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A quebra da isonomia nos crimes de sonegação fiscal

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29/10/2009 às 00:00
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4. Da reparação do dano nos crimes contra a ordem tributária

Até a reforma de 1984 do Código Penal, a reparação do dano era considerada mera circunstância atenuante (antigo art. 48, inc. IV, "b" do CP).

A partir de uma construção jurisprudencial do STF, no entanto, houve a criação de uma exceção a essa regra. Segundo o Pretório Excelso, não haveria justa causa para a denúncia nos crimes de fraude de pagamento por meio de cheque (art. 171, § 2°, VI do CP), se fosse realizado o pagamento do cheque antes do início da ação penal, o que acabou originando a súmula 554, de 1976 (MIRABETE, 2001, p. 165).

A reforma do Código Penal de 1984, por uma questão de política criminal, e também por inspiração da referida súmula, criou o instituto do arrependimento posterior, constante no art. 16 do CP, que dispõe:

Art. 16 - Nos crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será reduzida de um a dois terços.

O dispositivo, portanto, é aplicável quando, após a consumação do crime, o agente pratica uma nova ação para desfazer os males que a sua atitude delitiva provocou.

Como se observa pelo teor do artigo, trata-se de uma causa de diminuição da pena obrigatória e, quanto mais célere o ressarcimento do dano, maior a redução da reprimenda. Exigem-se, no entanto, alguns requisitos para que a hipótese do art. 16 seja aplicável: a reparação precisa ser completa, pessoal e voluntária (MIRABETE, 2001, p. 166).

Com relação ao primeiro requisito, vê-se que o CP não admite a reparação parcial do dano, que deve, portanto, ser integral.

Ademais, ela precisa ser realizada pelo agente, pois a finalidade da lei é que o autor do delito se mostre arrependido ou pelo menos disposto a mitigar os efeitos danosos de sua atitude pretérita. Sendo assim, se a reparação ou restituição da coisa for realizada por terceiro, não será aplicável a regra geral do arrependimento posterior constante no art. 16.

É preciso também que se diga que a reparação precisa ser voluntária, não havendo a hipótese de diminuição da pena se ela for conseqüência de qualquer forma de coação, de sentença judicial etc. No entanto, não precisa ser necessariamente espontânea, podendo, dessa forma, ser fruto de um conselho ou de um convencimento por parte de terceiro (JESUS, 2002, p. 348).

Finalmente, como resta evidente pela redação do art. 16, só será aplicável o arrependimento posterior se a reparação do dano ocorrer até o recebimento da denúncia. Se a atitude do agente de reparar ocorrer após o recebimento da denúncia, mas antes da sentença, será apenas uma circunstância atenuante (art. 65, inc. II, "b").

No entanto, se até a sentença condenatória o agente ainda não houver feito a reparação, tem-se que a decisão do juiz torna certa a obrigação de reparar o dano (art. 93, I do CP) – ou seja: a partir de então, a remediação do prejuízo, por ser um dos efeitos da sentença, passa a ser um dever do condenado [30].

A descrição do arrependimento posterior até o momento exposta está relacionada às regras do instituto aplicáveis aos tipos constantes no próprio Código Penal e também à legislação penal especial, salvo disposição expressa em contrário, por determinação do art. 12 do CP.

A regra do constante no art. 16 do CP – arrependimento posterior como causa de diminuição da pena –, todavia, não se aplica aos crimes de sonegação fiscal.

Isso ocorre porque a legislação penal tributária determina que a reparação do dano, nessas espécies de delitos, constitui causa de extinção da própria punibilidade, permitindo-se, inclusive, a reparação do dano diferida, ou seja, por meio do parcelamento da dívida tributária.

Tal tratamento faz com que as formas e condições dessa reparação do dano no direito penal tributário sejam muito mais benéficas do que as regras gerais da parte geral do CP, como restará demonstrado.

4.2. Breve histórico da extinção da punibilidade nos crimes de sonegação fiscal

Quando a lei 8.137/90 foi promulgada, dizia o seu artigo 14:

Art. 14. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1° a 3° quando o agente promover o pagamento de tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.

