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A quebra da isonomia nos crimes de sonegação fiscal

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29/10/2009 às 00:00
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O texto estuda se o tratamento dos crimes contra a ordem tributária está de acordo com as normas e princípios do direito penal, principalmente do que tange aos princípios da proporcionalidade e isonomia penal.

"De um lado esse carnaval

De outro a fome total"

Paralamas do Sucesso, na música "A Novidade"

"Quem guarda os guardiões?"

Decimus Lunius Luvenalis, poeta romano do séc. II.

RESUMO

Bernardo Marino Carvalho. A quebra da isonomia nos crimes de sonegação fiscal. 2007. 56 f. Monografia Final de Curso – Centro de Ciências Jurídicas / Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.

Este trabalho procurou estudar os crimes de sonegação fiscal de forma comparativa com os demais delitos. Seu objetivo foi analisar a forma como a legislação, doutrina, jurisprudência têm tratado os crimes contra a ordem tributária e se esse tratamento está de acordo com as normas e princípios do direito penal, principalmente do que tange aos princípios da proporcionalidade e isonomia penal. Para tanto, foram estudadas as normas do direito penal tributário e como elas têm sido aplicadas, para, em um segundo momento, fazer uma comparação entre elas e as normas do direito penal em geral, sempre com enfoque na reprovabilidade das condutas em exame. Com o presente estudo, foi possível perceber que os crimes contra a ordem tributária, apesar de tutelarem mais bens jurídicos, têm tido tratamento mais benéfico, tanto do legislador, quanto da doutrina e jurisprudência, em diversos dos dispositivos aplicáveis a eles. Pôde-se concluir que, atualmente, o direito penal tributário encontra-se esvaziado com os delitos fiscais cada vez mais descriminalizados, o que afronta a proporcionalidade e isonomia do direito penal. Em verdade, esses delitos têm sido usados como forma de aumentar a arrecadação tributária dos entes estatais. Ademais, concluiu-se que essa descriminalização também tem explicações sociológicas, pois, no Brasil, as pessoas não acreditam que os tributos cumprem a sua função social, quer em virtude da alta carga tributária brasileira, quer em razão dos altos índices de corrupção no país. Finalmente, destacou-se que os crimes de sonegação são normalmente praticados por pessoas das classes mais privilegiadas, o que também desencoraja uma aplicação mais vigorosa das normas do direito penal tributário.

Palavras-chave: Direito penal; sonegação fiscal; isonomia.

SUMÁRIO:

No Brasil, impera a livre iniciativa, pelo que a atividade econômica é entregue ao setor privado, só podendo o Estado atuar diretamente como agente econômico de produção nos casos previstos na Constituição Federal (CF).

Sendo assim, é justamente na iniciativa privada que o Estado vai buscar os recursos de que necessita para poder atingir os seus fins. Na prática capitalista, é fácil perceber que essa apreensão de recursos pelo Leviatã dá-se predominantemente através da tributação.

Ocorre, no entanto, que parcelas dos setores produtivos buscam evitar o pagamento de tais encargos, pelos mais diversos motivos, alguns dos quais poderiam até ser considerados "legítimos".

Se os motivos são diversos, também são várias as formas de não de fugir à tributação: alguns contribuintes simplesmente não adimplem a sua obrigação tributária, ao passo que outros passam a se utilizar dos mais diversos meios fraudes, para que esse não-pagamento não deixe vestígios.

Para coibir a inadimplência, o Estado se vale de multas e encargos financeiros, passando a cobrar dos inadimplentes administrativa e judicialmente os tributos devidos. Já com relação aos fraudadores, a resposta estatal mostra-se mais enérgica, conferindo a tais condutas o status de crimes, sendo tais criminosos considerados sonegadores fiscais.

No Brasil, buscou-se reprimir a sonegação fiscal mais efetivamente nos últimos tempos com a criação de uma legislação penal tributária específica: a lei n° 8.137/90. Uma tipificação com tamanha especificidade permitiria uma ação estatal mais dirigida para essa espécie de delitos.

No entanto, ao invés de o Estado se valer dessa norma específica para a aplicação de uma política mais severa de combate à sonegação fiscal, ele passou a criar uma série de dispositivos legais que, contrariamente, passaram a privilegiar essa espécie de crimes.

Esse arcabouço de privilégios demonstra que, em verdade, o ente-tributante está se valendo do direito penal tributário como instrumento de sua política arrecadatória. Assim, não importa o crime cometido para sonegar, desde que o Estado receba o que lhe é devido.

Tem-se, portanto, um contexto no qual a isonomia penal restou esfacelada.

De um lado, há os crimes de sonegação fiscal, que têm como bens jurídicos tutelados o erário, a fé pública e a Administração Pública (PESSOA, 2005). Tais delitos, no entanto, apesar da importância dos bens jurídicos que se procura proteger, vêm sendo coroados com uma legislação, jurisprudência e entendimento doutrinário desarrazoadamente benéficos.

