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Da retroatividade dos dispositivos penais da Lei 9964/00 (REFIS)

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1. Introdução

A lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, instituiu o Programa de Recuperação Fiscal – REFIS e alterou dispositivos das Leis n.º 8.036, de 11 de maio de 1990 e 8.844, de 20 de janeiro de 1.994, tendo origem na conversão da Medida Provisória n.º 2.004-5, de 11 de fevereiro de 2000.

Dispõe o artigo 1º, da lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, in verbis:

          "É instituído o Programa de Recuperação Fiscal – REFIS, destinado a promover a regularização de créditos da União, decorrentes de débitos de pessoas jurídicas, relativos a tributos e contribuições, administrados pela Secretaria da Receita Federal e pelo Instituto Nacional do Seguro Social – INSS, com vencimento até 29 de fevereiro de 2000, constituídos ou não, inscritos ou não em dívida ativa, ajuizados ou a ajuizar, com exigibilidade suspensa ou não, inclusive os decorrentes de falta de recolhimento de valores retidos".

Questão interessante e de análise impostergável refere-se à retroatividade dos dispositivos penais contidos no artigo 15, da lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, em face das denúncias recebidas anteriormente a esta, haja vista que a referida lei possibilitou a extinção da punibilidade para os que nela ingressem e a suspensão da pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nas leis n.º 8.137/90 e 8.212/91.

Os crimes a que se refere o artigo 15, da lei supra, são os previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, i. e., crimes contra a ordem tributária, especialmente, suprimir e reduzir tributo ou contribuição social e qualquer acessório, mediante uma das condutas previstas em seus incisos e no art. 95 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, dentre outros, deixar de incluir na folha de pagamentos da empresa os segurados empregado, empresário, trabalhador avulso ou autônomo que lhe prestem serviços; deixar de recolher, na época própria, contribuição ou outra importância devida à Seguridade Social e arrecadada dos segurados ou do público; obter ou tentar obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em prejuízo direto ou indireto da Seguridade Social ou de suas entidades, induzindo ou mantendo alguém em erro, mediante artifício, contrafação, imitação, alteração ardilosa, falsificação ou qualquer outro meio fraudulento, etc.

O prazo de vigência da lei está previsto no seu artigo 2º, § 1º, onde a opção pelo Programa de Recuperação Fiscal – REFIS deverá ser formalizada até o último dia útil, do mês de abril de 2000, o que lhe dá natureza de lei temporária.

No que tange à suspensão da pretensão punitiva, preconiza o artigo 15, caput, que fica suspensa a pretensão punitiva do Estado durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no REFIS.


II. a lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000 e suas normas penais.

Norma penal é tanto a que define um fato punível, imponto, abstratamente, a sanção, como a que amplia o sistema penal através de princípios gerais e disposições sobre os limites e ampliação de normas incriminadoras.(1)

O artigo 15 e seus parágrafos, da lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, tratam dos consectários penais, ditando a causa suspensiva da pretensão punitiva do Estado e a causa extintiva da punibilidade do agente. São institutos de direito penal, da mesma forma dos tratados no Código Penal Brasileiro, Decreto-lei n.º 2.848, de 07.12.40.

Para beneficiar os contribuintes optantes pelo REFIS, a norma penal deve retroagir, atingindo as denúncias anteriores à sua vigência, como manda o artigo 5º, XL, da Constituição Federal de 1988:

"A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"

Por tratar-se de norma penal inserida em texto de lei fiscal, não se abre qualquer exceção ao princípio da retroatividade da lei penal benéfica ao agente, de maneira que deve ser aplicada aos casos pretéritos.

O mesmo se diz quanto ao seu caráter temporário, pois não se aplica o artigo 3º do Código Penal na hipótese em tela, pois estamos falando de efeitos retroativos à vigência da lei temporária e de benefícios trazidos pela própria lei em estudo, o que destoa com o enunciado do artigo 3º do Códex repressivo.