Apenas um ano e três dias após a lei 8.137/90, é promulgada a lei 8.383/91, que revogou o supra referido art. 14, provavelmente porque esse artigo criava uma causa de punibilidade deveras benéfica e que ia de encontro à sistemática do direito penal brasileiro.

Em 27/12/1995, todavia, houve a promulgação da lei 9.249. O art. 34 dessa lei praticamente repristinou o revogado art. 14 da lei 8.137/90 (LOTT, 2002):

Art. 34. Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia.

Finalmente, concluindo o presente histórico legislativo, foi promulgada a lei 10.684/03, que, dentre outras medidas, instituiu o Parcelamento Especial (PAES – mais conhecido como REFIS [31] II) junto à Secretaria da Receita Federal ou à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

Essa lei ainda determinou, em seu art. 9º, uma norma de direito penal tributário:

Art. 9º É suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1o e 2o da Lei no 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento.

§ 1º A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva.

§ 2º Extingue-se a punibilidade dos crimes referidos neste artigo quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios.

No entanto, a aplicação do supra transcrito art. 9º – benefício sem equivalentes no direito penal pátrio – acabou não ficando adstrita aos tributos referidos na lei 10.684/03.

Por uma construção da doutrina e da jurisprudência, esse artigo acabou passando a ser aplicado ao direito penal tributário como um todo, independentemente da espécie de tributo sonegado e independentemente do momento da ocorrência do crime contra a ordem tributária, o que afronta a lógica jurídica e a proporcionalidade e isonomia do nosso direito penal.

4.3. Do "arrependimento posteriormente postergado" e do "arrependimento posteriormente postergado em parcelas": a incondicionalidade da "reparação" do dano nos crimes contra a ordem tributária

4.3.1. Sobre a extensão do art. 9º da lei 10.684/90 a todo o direito penal tributário

Analisando-se a doutrina e a jurisprudência, percebe-se que foi no artigo "pagamento e parcelamento nos crimes tributários", da advogada Heloisa Estellita, que pela primeira vez foi cogitada a extensão do art. 9º a todos e quaisquer crimes contra a ordem tributária, praticados contra qualquer ente tributário, em qualquer época (ESTELLITA, 2003).

Para justificar o seu entendimento, primeiramente a autora diz que o art. 9º, caput – que dispõe sobre o parcelamento –, criou uma regra geral para disciplinar todo o direito penal tributário, aplicando-se a qualquer parcelamento de tributo municipal, estadual ou federal. Ademais, sendo tal norma mais benéfica, deveria retroagir e ser aplicável a toda e qualquer sonegação, mesmo que anterior à referida norma.

Tal extensão do art. 9º seria aplicável ao parcelamento descrito em seu caput, pois, segundo Heloisa Estellita, ele não teria feito alusão expressa que apenas se aplicaria aos parcelamentos do REFIS II, como acontecia com a lei do REFIS I.

Com relação ao §2º do art. 9º da 10.684/03 – que trata do pagamento do tributo –, a autora sustenta que ele também se estenderia a todo e qualquer delito fiscal, haja vista o citado §2º também não ter feito alusão expressa que se aplicaria apenas aos casos de sonegação incluídos no REFIS II.

Ainda com relação à extensão do §2º do art. 9º da 10.684/03, a referida advogada também afirma que, se o mero parcelamento teria o condão de suspender a pretensão punitiva com relação a qualquer delito contra a ordem tributária, com mais razão o pagamento integral deveria extinguir de plano a punibilidade, sob pena de se ferir o princípio da igualdade [32].

Corroborando a tese apresentada por Heloisa Estellita, o advogado Dante Aguiar Arend apresenta os seguintes argumentos, em artigo publicado em sítio eletrônico (AREND, 2003):

O benefício poderá ser aplicado mesmo que não haja legislação estadual e legislação municipal instituindo novos programas de refinanciamento das suas respectivas dívidas, a uma porque o artigo 9º não faz qualquer exceção, a duas porque a competência para legislar em matéria de Direito Penal é exclusiva da União Federal, a três porque é inadmissível e ofensivo à isonomia constitucionalmente garantida, limitar-se as benesses do artigo 9 , da Lei n 10.684/2003, apenas aos privilegiados que puderam optar pelo PAES.