Com relação a esses crimes, tem-se possibilitado a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo a qualquer tempo; a suspensão do processo pelo parcelamento do débito, também a qualquer momento, além de se ter consolidada a necessidade de exaurimento da instância administrativa como condição para a denúncia do sonegador.

Do outro lado, existem os demais crimes, com uma política penal implacável e punitiva. Alguns desses delitos possuem uma estrutura típica muito semelhante aos crimes de sonegação fiscal, diferindo-se destes últimos por atentarem contra menos bens jurídicos, do que os delitos contra a ordem tributária. A despeito desta realidade fático-jurídica, aos crimes comuns não tem sido dado o mesmo tratamento legal benévolo.

Este trabalho procurará analisar a doutrina, jurisprudência e legislação referentes à sonegação fiscal e como elas têm atentado contra a isonomia e proporcionalidade penais.


2. Crimes de sonegação fiscal

O tributo é entendido como arrecadação pecuniária e de bens para o custeio dos gastos públicos e das despesas dos governantes há bastante tempo (AMARO, 2004, p. 16).

No Estado de Direito, no entanto, ele atinge contornos bem definidos de uma relação jurídica, mas sem deixar de ser entendido como "receitas derivadas (por oposição às receitas originárias, produzidas pelo patrimônio público)" (AMARO, 2004, p. 17), as quais são arrecadadas pelo Estado para o financiamento das despesas públicas.

Nessa relação jurídica, de um lado estaria o Estado como ente-tributante, sujeito ativo da relação jurídico-tributária, enquanto do outro lado há o contribuinte, o sujeito passivo correspondente.

A despeito dos novos contornos atingidos pelos tributos na Modernidade, eles não perderam o seu caráter essencial de "partilha dos ônus do Estado entre os contribuintes" [01] (AMARO, 2004, p. 18), tanto é que tributar significa, na origem etimológica da palavra significa repartir, distribuir.

Em um estudo bastante elucidativo a respeito da tributação, a Royal Comission on Taxation do Canadá concluiu que a carga tributária deve favorecer:

a) a repartição justa dos encargos decorrentes da atividade financeira do Governo; b) a estabilização interna (pelo combate ao desemprego e à inflação) e externa (pelo combate ao desequilíbrio do balanço dos pagamentos internacionais e pela formação de reservas em divisão conversíveis) da economia; c) o desenvolvimento econômico; d) o fortalecimento da Federação; e) o respeito aos direitos do contribuinte; e f) a eficiência administrativa. (citado por MARTINS, 2002, p. 100).

Ou seja, o tributo se insere, no contexto social moderno, como elemento essencial do Estado. Tanto assim o é que se tenta, atualmente, criar uma noção de tributo mais socialmente aceitável, quer por motivações de ordem pragmática – para que o sujeito passivo não tenha tanta resistência ao seu pagamento –, quer devido à própria concepção de Estado adotada, com bem sintetiza Luciano Amaro:

(...) enquanto "tributar" (tribuere) se emprega para designar a ação estatal, o derivado "contribuir" (unir, incorporar, dar, fornecer) volta-se para a ação do contribuinte. "Contribuição" (com a mesma raiz de "tributo") expressa, na linguagem comum, a cota (em geral, voluntária) que cada um dá, para atender a uma despesa comum; não se perdeu aí a idéia de unir parcelas ou cotas. Aliás, a palavra "cotização" traduz essa mesma idéia. Lucien Mehl registra que tais expressões ("contribuição" e ''cotização") mascaram o caráter unilateral dos tributos e aludem à existência de um consentimento, pelo menos coletivo". Pedro Soares Martínez lembra que, sob o influxo das idéias liberais, procurou-se substituir os vocábulos "imposto" e "tributo", tidos por odiosos, pelo termo "contribuição", que melhor se ajustaria às doutrinas contratualistas sobre o Estado e o direito (AMARO, 2004, pp. 16-17).

Essa louvável função social dos tributos, no entanto, não é suficiente para que os contribuintes anseiem em pagá-lo, pois, como afirma Edmar Oliveira Andrade Filho (2004, p.30):

Não raro, a história tem demonstrado, quando os tributos são instituídos de forma desmedida, abusiva, que eles são alvo de contestações que podem levar ao surgimento de revoltas, rebeliões e derrubada de governantes.

E mais adiante, citando Hector Villegas [02], Edmar Andrade (2004, p. 32) arrebata:

Durante muito tempo, houve resistência ao tributo, por ser ele considerado fruto de desigualdade, privilégio e injustiça. O cumprimento de obrigações tributárias representava um sinal tangível de submissão e servidão do indivíduo diante do Estado.