Do mesmo modo, a lei ao mencionar a extinção da punibilidade dos crimes quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento antes do recebimento da denúncia criminal, tratou de nova forma de extinção da punibilidade(2), i. e., de novatio legis in mellius e, portanto, de espécie do gênero norma benéfica, devendo ser aplicada imediatamente aos casos anteriores à sua vigência. (3)

A utilização dessa norma penal aos casos anteriores, já denunciados, é uma exigência da aplicação do princípio da justiça. Realiza-se este quando cumprimos outros princípios constitucionais, o que equivale a elegê-lo a sobreprincípio, sendo uma diretriz suprema. (4)

Assim, diante dos benefícios penais trazidos pela lei nova aos contribuintes em atraso com o Fisco, não vemos como não se lhes aplicar aos casos anteriores à sua vigência, sem infringirmos o Texto Maior.


III - Das denúncias anteriores à lei n.º 9.964/00 em face dos contribuintes optantes pelo REFIS.

Doravante, em face do exposto no pórtico deste artigo, mister lograrmos a resposta para a seguinte indagação: o contribuinte denunciado anteriormente à vigência da presente lei não tem direito a extinção da punibilidade se optante pelo REFIS? A nosso ver sim. Conquanto, se não aplicarmos o artigo 5º, XL da Constituição Federal de 1988, este dispositivo da lei será em parte inconstitucional, ferindo a isonomia constitucional (art. 5º, caput), pois está presente na lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, norma penal benéfica aplicável aos casos anteriores.

O princípio da supremacia requer que todas as situações jurídicas se conformem com os princípios e preceitos da Constituição. (5)

Ademais, poderiam indagar os mais inquietos: não é clara a lei, só se aplicando a extinção da punibilidade aos casos de integral pagamento dos débitos antes do recebimento da denúncia criminal? Sim, no entanto, a lei não existia no ordenamento positivado, no momento do recebimento da denúncia, de forma a impossibilitar a aplicação desse dispositivo (art. 15, da lei) em favor dos já denunciados.

Dessa forma, para mantermos a constitucionalidade do artigo 15, da lei em estudo, devemos dar-lhe uma interpretação conforme o texto constitucional, atendendo, assim, aos anseios do legislador que, por constituir uma massa heterogênea, muitas vezes lhe falta técnica jurídica na elaboração legislativa.

O sistema jurídico deve sempre manter-se como uma unidade congruente e sem antinomias, de maneira que esta proibição se dirige aos produtores de normas da seguinte forma: Não deveis criar normas que sejam incompatíveis com outras normas do sistema". Já aos aplicadores, a proibição assume esta outra forma: "Se vocês esbarrarem em antinomias, devem eliminá-las" (6).

Assim, a melhor maneira que vislumbramos para não confrontarmos a Carta Magna é estendermos a aplicação do texto legal aos já denunciados, possibilitando aos que optaram pelo REFIS a extinção de sua punibilidade se efetuarem o integral pagamento de seus débitos, como manda a lei.

Aos que não optaram pelo REFIS não têm sua situação jurídica com o Estado alterada, seja em direito penal, tributário ou fiscal, pois tiveram a faculdade de conduta livremente exercida.

Outro forte argumento que nos leva a retroatividade da lei benéfica é a suspensão da pretensão punitiva do Estado, expresso no artigo 15, caput, que diz:

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          "É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e no art. 95 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no REFIS, desde que a inclusão no referido Programa tenha ocorrido antes do recebimento da denúncia criminal".

          Então, vejamos, qual seria a mens legislatoris em impor a suspensão da pretensão punitiva do Estado, senão possibilitar aos que optarem pelo REFIS a exclusão da antijuridicidade. Dessa forma, não podemos deixar de notar um lapso de memória do legislador aos já denunciados, pois outra explicação não nos resta.

          Ora, se a lei nova sem excluir o ilícito penal é mais favorável ao réu (contribuinte) deve ao seu caso ser aplicada, pelo que manda o artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, ipsis litteris:

"A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por sentença condenatória transitada em julgado".

