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Nota sobre o dilema entre o discurso do ódio e a liberdade de expressão no Canadá

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02/11/2009 às 00:00
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Conclusão

Portanto, de um lado a decisão reconheceu que o réu violou sim a seção 13 da Lei dos Direitos Humanos em apenas uma das alegações formuladas pelo autor (no tocante ao artigo referente aos "Segredos da AIDS"); de outro, reconheceu a incompatibilidade da seção 13 (que cuida do discurso do ódio), combinada com as seções 54(1) e (1.1) da Lei dos Direitos Humanos, em relação ao dispositivo contido na seção 2(b) da Declaração de Direitos e Liberdades, que assegura a liberdade de expressão, todas do Canadá. É que aquelas restrições estabelecidas à liberdade de pensamento, crença, opinião e expressão não seriam limites razoáveis dentro do significado da seção 1 da Declaração.

Diante disso, e atendendo as particularidades do sistema jurídico canadense, a Corte deixou de aplicar os dispositivos da Lei dos Direitos Humanos no tocante à alegação do autor contra o réu, bem como não expediu qualquer ordem contra ele.


Notas

  1. KRASHINSKY, Susan. Canadian Human Rights Tribunal: Hate speech law ‘violates’ charter. The Globe and Mail. Canadá, p. A5, 03.09.2009. Disponível na internet: http://www. theglobeandmail.com/news/national/hate-speech-law-violates-charter-rights-tribunalrules/article1273956/ [04.09.2009].
  2. A referida lei amplia a vedação às práticas discriminatórias. Divide-se em quatro partes principais: as discriminações proibidas, a Comissão de Direitos Humanos Canadense, as práticas discriminatórias e disposições gerais, e a aplicação. Logo na primeira parte, que compreende as seções 5 a 25, destaca-se a 13 sobre as mensagens de ódio (hate messages): "13. (1) It is a discriminatory practice for a person or a group of persons acting in concert to communicate telephonically or to cause to be so communicated, repeatedly, in whole or in part by means of the facilities of a telecommunication undertaking within the legislative authority of Parliament, any matter that is likely to expose a person or persons to hatred or contempt by reason of the fact that that person or those persons are identifiable on the basis of a prohibited ground of discrimination". Em seguida, traz a exceção: "(2) Subsection (1) does not apply in respect of any matter that is communicated in whole or in part by means of the facilities of a broadcasting undertaking". O próximo dispositivo dispõe: "(3) For the purposes of this section, no owner or operator of a telecommunication undertaking communicates or causes to be communicated any matter described in subsection (1) by reason only that the facilities of a telecommunication undertaking owned or operated by that person are used by other persons for the transmission of that matter". Disponível na internet: http:// www.efc.ca/pages/law/canada/canada.H-6.part-1.html#5 [04.09.2009]. Para informações didáticas sobre a lei, consultar: http://en.wikipedia.org/wiki/Canadian_Human_Rights_Act [04.09.09].
  3. Disponível o sítio de tal tribunal na internet: http://www.chrt-tcdp.gc.ca/ [04.09.09].
  4. A decisão (2009 CHRT 26, Warman v. Lemire, j. 02.09.2009) contabiliza 107 laudas e pode ser encontrada no seguinte sítio: http://chrt-tcdp.gc.ca/search/ files/t1073_5405chrt26.pdf [04.09.09].
  5. O dispositivo contido na seção 24(1) estabelece que: "Anyone whose rights or freedoms, as guaranteed by this Charter, have been infringed or denied may apply to a court of competent jurisdiction to obtain such remedy as the court considers appropriate and just in circumstances". Disponível na internet: http://laws.justice.gc.ca/en/charter/ [04.09.09].
  6. Uma vez estabelecido o caso prima facie, aí o ônus argumentativo e da prova passa ao réu, que deve fornecer uma explicação razoável para o seu comportamento supostamente discriminatório. Se o réu logra fornecer a tal explicação razoável, aí o autor ou requerente tem a obrigação de demonstrar que a explicação dada não passa de simples pretexto e que a motivação real por detrás das ações do réu foi, de fato, discriminatória.
  7. Depois de aprofundado exame acerca da propriedade e responsabilidade pelo conteúdo do referido website, inclusive com a oitiva de especialista versado no assunto, o Tribunal decidiu que havia evidência insuficiente para estabelecer, mesmo que prima facie, que o réu (ou um grupo de pessoas no qual ele se incluísse) divulgou ou deu causa à divulgação do material encontrado no JRBooksonline.com, consoante prevê a seção 13.