Daí por que renomados tratadistas consideravam o tributo como um mal, desinteressando-se do estudo da evasão, ou permanecendo indiferentes diante dela, – havendo mesmo quem chegasse a estimulá-la.

David Ricardo afirmava que o imposto – qualquer que fosse a forma que assumisse – somente significava a escolha entre vários males e que, portanto, o melhor imposto era o menor imposto.

Adam Smith era indulgente com a evasão, que serviria para "evitar ao contribuinte a injustiça de impostos prejudiciais à sua atividade econômica".

Ocorre, no entanto, que o Estado não pode ficar à mercê da voluntariedade dos contribuintes para o pagamento dos tributos, pelo que estes últimos são dotados de imperatividade (expressão mais em voga no direito administrativo), ou de compulsoriedade (expressão mais afeita ao direito tributário).

Tamanha é a importância dessa característica em relação aos tributos, que ela se encontra expressa no próprio conceito legal de tributo constante no art. 3º do Código de Tributário Nacional (CTN):

Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada (grifo nosso).

Assim, tem-se que, diante da hipótese de incidência da norma tributária, surge uma obrigação tributária, que deverá ser cumprida pelo contribuinte independentemente de sua vontade.

Apesar da compulsoriedade do pagamento dos tributos, sendo as normas tributárias um dever-ser, sempre haverá a possibilidade de o contribuinte adotar inúmeras atitudes diante delas: ele pode obedecer à norma e pagar o imposto no prazo e forma legais; pode simplesmente deixar de pagar o tributo; pode contestar a legalidade daquela norma [03] ou pode escolher o caminho da sonegação fiscal [04].

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Nesse ponto, faz-se necessária uma diferenciação entre o direito tributário penal e o direito penal tributário.

Se o contribuinte simplesmente deixa de pagar o tributo, ou não cumpre uma obrigação acessória, ele está descumprindo uma norma da legislação tributária, cometendo, portanto, uma infração tributária. Assim, caberá ao Estado aplicar-lhe uma sanção tributária.

A cominação dessas sanções estaria a cargo do direito tributário penal, que, no dizer de Luciano Amaro seria

o setor do direito tributário que comina sanções não criminais para determinadas condutas ilegais. Tratar-se-ia, nesses casos, das chamadas "infrações administrativas", ou "ilícitos administrativos", castigados com a aplicação de "sanções administrativas", aplicadas pelas autoridades administrativas, mediante procedimento administrativo (AMARO, 2004, p. 423).

Tem-se também que no direito tributário penal, as sanções são aplicadas independentemente de qual seja a intenção do agente (art. 136 do CTN), sendo necessário apenas a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o prejuízo (FÖPPEL, 2005, p. 16).

Afora o mero inadimplemento supra explicado, é ainda possível que, no mundo dos fatos, o contribuinte não pague o tributo devido valendo-se de artifícios fraudulentos.

Nessa última hipótese, serão as normas do direito penal tributário que deverão ser aplicadas – normas pertencentes à legislação penal, portanto – e o agente terá cometido um crime de sonegação fiscal (também chamado de delito fiscal), pelo que lhe será aplicada uma sanção penal (reprimendas privativas de liberdade e multa).

Na verdade, uma comparação entre a sanção tributária e o delito fiscal demonstra que os crimes de sonegação fiscal são infrações tributárias que, dada a sua maior lesividade, foram tipificadas como crimes por uma escolha política do legislador [05].

Com isso, pode-se concluir que a infração administrativo-tributária é gênero da qual a sonegação é espécie (FÖPPEL, 2005, p. 11)

Finalmente, é importante pontuar que, como o direito penal tributário é um ramo do direito penal, é necessária a sua integração com as normas gerais e os princípios que norteiam esse ramo jurídico.

2.2. Evolução história dos crimes de sonegação fiscal e a lei 8.137/90

No Código Penal (CP) de 1941, já era possível punir um individuo que tentasse reduzir ou suprimir o tributo devido por meio de uma falsificação de documento (art. 298 do CP), através de uma falsidade ideológica (art. 299 do CP), ou até pelo uso do documento falso (art. 304 do CP), para ficar apenas com alguns exemplos.

Entretanto, foi apenas com a lei 4.729/65 que os crimes de sonegação fiscal passaram a ter uma legislação penal específica no país. Essa lei, inclusive, pode ser tida como o marco inicial do surgimento do direito penal tributário brasileiro. A sua promulgação demonstrou uma maior preocupação do legislador daquela época na prevenção e repressão dessa espécie de delito.

Em um novo momento de robustecimento da repressão aos crimes fiscais, em dezembro de 1990, foi promulgada a lei 8.137, que manteve essencialmente as figuras típicas já descritas na lei 4.729/65. Todavia, na novel legislação, os delitos passaram a ser punidos tanto com penas de detenção, quanto com penas de reclusão, ao passo que na lei anterior, as sanções eram apenas de detenção. Afora isso, houve um aumento das reprimendas cominadas às condutas descritas no novo diploma legal.