De modo geral, toda norma que amplie o âmbito da licitude penal, quer restringindo o campo do jus puniendi ou do jus punicionis, quer estendendo o do jus libertatis, de qualquer forma, pode ser considerada lex mitior(7).

Assim, em respeito ao princípio da justiça, ao princípio da supremacia constitucional, ao princípio da isonomia e ao princípio da retroatividade benéfica das normas penais (artigos 5º da Constituição Federal de 1988 e artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal) o artigo 15 da lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000 deve ser aplicado aos denunciados anteriormente à sua vigência.


IV. dos processos penais em andamento

Na esfera penal, da exigência de subordinação do interesse do autor da infração penal ao interesse do Estado, resulta a pretensão punitiva. (8)

O jus puniendi in concreto do Estado surge com a prática do ilícito penal, que na época do recebimento da denúncia tinha razão de ser, no entanto, com a novatio legis in mellius a pretensão punitiva do Estado ficou suspensa momentaneamente, pois surgiu circunstância nova de direito que possibilita a suspensão da pretensão punitiva do Estado enquanto o contribuinte estiver cumprindo o parcelamento do REFIS.

Dessa forma, não há razão jurídica para o prosseguimento das ações penais anteriores à vigência da lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000, em face dos denunciados, optantes pelo Refis, em relação aos mesmos crimes tratados pela nova lei, devendo pois serem trancadas mediante habeas corpus, com fundamento no artigo 648, incisos I e IV, do Código de Processo Penal.

Já está consagrado o entendimento de que: admiti-se o habeas corpus para trancamento de inquérito policial ou de ação penal, desde que a impetração demonstre de maneira incontroversa a falta de justa causa para a persecução. (9)

Ademais, se concluído o parcelamento antes do trânsito em julgado da ação, a extinção da punibilidade atinge o próprio jus puniendi do Estado, podendo ser declarada de ofício pelo próprio juiz. (10)


V. Conclusão

Em suma, aos optantes pelo REFIS a lei concedeu regalias penais (artigo 15 da lei n.º 9.964, de 10 de abril de 2000), excluindo a antijuridicidade de suas condutas, no entanto, nada falou quanto aos já denunciados pelos mesmos crimes e optantes pelo mesmo programa.

Diante disso, por tratarem-se de normas penais benéficas aos denunciados, devem a eles ser aplicadas, sob pena de colidirem com os princípios constitucionais da justiça, da supremacia constitucional, da isonomia e da retroatividade benéfica das normas penais.


Notas

  1. Jesus, Damásio E. de. Direito Penal Parte Geral. 17º ed. São Paulo. Editora Saraiva, 1993, Vol. 1, p.10.
  2. Vide Boletim do IBCCRIM, ano 8, n.º 91 de junho de 2000, p. 8/10.
  3. STF. HC 73837/GO – DJ 06-09-96 PP-31854 – Vol. 01840-03 – Julgamento 11/06/1996 - Rel. Min. Marco Aurélio.
  4. Carvalho, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. Editora Saraiva. 10ª ed., p. 107.
  5. Silva, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Malheiros, 18º edição, p. 48.
  6. Bobbio, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Ed. UnB, 10ª edição. Pág. 110
  7. Jesus, Damásio E. de. Direito Penal Parte Geral. 17ª ed. São Paulo. Editora Saraiva, 1993, Vol. 1.
  8. Mirabete, Julio Fabbrini. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo. Editora Atlas, 1998.
  9. STJ, 5ª T., RHC 1.870-0, DJU, 4 maio 1992, p. 5897.
  10. Vide artigo 61 do Código de Processo Penal.
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Sobre o autor
Luiz Henrique Pinheiro Bittencourt

advogado em São José dos Campos (SP)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BITTENCOURT, Luiz Henrique Pinheiro. Da retroatividade dos dispositivos penais da Lei 9964/00 (REFIS). Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 5, n. 45, 1 set. 2000. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1364. Acesso em: 26 abr. 2024.

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