Tal extensão foi acolhida pelo STF no HC 81.929, no voto-vista do Ministro Cezar Peluso, que foi seguido à unanimidade pela Primeira Turma do STF. Nesse voto, o Ministro chegou, inclusive, a transcrever parte do supra citado artigo de Heloisa Estellita.

4.3.2. Críticas à extensão do art. 9º da lei 10.684/9 a todo o direito penal tributário

Apesar de esse entendimento do STF estar sendo seguido pelos tribunais pátrios, há fortes argumentos que se contrapõem a ele.

Primeiramente, é preciso que se diga que a lei 10.684/03 foi promulgada para instituir o PAES (ou REFIS II), pelo que os seus dispositivos devem ser interpretados tendo em consideração esse dado.

Tanto assim o é que a ementa da referida lei – que deve ser levada em consideração na interpretação do dispositivo legal – dispõe: "Altera a legislação tributária, dispõe sobre parcelamento de débitos junto à Secretaria da Receita Federal, à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e ao Instituto Nacional do Seguro Social e dá outras providências".

Sendo assim, por uma interpretação sistemática da lei 10.684, esse REFIS II – e o pagamento integral previsto no §2º do art. 9º –, nos termos do art. 1º da lei 10.684/03, apenas se aplicaria aos débitos com vencimento até 28 de fevereiro de 2003. Trata-se, portanto, de uma lei temporária, aplicável a débitos até o referido vencimento. Após essa data, os dispositivos referentes ao REFIS II, e constantes na lei 10.684/03, inclusive o seu art. 9º, deveriam perder sua eficácia, como é a regra das leis temporárias [33].

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Pode-se ainda dizer que, em virtude de sua ementa da lei, assim como em razão do que dispõe o seu art. 1º, a lei 10.684/03 deveria apenas ser aplicável aos débitos "junto à Secretaria da Receita Federal, à Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional e ao Instituto Nacional do Seguro Social", pelo que não poderia incidir sobre os tributos estadual e municipal.

E mais. É preciso lembrar que o art. 9º encontra-se topograficamente inserido dentre os dispositivos da lei 10.684/03 que tratam do REFIS II, não dentre as normas que dão "outras providências", pelo que resta evidente que é uma norma destinada a determinados tributos, até uma certa época.

Além disso, o caput do art. 9º diz que é suspensa a punibilidade "durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento" (grifo nosso). Assim, não restam dúvidas de que o art. 9º não se refere a um regime de parcelamento qualquer, mas sim a um regime específico, qual seja, o REFIS II.

E o mesmo pode ser dito com relação ao pagamento passível de extinguir a punibilidade, previsto no §2º, do art. 9º, que deve ser interpretado a partir do caput do artigo. Assim, essa extinção pelo pagamento apenas pode ser aplicável aos tributos sujeitos ao REFIS II, que são aqueles referidos pela lei 10.684.

Ou seja: o artigo 9º precisa ser interpretado a partir do contexto normativo no qual ele está inserido, não se podendo ser excomungado da lei 10.684/03 e transformado em regra geral de direito sem qualquer fundamento hermenêutico.

Finalmente, não se pode esquecer que as normas excepcionais (como essa do art. 9º, que cria situações sui generis de suspensão da pretensão punitiva e de extinção da punibilidade) devem ser interpretadas restritivamente, ou, no máximo, em sua literalidade, inclusive por disposição expressa do art. 111 do CTN:

Art. 111. Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre:

I – suspensão ou exclusão do crédito tributário

4.3.3. A quebra da isonomia penal no "arrependimento posteriormente postergado" e no "arrependimento posteriormente postergado em parcelas"

A péssima técnica legislativa do art. 9º da lei 10.684/03 forneceu os subsídios que parte dos juristas precisavam para transformar um sonegador em um criminoso intocável pelo direito penal, a despeito das incongruências sistêmicas que tal situação acabou acarretando.