Com relação à topografia da lei 8.137/90 e às condutas que ela tipifica, é preciso esclarecer que ela não trata apenas dos crimes contra a ordem tributária [06].

Os arts. 1º, 2º e 3º compõem o capítulo I, que se chama "Dos Crimes Contra a Ordem Tributária", sendo que os arts. 1º e 2º tipificam os crimes praticados por particulares contra o Fisco, enquanto o art. 3º trata desta espécie de ilícito praticada por funcionários públicos.

O capítulo II da 8.137/90 define os crimes contra a economia e as relações de consumo, enquanto que o capítulo III dispõe sobre as multas aplicáveis aos delitos tipificados na lei em análise.

O capítulo IV finaliza o dispositivo penal ora estudado, tratando das disposições finais da lei, definindo normas penais específicas para as condutas dela tipificadas, além de dar outras providências.

Apesar da supra descrita diversidade temática da lei 8.137/90, toda referência genérica que for feita a essa lei ao longo do presente trabalho diz despeito essencialmente aos arts. 1º e 2º da mesma.

2.3. Conceito de sonegação fiscal

O ilícito pode ter diversas naturezas, podendo ser cível, criminal, administrativo, tributário.

Com relação à natureza do ilícito tributário, há diversas teorias: a penalista, a administrativista e a tributária (LOVATTO, 2000, p. 27-29).

No entanto, a despeito da discussão doutrinária existente a respeito do tema, o que precisa ficar claro é que tal natureza, em verdade, decorre da própria legislação de cada país sobre a matéria (LOVATTO, 2000, p. 29).

No Brasil, portanto, pode-se afirmar que a espécie de ilícito tributário conhecida como sonegação fiscal é uma infração penal por expressa opção do legislador pátrio.

Apesar de a natureza do delito fiscal estar claramente definida na lei, o direito positivo não tratou de definir o que viria a ser um crime de sonegação fiscal, optando o legislador por simplesmente enumerar quais as condutas que seriam consideradas como tal.

Dispõe a lei 8.137/90:

Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas:

I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;

II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal;

III - falsificar ou alterar nota fiscal, fatura, duplicata, nota de venda, ou qualquer outro documento relativo à operação tributável;

IV - elaborar, distribuir, fornecer, emitir ou utilizar documento que saiba ou deva saber falso ou inexato;

V - negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação.

Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.

Parágrafo único. A falta de atendimento da exigência da autoridade, no prazo de 10 (dez) dias, que poderá ser convertido em horas em razão da maior ou menor complexidade da matéria ou da dificuldade quanto ao atendimento da exigência, caracteriza a infração prevista no inciso V.

Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:

I - fazer declaração falsa ou omitir declaração sobre rendas, bens ou fatos, ou empregar outra fraude, para eximir-se, total ou parcialmente, de pagamento de tributo;

II - deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;

III - exigir, pagar ou receber, para si ou para o contribuinte beneficiário, qualquer percentagem sobre a parcela dedutível ou deduzida de imposto ou de contribuição como incentivo fiscal;

IV - deixar de aplicar, ou aplicar em desacordo com o estatuído, incentivo fiscal ou parcelas de imposto liberadas por órgão ou entidade de desenvolvimento;

V - utilizar ou divulgar programa de processamento de dados que permita ao sujeito passivo da obrigação tributária possuir informação contábil diversa daquela que é, por lei, fornecida à Fazenda Pública.

Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.

Sendo assim, a definição do que viriam a ser os crimes contra a ordem tributária coube à doutrina, o que foi possível por meio de uma análise das condutas definidas na lei 8.137/90 como delitos ficais, com vistas a estabelecer as características que os distinguiriam das demais espécies de condutas.

Um conceito doutrinário direto e conciso pode ser encontrado no livro Legislação Penal Especial, no qual a sonegação fiscal é tida como a "ocultação dolosa, mediante fraude, astúcia ou habilidade, do recolhimento de tributo devido ao Poder Público" (MORAES, 2002, p. 89).

Analisando-se concomitantemente o conceito construído pelo prof. Alexandre de Moraes, em conjunto com aquilo constante na lei 8.137/90, é possível perceber os seguintes elementos característicos dos delitos fiscais:

Objetividade Jurídica: O bem jurídico protegido nos crimes de sonegação fiscal é a arrecadação tributária (COSTA, 2003, p. 37). O Estado, portanto, criminaliza tais condutas para coibir e punir as mais diversas formas de fraudes que podem vir a lesar a arrecadação. Ademais, implicitamente, tutela-se o bem jurídico protegido pelo crime-meio realizado para a prática da sonegação, que pode ser uma falsidade material, uma falsidade ideológica, um estelionato, uma apropriação indébita etc.