  8. Neste particular, o Tribunal lembrou que o conteúdo de tal material postado, a exemplo do anterior, não foi mencionado no requerimento inicial do autor, tendo sido postado depois de iniciado o processo e retirado do ar antes da decisão. Cuidando-se da postagem do Stormfront.org, no entanto, a decisão reconheceu que foi colocada no ar pelo réu, em violação à referida seção 13.
  9. O Tribunal mencionou o caso em que o mesmo autor acionou Craig Harrison pela postagem de mensagens ofensivas e cujas violações à seção 13 foram reconhecidas quando julgado pela Corte. A decisão (2006 CHRT 30, Warman v. Harrison, j. 15.08.2006) contabiliza 32 laudas e pode ser encontrada no seguinte sítio: http://chrt-tcdp.gc.ca/search/files/t1072_5305ed15aug06.pdf [04.09.09].
  10. No interior da divisão do mapa do website, que contava com dezesseis diferentes seções, a impugnação do autor dirigiu-se apenas e tão somente ao quadro de mensagem (message board) e ao quadro de colunistas ("controvertidos").
  11. Não subsiste a alegação de que o réu deu causa à comunicação de mensagens de ódio porque ele desenvolveu um website que pode naturalmente incitar outros, como Craig Harrison, a engajar-se na prática discriminatória pela postagem de mensagens do quadro de mensagens próprio do website que podem, aí sim, constituir mensagens de ódio. Ora, dar causa à comunicação é situação distinta de incitar, como se verifica pelo cotejo entre as seções 13 e 12 da Lei dos Direitos Humanos. É que o réu tomou os cuidados recomendáveis na situação específica, isto é, advertiu sobre as leis aplicáveis e colocou-se à disposição, como administrador do quadro de mensagens, para retirar qualquer conteúdo considerado por qualquer um como impróprio ou ofensivo. A Comissão de Direitos Humanos do Canadá, contudo, defendia que o administrador do website deveria ser responsabilizado sim pelo seu conteúdo, na medida em que deve mantê-lo sempre de acordo com a Lei dos Direitos Humanos, independentemente de reclamação que lhe chegue a respeito. Neste sentido, a Comissão traz aos autos uma série de precedentes nos quais o Tribunal reconhece a responsabilidade do administrador do website nos termos da seção 13 quanto às mensagens de ódio encontradas em tais websites.
  12. Deste modo, pela distinção (distinguishing) dos fatos e das evidências daqueles casos com este, o Tribunal não se viu obrigado a segui-los desta vez. Quanto às mensagens postadas por Craig Harrison, não subsiste qualquer responsabilidade para o réu como administrador do website, vez que não foi comprovada a sua intenção de dar causa à comunicação e ela não pode ser inferida ou presumida.
  13. Para relacioná-lo às mensagens de terceiros que foram postadas, seria necessária a demonstração, ao menos prima facie, de que o réu sabia ou tinha conhecimento delas. Não tendo participado ativamente do quadro de mensagens, descabe relacioná-lo à postagem de tais mensagens no message board.
  14. Em síntese, o comunicado à imprensa sugere que se tenha uma "moratória" sobre a questão imigratória até a extensão de apoio ou desaprovação necessária para o estabelecimento da política imigratória atual. Segundo o autor, consoante a mensagem de ódio apontada destaca-se o caráter ameaçador do imigrante, que parece privar os canadenses de sua subsistência, segurança, liberdade de expressão e bem-estar geral. De modo particular, os imigrantes não brancos são apresentados como uma preocupação devido às questões de criminalidade e saúde, bem como uma ameaça aos trabalhos e salários dos canadenses brancos.
  15. A despeito de trazer semelhanças com outros casos julgados anteriormente pela Corte, inclusive nos quais foram reconhecidas violações à Lei dos Direitos Humanos, aqui a postagem do réu foi considerada com espectro mais abrangente do que a crítica dirigida exclusivamente à posição dos judeus a respeito do holocausto e com teor menos denso e agressivo do que aqueles anteriormente enfrentados pelo Tribunal. Deste modo, o artigo postado soa mais como sujeito à discussão histórica sobre a II Guerra Mundial antes de se limitar a um ataque ao grupo particular de judeus. De fato, antes disso, trata-se de um ataque contra todos, desde os comunistas, Stálin, a Inglaterra, a União Soviética, até mesmo Churchill e outros. Embora o artigo ofenda e até magoe aqueles que foram pessoalmente afetados pela guerra e pelo nazismo, bem como pelo holocausto, colocando em dúvida os números conhecidos, não houve qualquer exortação a tomada de qualquer ação ou comparações grotescas que justificassem a violação frontal da seção 13.
  16. Apesar de conter uma mensagem negativa para a convivência pacífica, não seria correto dizer que a idéia de banimento, segregação ou erradicação do grupo de pessoas não brancas e imigrantes poderia salvar as demais, que presumivelmente seriam brancos e canadenses.