Em primeiro lugar, porém, é preciso demonstrar que essa tentativa de uma parcela dos juristas de interpretar as normas do direito penal tributário da forma mais benéfica possível ao contribuinte sonegador já vem de muito tempo.

É possível, por exemplo, mencionar que houve quem defendesse que o limite temporal do art. 34 da lei 9.249/95 – o qual prescrevia a extinção da punibilidade pelo pagamento até o recebimento da denúncia – constituiria uma inconstitucionalidade em certas circunstâncias (citado por PAULINO, 2002, p. 166) [34]. Ou seja: a extinção da punibilidade deveria ser possível mesmo depois do recebimento da denúncia diante de alguns casos, mesmo contra disposição expressa de lei.

Pode-se ainda citar que não foram poucos os juristas que defenderam a extensão do mesmo art. 34 da lei 9.249/95 aos contribuintes que parcelassem os seus débitos tributários (por todos: STOCO, 2001).

Para a maioria dos que defendiam a supra citada extensão do art. 34, o parcelamento constituiria uma novação, pelo que o crédito tributário original – proveniente de uma conduta prevista como crime – restaria liquidado, surgindo uma nova dívida, na qual não persistiriam os efeitos penais do crédito anterior (STOCO, 2001, p. 641-642).

Sendo assim, a mera concessão do parcelamento constituiria causa de extinção da punibilidade, independentemente do adimplemento das parcelas [35]. Assim entendeu o STJ no Recurso em Habeas Corpus 11.598. Felizmente, o STF entendeu de maneira diversa no inquérito nº 1.028, exigindo o pagamento de todas as parcelas para que a punibilidade pudesse restar extinta.

Sem dúvida alguma, um entendimento como o do STJ, e defendido por parte da doutrina, seria um convite à fraude, pois, uma vez concedido o parcelamento, o contribuinte não precisaria pagar nenhuma parcela (ou apenas uma ou duas) para já se ver livre dos efeitos penais da sonegação anteriormente cometida.

Interessante que a supra alegada inconstitucionalidade do art. 34 da lei 9.249/95, assim como a sua extensão aos casos de mero parcelamento, eram baseadas no argumento de que entender diferente seria afrontar a isonomia e a proporcionalidade do sistema.

Ou seja: a lógica de quem defende essas posições é que não podem existir sonegadores que não estejam sob a égide de normas penais descriminalizantes. O seu pressuposto parece ser: "todos os sonegadores são iguais perante a lei".

Tal desiderato de universalização da descrimalização dos crimes contra a ordem tributária foi finalmente conquistado com o art. 9º da lei 10.684/03.

Não se sabe se por péssima técnica legislativa, por dolo eventual ou por deliberado desejo de descriminalizar os delitos fiscais, o art. 9º da lei 10.684/03 passou a permitir que o parcelamento do débito suspendesse, a qualquer tempo, a pretensão punitiva do Estado nos crimes dos arts. 1º e 2º da lei 8.137/90 (art. 9º, caput da lei 140.684), como referido anteriormente.

Ademais, ainda foi retirado qualquer termo final para que o pagamento da dívida fiscal fosse hábil a extinguir a punibilidade nesses mesmos crimes (art. 9º, §2º), como também já foi exposto.

Finalmente, todos os sonegadores passaram a possuir os mesmos privilégios.

Assim, tem-se que a regra geral dos efeitos da reparação do dano consta no art. 16 do CP – que disciplina o arrependimento posterior – não se aplica à lei 8.137/90. Tal reparação constitui uma mera causa de diminuição da pena e que ainda está condicionada a ser efetuada antes do recebimento da denúncia, sob pena de se transformar em mera atenuante genérica. Se a reparação se der depois da sentença, a ela passa a ser um dever do condenado (art. 91, I do CP), conforme anteriormente explicitado.

Já nos crimes contra a ordem tributária, a reparação do dano – que é o pagamento integral do débito fiscal – extingue a própria punibilidade, independentemente de quando efetuada (se antes ou depois da denúncia).