Sujeito ativo: O sujeito ativo aqui poderá ser a pessoa física contribuinte ou, no caso de pessoa jurídica contribuinte beneficiada pela fraude, quem tenha participado dolosamente do crime ou contribuído para a sua consumação (MORAES, 2002, p. 92) [07].

Se a lei estabelecer que haverá substituto passivo tributário que tenha a obrigação de reter ou recolher o tributo, será esse substituto o sujeito ativo do crime [08].

Sujeito passivo: É o Estado ao ser lesado em sua arrecadação tributária [09].

Elemento subjetivo do tipo: É a intenção e a vontade de fraudar o Fisco, o que significaria suprimir ou reduzir o tributo devido. Todavia, o resultado supressão ou redução do tributo é apenas exigido nos crimes do art. 1º da lei 8.137/90, uma vez que se tratam de crimes materiais. Já os delitos do art. 2º são formais, pelo que não se faz necessária a ocorrência do resultado para o aperfeiçoamento delitivo.

2.4. O surgimento de uma Jurisdição Penal Tributária

Uma vez compreendida a natureza e os principais caracteres da sonegação fiscal, sendo crimes que o são, devem ser regidos pelas normas gerais e princípios do direito penal.

Dentre os princípios que norteiam o direito penal e que interessam ao presente trabalho, podemos destacar os princípios da proporcionalidade e da isonomia penal (o primeiro nos fornece uma perspectiva vertical da aplicação sanção, enquanto o segundo é referente a uma noção horizontal da reprimenda).

O princípio da proporcionalidade e o da isonomia penal não possuem apenas um sentido, podendo ter diversas concepções, a depender da amplitude que lhes é dada.

Em uma primeira visão mais focada no âmbito do Judiciário, tais princípios devem servir de referencial para o juiz no momento da aplicação da reprimenda diante do caso concreto: uma vez subsumida a conduta do agente ao tipo legal, quanto maior o dano causado pelo sujeito ativo, maior deve ser a reprimenda cominada, sempre se considerando a pena mínima e máxima previstas para aquele determinado crime.

Em uma outra concepção, agora sob o enfoque sistêmico do ordenamento penal, e abrangendo a atividade do legislador, deve haver uma proporcionalidade entre os tipos penais: quanto mais importante o bem jurídico tutelado, ou quanto mais bens jurídicos são tutelados por um determinado tipo penal, maior deve ser a pena imposta àquele tipo penal, conforme advoga Rogério Greco (GRECO apud OLIVEIRA, 2006) [10]:

Prima facie, deverá o legislador ponderar a importância do bem jurídico atacado pelo comportamento do agente para, em um raciocínio seguinte, tentar encontrar a pena que possua efeito dissuasório, isto é, que seja capaz de inibir a prática daquela conduta ofensiva. Após o raciocínio correspondente à importância do bem jurídico-penal, que deverá merecer a proteção por meio de uma pena que, mesmo imperfeita, seja a mais proporcional possível, no sentido de dissuadir aqueles que pretendem violar o ordenamento jurídico com ataques aos bens por ele protegidos, o legislador deverá proceder a um estudo comparativo entre as figuras típicas, para que, mais uma vez, seja realizado o raciocínio da proporcionalidade sob um enfoque de comparação entre diversos tipos que protegem bens jurídicos diferentes.

Se os bens jurídicos tutelados forem equivalentes, deve prevalecer uma isonomia penal com relação à reprimenda imposta in abstracto.

Ademais, é admissível que delitos mais gravosos tenham apenas dois tratamentos com relação às normas não-incriminadoras do direito penal: ou eles são regidos pelas regras gerais (e suas interpretações) dos crimes menos graves [11], ou eles têm normas não-incriminadoras mais rigorosas. Essa é a lógica do sistema e o que proporciona uma sensação de Justiça.

De se observar que essa concepção sob um enfoque sistêmico do ordenamento penal deve reger tanto o juiz no momento de aplicar e interpretar a norma, quanto o legislador no momento da criação da regra jurídica.

Como restará a seguir demonstrado, os crimes contra a ordem tributária são, em verdade, condutas que poderiam ser enquadradas em determinados tipos do Código Penal. Ocorre que, por uma questão de política criminal e por ainda terem o condão de atentar contra o erário público, foram tipificadas em uma legislação penal especial.

A despeito da maior lesividade desses delitos, o Legislativo e o Judiciário passaram a dar um tratamento mais benéfico a essa espécie de crimes, mesmo quando isso significou o rompimento da lógica que rege o direito penal pátrio.

Em certas situações, esse rompimento é tal monta, que se pode ousar fazer referência ao surgimento de uma Jurisdição Penal Tributária, na qual há uma significativa mudança jurídica, principalmente no que tange ao momento da consumação delitiva e aos efeitos do arrependimento posterior nos crimes de sonegação.

