceder-se a identificação criminal nos casos em que o indiciado é encontrado na posse de documentos que indiquem contrariedade na identificação. Vislumbra-se o caso hipotético de uma pessoa ser encontrada na posse de um RG onde conste o seu nome como "João da Silva" e outro documento como a carteira de habilitação onde conste o seu nome como "Marcos Donizete". Nestes casos, segundo o inciso III, a Autoridade Policial poderá proceder a identificação criminal do indiciado. Logicamente que a interpretação deste dispositivo não pode levar a situações absurdas de se proceder a identificação criminal de uma pessoa que porta um RG com o nome de solteiro e outro documento de identidade com o nome de casado.
Corroborando o que foi explicitado acima sobre o espetáculo midiático que se forma em torno da prisão de algumas pessoas, onde se observa que o uso de algemas e a identificação criminal podem levar a situações vexatórias, o art. 4º prescreve que a autoridade deverá tomar as providências necessárias para evitar o constrangimento do identificado.
Além de todas estas garantias, é reconhecido o direito do identificado de que, caso não seja oferecida a denúncia ou seja esta rejeitada, ou então no caso de sua absolvição, é lhe facultado o direito de requerer a retirada de sua identificação fotográfica do inquérito ou processo, desde que apresente a prova de sua identificação civil (art. 7).
Por fim, é necessário trazer algumas observações quanto às situações antes previstas na lei revogada e que não estão prevista na lei vigente.
A primeira situação trata da pessoa que não comprove dentro de 48 (quarenta e oito) horas a sua identificação civil. Certamente é de conhecimento de todos que muitas pessoas optam por não carregarem consigo o seu documento de identidade original. Devido aos grandes transtornos que são gerados pela expedição da 2ª via dos documentos, algumas pessoas portam cópias autenticadas de documentos de identidades. Outras, nem isso fazem, simplesmente não portando documento algum. Como exceção ao mandamento constitucional, neste caso, deve-se dar a oportunidade de que a pessoa apresente o documento de identidade em tempo hábil, sem que seja necessária a sua identificação criminal. Na ocasião da análise do dispositivo da lei revogada, o preclaro doutrinador Gustavo Badaró (2001) já previu esta situação ao asseverar:
É notório que muitas pessoas não costumam portar o documento original de identificação civil, mas apenas cópias reprográficas do mesmo. Outras sequer trazem consigo o documento de identificação civil. Diante de tais situações, o legislador conferiu ao indivíduo um prazo de 48 horas, para comprovar sua identificação civil. Somente após o transcurso do prazo, sem que tenha havido a comprovação, é que será possível a identificação criminal. Portanto, excetuando-se as hipóteses do inc. I, a não apresentação do documento de identificação civil não poderá trazer como conseqüência, a imediata identificação criminal, mas sim, a concessão do prazo legal para que se comprove a identificação civil.
Outra situação que poderia ser prevista na lei e que ficou no ostracismo trata da taxatividade da previsão de que a identificação se dê pelas formas datiloscópicas e fotográficas. Claro está que com a modernidade, outras formas de identificação do indivíduo surtiram, como é o caso da identificação pela voz, identificação pelas características biométricas, identificação pela íris. Ao tratar apenas da identificação pelo processo datislocópico e fotográfico, a dúvida surge sobre o possível constrangimento ilegal do indiciado de ser submetido a outras formas de identificação acima expostas. Na lúcida lição de Badaró (2001),
a identificação criminal não é sinônimo de identificação datiloscópica. Esta é apenas uma das formas de identificação criminal. De se destacar que, embora o art. 6º, inc. VIII, do CPP, refira-se apenas à identificação pelo processo datiloscópico, a jurisprudência vinha interpretando o dispositivo como sendo uma previsão que abrangia a identificação criminal em sua acepção mais ampla, incluindo a identificação fotográfica, considerada inclusive como elemento útil para a instrução criminal.
Desta forma, conclui-se que é plenamente cabível a identificação criminal do indiciado por outras formas que estejam à disposição da Autoridade Policial. Não se deve render homenagem ao anacronismo das normas e sim compreender que o Direito é uma ciência que visa regulamentar uma sociedade que está em constante desenvolvimento.
CONCLUSÃO
Por todo o exposto, conclui-se que a lei 12.037/09 veio corrigir distorções antes havidas na revogada lei 10.054/00 com o fito de se eliminar as hipóteses casuísticas de identificação criminal.
Longe de ser uma lei perfeita, conforme as observações acima tecidas, a lei em vigor dota a Autoridade Policial de um ferramental importante para a certificação da real identidade do indiciado. Em época onde as falsificações tomam vulto, com a divulgação de notícias como a de uma quadrilha presa acusada de produzir documentos falsos [01], inclusive com a suspeita de envolvimento de agentes públicos, cada vez mais a Autoridade Policial deverá ter cautela quando da identificação de um indivíduo a fim de que não cometa injustiças como a prisão de um inocente ou a libertação de um acusado. Porém, toda esta verificação deverá ocorrer de forma a respeitar os direitos e garantias individuais explicitados na Carta Magna e os ditames da novel legislação.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. A nova regulamentação da identificação criminal. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.8, n.100, p. 9-10, mar. 2001
CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal. 10ª Edição. Editora Saraiva. São Paulo: 2003
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 10ª Edição. Editora Método. São Paulo: 2006
NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. 3ª Edição. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: 2007
NOTA
01 JORNAL NACIONAL. Presa quadrilha que criava documentos falsos. Data: 29/09/2009. Disponível em: http://jornalnacional.globo.com/Telejornais/JN/0,,MUL1323313-10406,00-PRESA+QUADRILHA+QUE+CRIAVA+DOCUMENTOS+FALSOS.html