É assim que o sonegador pode até mesmo aguardar o trânsito em julgado de sua condenação penal para, só depois, efetuar a "reparação do dano", o que impossibilitará o Estado de puni-lo.

Fazendo-se um paralelo com a nomenclatura existente no Código Penal para o instituto presente no art. 16, percebe-se que os crimes de sonegação permitem um arrependimento que pode ser "postergado para depois". Ou seja, um "arrependimento posteriormente postergado", no qual a reparação do dano nem ao menos precisa ser feita pessoalmente pelo agente; o pagamento efetuado por qualquer pessoa extingue a punibilidade.

E não é só. Como o parcelamento, a qualquer tempo, suspende a pretensão punitiva do Estado (art. 9º da lei 10.684/03), tem-se um "instituto" no direito penal tributário que ainda vai além do próprio "arrependimento posteriormente postergado".

É que, quando o agente parcela o seu débito, ele passa a reparar o dano em prestações. Trata-se, portanto, de um "arrependimento posteriormente postergado em parcelas", instituto esse ainda mais em desconformidade com o direito penal pátrio. Aqui, mais uma vez, não precisa haver uma ação direta agente: o parcelamento ser pago por qualquer pessoa.

Aqueles que defendem tais expedientes – tanto na doutrina, quanto na jurisprudência – parecem esquecer que, em verdade, quem pratica um crime contra a ordem tributária comete uma fraude qualificada pelo resultado de lesão ao erário público (não exigível pela lei 8.137, no caso dos crimes do art. 2º).

Não se trata aqui de pessoas que simplesmente não adimpliram seus impostos, tornando-se devedoras do Fisco. Essas devem ser interpeladas civilmente para pagar apenas a quantia em dinheiro que devem. Não há crime aqui, isso é certo.

No entanto, o empresário que sonega vale-se de uma falsidade ideológica, de uma falsificação de documento ou de um estelionato com o fim específico de não pagar o tributo devido. Tais crimes precisam ser punidos efetivamente nos moldes da legislação penal, pois são efetivamente ilícitos penais.

Diante dessa total quebra da isonomia e da proporcionalidade, a declaração da inconstitucionalidade do art. 9º da lei 10.684/03 (ou a sua revogação) se faz premente, o que restabeleceria em boa parte a coerência do ordenamento jurídico.

Outra forma de restabelecer a lógica sistêmica do direito pátrio seria a via inversa: estender os privilégios concedidos aos crimes contra a ordem tributária aos tipos congêneres constantes no Código Penal, como a falsidade ideológica, a falsificação de documento, o estelionato etc., e a outros tipos que fossem considerados igualmente lesivos.

Essa última solução certamente seria um absurdo e, quando exposta de maneira tão direta, evidencia o quão absurdo é o tratamento jurídico dado aos delitos fiscais.

4.3.4. O avesso do avesso: a quebra do princípio da consunção/da especialidade como solução proposta para combater a quebra da isonomia em virtude dos crimes de sonegação

O princípio da especialidade é assim definido pelo penalista Cezar Bitencourt (2000, p. 130):

Considera-se especial uma norma penal, em relação a outra geral, quando reúne todos os elementos desta, acrescidos de mais alguns, denominados especializantes. Isto é, a norma especial acrescenta elemento próprio à descrição típica prevista na norma geral.

Tal definição pode ser complementada pela doutrina de Damásio de Jesus (2002, p. 110).

Além disso, o princípio da especialidade possui uma característica que o distingue dos demais: a prevalência da norma especial sobre a geral se estabelece in abstracto, pela comparação das definições abstratas contidas nas normas, enquanto os outros exigem um confronto em concreto das leis que descrevem o mesmo fato.

Já o princípio da subsidiariedade é assim definido por Bitencourt (2000, p. 132): "pelo princípio da consunção, ou absorção, a norma definidora de um crime constitui meio necessário ou fase normal de preparação ou execução de outro crime".

E complementando a lição supra transcrita, diz Damásio de Jesus (2002, p. 114):

Na relação consuntiva não há o liame lógico que existe na da especialidade. A conclusão é alcançada não em decorrência da comparação entre as figuras típicas abstratas, mas sim pela configuração concreta do caso de que se trata.