Essas interpretações e normas atentam contra os princípios da proporcionalidade e da isonomia do direito penal e serão explicitadas e criticadas no presente trabalho.

2.5. Quadro comparativo: crimes do Código Penal x crimes de sonegação fiscal

Conforme já mencionado, os crimes contra a ordem tributária são, em verdade, condutas que poderiam ser enquadradas em determinados tipos que já existem no Código Penal.

A equivalência entre os tipos gerais do CP e aqueles existentes na legislação especial estão explicitados no quadro abaixo:

Comparação entre os crimes de sonegação fiscal e os delitos congêneres constantes no Código Penal

O crime se consuma quando o tipo abstrato descrito na lei está inteiramente realizado (MIRABETE, 2003, p. 155), nos termos do art. 14, inc. I do CP, ou, no dizer de Fernando Capez, crime consumado "é aquele em que foram realizados todos os elementos constantes de sua definição legal" (CAPEZ, 2006, p. 239).

Nos crimes materiais, a consumação se dá quando da ocorrência do resultado descrito na norma, enquanto que nos crimes formais, não há a necessidade da ocorrência do resultado pretendido pelo autor (MIRABETE, 2003, p. 156), consumando-se o delito apenas com a realização pelo agente da conduta descrita no tipo.

Com relação ao momento consumativo dos crimes previstos no art. 2º da lei 8.137/90, não havia maiores explicações a serem dadas: sendo delitos formais que o são, a mera realização da conduta descrita no tipo consumava o crime, não havendo necessidade de qualquer prejuízo ao erário público (MORAES, 2002, p. 108).

Já em relação às condutas descritas no art. 1º da lei 8.137/90, também não havia maiores problemas quanto ao momento consumativo: uma vez que são crimes materiais, consumavam-se com a ocorrência do resultado lesivo descrito na norma.

Uma leitura desatenta da norma, no entanto, poderia levar a um equívoco quanto ao momento da ocorrência do resultado redução ou supressão do pagamento do tributo, previsto no caput do art. 1º.

É que, em verdade, o resultado descrito do tipo penal apenas ocorria quando o agente auferia a vantagem indevida decorrente da repressão ou redução do tributo; ou seja, quando vencia o prazo para o recolhimento do tributo sem que o contribuinte o fizesse ou quando ele o fazia a menor (MORAES, 2002, p. 95).

Essas eram as correntes majoritárias na doutrina e jurisprudência, tanto com relação às condutas descritas no art. 1º, quanto àquelas tipificadas no art. 2º.

Ocorre que, a partir do Habeas Corpus (HC) 81.611, julgado pelo Supremo Tributal Federal (STF), houve uma reviravolta no entendimento sobre qual seria o momento consumativo dos crimes de sonegação.

3.1. O julgamento do HC 81.611 pelo STF

No HC 81.611, o impetrante requeria o trancamento da ação na qual o paciente era acusado de ter cometido as condutas descritas no art. 1ª, incs. I e II da lei 8.137/90 c/c art. 71 do CP. Em virtude da prevenção desse Habeas Corpus com um outro processo, o feito foi redistribuído do Ministro Sepúlveda Pertence.

No HC sob exame, a ordem foi concedida por maioria dos votos, sob o voto contrário dos Ministros Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa e Ellen Gracie. Diz a ementa do HC 81.611:

EMENTA: I. Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento do tributo pendente de decisão definitiva do processo administrativo: falta de justa causa para a ação penal, suspenso, porém, o curso da prescrição enquanto obstada a sua propositura pela falta do lançamento definitivo.

1. Embora não condicionada a denúncia à representação da autoridade fiscal (ADInMC 1571), falta justa causa para a ação penal pela prática do crime tipificado no art. 1º da L. 8137/90 – que é material ou de resultado -, enquanto não haja decisão definitiva do processo administrativo de lançamento, quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo.

2. Por outro lado, admitida por lei a extinção da punibilidade do crime pela satisfação do tributo devido, antes do recebimento da denúncia (L. 9249/95, art. 34), princípios e garantias constitucionais eminentes não permitem que, pela antecipada propositura da ação penal, se subtraia do cidadão os meios que a lei mesma lhe propicia para questionar, perante o Fisco, a exatidão do lançamento provisório, ao qual se devesse submeter para fugir ao estigma e às agruras de toda sorte do processo criminal.

3. No entanto, enquanto dure, por iniciativa do contribuinte, o processo administrativo suspende o curso da prescrição da ação penal por crime contra a ordem tributária que dependa do lançamento definitivo.

O voto do Ministro-relator considerou o lançamento definitivo do débito como condição objetiva de punibilidade [19], pois os crimes do art. 1º são crimes materiais. Também há entendimentos que o consideram um elemento normativo do tipo (FÖPPEL, 2005, p. 69), como procurou demonstrar a ementa acima transcrita.