  17. Neste sentido, ao final de cada um dos três artigos lia-se uma anotação incentivando o leitor a enviar suas peças para o administrador do website, isto é, o réu. Tal identidade entre ambos foi admitida pelo réu em diferentes oportunidades durante o julgamento. Deste modo, o Tribunal entendia, ainda que prima facie, que cada um dos três artigos que serão vistos em seguida dependiam do envolvimento pessoal e direto do réu para que fossem postados no website. Daí pode ser razoavelmente inferido que ele conhecia o conteúdo de tais artigos. O próprio réu não buscou em momento algum provar ou demonstrar que não detinha o conhecimento de tal material.
  18. Desde então não houve qualquer alegação de que o artigo permanecesse no ar ou não tivesse sido efetivamente retirado de lá. Ao material que foi impugnado em outra investigação, trazida para os autos em questão quando da instrução, foi imputada pela Comissão possível discriminação sob as formas de raça, religião ou origem étnica. O réu, de sua parte, sustentou que o artigo constituiu um comentário essencialmente político que denunciava restrições à sua liberdade de expressão e de outros, mesmo que se cuidasse do Holocausto.
  19. Foi trazido como decorrência daquela outra investigação mencionada anteriormente. De igual modo, na ocasião do julgamento já havia sido retirada do ar pelo réu. O artigo teceu considerações sobre os resultados da eleição de 2000, na qual o articulista claramente se desapontou com a vitória do Partido Liberal, especialmente observando-se as tendências eleitorais do Oeste do País, inclusive levando-se em conta a divisão que há entre os cidadãos de língua inglesa e francesa. Precisamente jogando com os elementos históricos e estatísticos a respeito de tais dados é que o articulista teceu a sua crítica ao governo da situação de então e assinalou o aumento da criminalidade. Ainda que os juízes do tribunal tenham concordado que os termos usados não foram gentis e se orientaram no sentido de que a presença de novos imigrantes no Canadá não seria bem-vinda, o artigo em questão não expressa as emoções profundas de ojeriza, calúnia e vilipêndio contemplados pela seção 13.
  20. O sistema médico (medical establishment) e as autoridades de saúde pública receberam duras críticas pela falha na sua prevenção, enquanto dedicaram seus esforços na proteção da identidade dos contaminados. De acordo com o artigo, a razão subjacente a tal "traição" ou "mentira" seria o "tremendo poder dos homossexuais organizados" que seriam "muito ajudados pelos órgãos controlados da mídia". As "mentiras" divulgadas pelo governo e pela mídia foram citadas em tom igualmente crítico. Dentre tais mentiras, o artigo exemplificou a divulgação recorrente de que o sexo seguro pode prevenir a transmissão do HIV e a doação de sangue é segura. Muitas críticas foram explicitadas pelo artigo referido, culminando com o estereótipo das pessoas mais infectadas pela doença: negros.
  21. Afastá-los, de acordo com o artigo, buscaria interromper a progressão desta epidemia mortal entre as pessoas. A necessidade de segregação de tais pessoas dos demais (heterossexuais brancos) seria a mensagem claramente deixada. Ademais, o artigo contava com uma linguagem altamente inflamatória no sentido de que os homossexuais seriam descritos como uma minoria pervertida e de sexualmente desviados. Em sua contestação, o réu defendeu que o artigo se baseava em fatos verdadeiros que foram comprovados pela origem das referências feitas. Durante a etapa de instrução do processo, juntou cópia dos estudos e das estatísticas que o artigo mencionava. Além disso, o réu sustentou que o artigo escrito pretendeu colocar em discussão a ameaça representada pelo HIV/AIDS, de acordo com a pesquisa realizada pelo articulista e de modo a colocar os leitores a salvo, bem como evitando o contato próximo com aqueles grupos de alto risco.
  22. Neste caso, pouco importa se os pontos de vistas ali expostos se baseiam em "fatos" ou não, já que a Declaração de Direitos e Liberdades não estabelece qualquer exceção às declarações verdadeiras. Consoante o relator do caso, o material encontrado no artigo sobre os "Segredos da AIDS" expressa de modo incomum e forte o sentimento profundo de ojeriza e calúnia em relação aos homossexuais. Linguagens extremas são usadas para caluniá-los e aos seus estilos de vida. Longe de utilizar dados científicos e estatísticos de modo desapaixonado, o artigo adota tom alarmista, quase histérico.
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Sobre o autor
Fábio Martins de Andrade