Pela proximidade entre ambos os princípios, há divergência se, nos crimes de sonegação, deveria ser aplicável o princípio da consunção (ARRUDA, 2005) ou da especialidade (LOVATTO, 2000, 19), quanto ao crime de falso.

No entanto, seja qual for o princípio aplicável ao caso, é cediço que em ambas as hipóteses o crime de falso deveria ser absorvido pelo delito fiscal, como bem explicita o parecer nº 365/2007, da Procuradora Regional da República Eliane de Albuquerque Oliveira Recena (2007):

Ocorre que, malgrado nossa dúvida, quer se adote um, o princípio da especialidade, quer se adote outro, o princípio da consunção, para solucionar, no caso, o conflito aparente de normas que inegavelmente existe, de qualquer sorte, estaríamos, como estamos, frente a um só crime, qual o da Lei especial dos crimes contra a ordem tributária que, especial ou absorvido, é o único a ser imputado à denunciada.

A despeito de os acima referidos princípios determinarem que o crime-meio – no caso, o crime de falso – não deve ser punido, a aplicação irrestrita do art. 9º da lei 10.684/03 tem ocasionado posições em sentido contrário, como defende Élcio Arruda (2005):

Contudo, a recusa a beneplácito legalmente instituído em favor do réu, por certo, suscita enfática insurreição, tanto mais por envolver o seu status libertatis. Daí, talvez, poder se encontrar um ponto de equilíbrio, à luz do princípio da proporcionalidade. E a justa medida, a nosso sentir, é permitir a fruição da benesse, mas, limitar-lhe os efeitos ao crime tributário. Vale dizer, o crime-meio teoricamente perpetrado para consecução da sonegação subsiste hígido e, como tal, não comporta solução de descontinuidade persecutória. É que, soterrado (pagamento à vista) ou suspenso (pagamento parcelar) o crime-fim (tributário), arreda-se a relação consuntiva então forjada, de sorte ao crime-meio (falso) aflorar passível de punição de forma autônoma. Extingue-se o conflito aparente de normas então instaurado.

Portanto, independentemente de parcelamento ou pagamento à vista, o processo criminal deve ter curso no concernente ao crime de falso subjacente ao de natureza tributária.

Posição semelhante, porém não tão extrema, tem sido adotada pelo STJ e pelo TRF 1ª Região. Segundo esses tribunais, se a fraude for praticada após a sonegação fiscal, com o intuito de garantir a isenção da responsabilidade penal, ela deve ser considerada crime autônomo, como se percebe em trecho do acórdão abaixo ementado:

(omissis)

II – O delito constante do preceito primário do art. 299 do CP, somente é absorvido pelo crime de sonegação fiscal, se o falso teve como finalidade a sonegação, constituindo, em regra, meio necessário para a sua consumação. Na hipótese dos autos, o delito de falsidade ideológica deve ser tido como crime autônomo, posto que praticado não para que fosse consumada a sonegação fiscal, nas sim para assegurar a isenção de futura responsabilidade penal.

(omissis)

(STJ, Recurso Especial 503.368/PR, Relator Felix Fischer, 2004).

No mesmo sentido: RECURSO CRIMINAL 2005.38.03.003659-0 e HC 2006.01.00.046975-5, ambos do TRF 1ª Região. Contra tal entendimento, o Ministro Gilmar Ferreira Mendes afirma que "também não impressiona o argumento temporal, no sentido de que o falso seria posterior ao auto de infração" [36].

Dessa forma, é possível notar que, diante dos imensos privilégios penais criados com a aplicação indiscriminada art. 9º da lei 10.684/03 aos delitos fiscais, acabou surgindo, na doutrina e jurisprudência, o avesso do avesso: os tribunais do país têm desrespeitado o princípio da consunção (ou o da especialidade) para que uma fraude, a despeito de ter sido perpetrada para sonegar tributo, não reste impune pelo direito penal pátrio.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Bernardo Marino. A quebra da isonomia nos crimes de sonegação fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2311, 29 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13676. Acesso em: 15 nov. 2024.

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