No entendimento do Ministro-relator, o mais importante é a consideração que o crime de sonegação fiscal consuma-se com o lançamento definitivo do débito tributário, pelo que o Ministério Público não poderia denunciar o agente até que ocorresse o trânsito em julgado da decisão administrativa. Sem essa decisão definitiva na esfera administrativa, não haveria justa causa para a denúncia (FÖPPEL, 2005, 71). O lançamento definitivo seria a prova da própria materialidade do delito fiscal [20].

Na verdade, esse entendimento adotado pela Corte Máxima impede até mesmo a instauração de inquérito policial para apurar o delito fiscal [21], ante a "certeza objetiva" da falta de justa causa.

Para se evitar que a não instauração da ação penal provocasse a prescrição do crime, o STF, no acórdão acima transcrito, considerou que, até o término do procedimento administrativo, o prazo prescricional do delito fiscal permanece suspenso [22].

Existem diversos argumentos que embasam o entendimento majoritário do STF, os quais, muitos deles, foram utilizados pelos Ministros que votaram pela concessão da ordem no HC 81.611.

Como argumentos, pode-se citar que o CTN, em seu art. 142, determina que apenas a autoridade administrativa pode constituir o crédito tributário; que os crimes contra a ordem tributária têm dupla tipicidade, pelo que não se poderia cogitar a tipicidade de uma conduta que fosse considerada regular pela instância administrativa (COSTA, 2003, p. 55); que entendimento contrário afrontaria os princípios do contraditório e da ampla defesa (FÖPPEL, 2005, p. 70) [23]; que, como o prazo prescricional se suspende, não haveria qualquer prejuízo para a Administração Pública.

3.2. Críticas ao posicionamento do STF adotada no HC 81.611

Alguns dos argumentos acima expostos são dotados de coerência lógico-formal, e até jurídica. No entanto, no mais das vezes, tem-se a sensação que eles foram uma justificativa para que os agentes pudessem ter novas chances de extinguir ou reduzir o crédito tributário devido.

Em outras vezes, a fundamentação passa pela importação indevida de certas noções de direito tributário que, todavia, não são aplicáveis ao direito penal, o que possivelmente é fruto da atuação de tributaristas no campo penal. Uma das mais importantes dessas "importações" indevidas foi exposta com vigor por Alécio Adão Lovatto (2000, p. 130-131), quando afirma:

Existe, na área penal tributária, um equívoco consistente em considerar que o crime se consuma quando se consolida o crédito tributário. Desloca-se, desta forma, para a exigibilidade do crédito tributário a questão. Improcedente a argumentação. A exigibilidade é relevante para o exaurimento do crime tributário, não para a consumação. Para esta importa: a) que o tributo seja devido e, sendo devido, o agente tenha usado uma das condutas de falsidade para que o tributo fosse reduzido ou suprimido, nos casos do art. 1º; b) que tenha havido falsidade com o fim de reduzir ou suprimir, independentemente do resultado, ou que tenha ficado com o que pertencia ao ente de direito público ou tenha havido exigência de percentagem para aplicar incentivo fiscal ou desviar a finalidade dele, bem como o programa de computação que permite outra contabilidade paralela à oficial (casos do art. 2º).

Primeiramente, o que se nota é que tal decisão do STF, por meio de um esforço hermenêutico gigantesco, tentou mascarar uma conseqüência prática desse entendimento, qual seja, a dependência da instância penal à administrativa.

Tal fato restava claro quando o exaurimento da instância administrativa chegou a ser considerado uma condição de procedibilidade para a denúncia do Ministério Público [24], o que flagrantemente afrontava a CF – em especial o seu art. 129, inc. I – e a livre atuação do Ministério Público (NEVES, 2005).

Esse desiderato inibitório da atuação do parquet pode ser facilmente observado na defesa do art. 83 da lei 9.430/96, feita por Edmar Andrade. Percebe-se que o seu discurso tem as mesmas implicações práticas da decisão do STF. Ambas as interpretações diferem apenas quanto às suas premissas. Afirma o citado doutrinador (2005, p. 126):

(...) portanto, o que pretendeu o art. 83 da Lei 9.430/96 foi ordenar, no tempo, a atuação de cada um dos órgãos interessados nas condutas que constituem crimes contra a ordem tributária, evitando que o Ministério Público comece a devassar a intimidade do contribuinte quando o núcleo do tipo penal ainda não foi razoavelmente identificado. Portanto, a lei pretendeu apenas ordenar a atuação dos diversos órgãos estatais envolvidos na apuração de crimes contra o erário público [25].

Voltando-se à questão do "trânsito em julgado" da decisão administrativa em relação à consumação do delito fiscal, em um segundo momento, depois de ter sido considerado condição de procedibilidade para a denúncia, o lançamento definitivo passou a ser entendido, quer como condição objetiva de punibilidade, quer como um elemento normativo de tipo, como assevera o voto de Sepúlveda Pertence.