Autor dos livros "Direito Tributário - A advocacia no STF em temas estratégicos" (Ed. Lumen Juris, 2018), "Grandes questões tributárias na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal" (Ed. Lumen Juris, 2018), "A polêmica em torno do voto duplo: A inconstitucionalidade do voto de qualidade nas decisões do CARF" (Ed. Lumen Juris, 2017), "Aspectos sobre a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base da COFINS e do PIS" (Ed. Lumen Juris, 2017), "Modulação e Consequencialismo" (Ed. Lumen Juris, 2017), "Modulação & STF: A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre modulação" (Ed. Lumen Juris, 2016), "Caso Marbury v. Madison: O nascedouro do controle de constitucionalidade" (Sergio Antonio Fabris Editor, 2016), "Artigos jurídicos em escritos jornalísticos" (Ed. Alameda, 2016), "Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF" (Ed. Quartier Latin, 2011) e "Mídi@ e Poder Judiciário: A influência dos órgãos da mídia no processo penal brasileiro" (Ed. Lumen Juris, 2007). Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ, Mestre em Ciências Penais pela Universidade Candido Mendes – UCAM e Pós-graduado em Direito Penal Econômico na Universidad Castilla-La Mancha - UCLM, Espanha, pós-graduado em Criminologia na Universidad de Salamanca - USAL, Espanha, pós-graduado em Control Judicial de Constitucionalidad na Universidad de Buenos Aires - UBA, com especialização e aperfeiçoamento em Direito Processual Constitucional na UERJ. Membro de diversas instituições, dentre as quais: Instituto dos Advogados Brasileiros, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, Associação Brasileira de Direito Financeiro, Instituto Brasileiro de Direito Constitucional, International Fiscal Association, Associação Brasileira de Direito Tributário, Instituto Brasileiro de Ciências Criminais e Associação Internacional de Direito Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ANDRADE, Fábio Martins. Nota sobre o dilema entre o discurso do ódio e a liberdade de expressão no Canadá. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2315, 2 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13663. Acesso em: 23 dez. 2024.

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