Vê-se, portanto, que o momento da consumação dos crimes contra a ordem tributária tem sido paulatinamente adiado, quer por meio de artifícios legais, quer por conta de interpretações da doutrina e da jurisprudência a seu respeito. Senão sejamos.

Inicialmente, a lei 4.729/65, em seu art. 1º, considerava que os delitos fiscais eram crimes formais, pelo que bastava a prática da conduta fraudulenta para a consumação delitiva (STOCO, 2001, p. 629). A lei 8.137/90, em seu art. 1º, praticamente não alterou os tipos constantes no art. 1º da lei penal tributária precedente, tendo, no entanto, transformado tais delitos em crimes materiais. Ou seja: com a nova legislação, o resultado "supressão ou redução do tributo" passou a ser exigido, pelo que esses tipos passaram a consumar-se com o vencimento do prazo para o recolhimento do tributo (MORAES, 2002, p. 95; DECOMAIN, 1995, p. 46).

Atualmente, todavia, passou a prevalecer o entendimento do STF de que os crimes de sonegação apenas se consumam com o lançamento definitivo, lançamento este que tornaria o débito líquido e certo.

Se continuarmos nessa esteira de raciocínio, em breve, alguns juristas estarão defendendo que os crimes contra a ordem tributária apenas se consumam após o trânsito em julgado da decisão judicial. É que a sentença ainda teria o condão de alterar o lançamento definitivo, reduzindo o quantum devido, ou até mesmo concluindo que não é devido tributo algum.

Apesar de ainda não ter existido quem defendesse a absurda posição do parágrafo anterior, maiores disparates já estão sendo advogados.

Nos votos que concederam a ordem no HC 81.611, resta evidente que o exaurimento da instância administrativa apenas passou a ser considerado necessário para a consumação dos crimes de sonegação em virtude de os delitos descritos no art. 1º da lei 8.137/90 serem materiais; ou seja, por eles exigirem um resultado que somente ocorreria com o lançamento definitivo.

Inclusive a ementa do referido julgamento inicia-se desta forma: "Crime material contra a ordem tributária (L. 8137/90, art. 1º): lançamento[...]".

A despeito da clareza dos argumentos do STF, já existem setores da doutrina que estão propalando veementemente a sua extensão aos crimes previstos no art. 2º da lei 8.137/90, apesar de os mesmos serem formais. Edmar Andrade assim defende tal despropósito (2004, p. 127-128):

Em princípio, a decisão da Suprema Corte não poderia ser estendida aos fatos ilícitos previstos no art. 2º da Lei nº 8.137/90 e também aos mencionados na Lei nº 9.983/00, que dispõe sobre crimes contra a previdência social, dentre os quais estão arroladas condutas que, em essência, implicam a supressão ou redução ilícita de contribuição social. Interpretada a partir desse pressuposto (o de que a validade do preceito do art. 83 da Lei nº 9.430/96 não estava em questão), a decisão da Suprema Corte estaria a delimitar a exigência do esgotamento das instâncias administrativas apenas e tão-somente em relação aos crime previstos no art. 1º da Lei n" 8.137/90) e nada mais. O raciocínio não é verdadeiro, ou para dizer o menos, é incompleto. De fato, no mesmo dia, aquela Corte proferiu decisão sobre a validade da regra do art. 83 da Lei nº 9.430/96, que é suficientemente claro ao exigir o esgotamento de todas as esferas do processo administrativo em relação a qualquer crime dentre os definidos nos arts. 1º e 2º da Lei. nº 8.137/90, independentemente das discussões sobre a natureza material ou formal dos crimes ali tipificados e sobre os eventuais efeitos, declaratórios ou constitutivos do lançamento tributário. Portanto, em relação aos crimes previstos no art. 2º da Lei 8.137/90, o esgotamento das instâncias do processo administrativo respectivo é também condição objetiva de punibilidade, sem a qual a norma penal (e as que lhes são conexas ou dependentes) não pode incidir; ela fica no estado proposicional, como algo hipotético.

Felizmente, pelo menos até o presente momento, tal argumentação não tem sido adotada pelos tribunais, conforme decisões abaixo ementadas:

PENAL. HABEAS CORPUS. CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. LEI 8.137/90. ART. 1º, INCS. I E II. CRIME MATERIAL. PROCEDIMENTO FISCAL PENDENTE. FALTA DE JUSTA CAUSA PARA A AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE LANÇAMENTO DO CRÉDITO TRIBUTÁRIO. IMPOSSIBILIDADE DE CARACTERIZAÇÃO DA FIGURA TÍPICA. ART. 2º, INC. II. CRIME FORMAL. DESNECESSIDADE DE LANÇAMENTO FISCAL PARA MATERIALIDADE.
(omissis)

5. Sendo o crime previsto no art. 2º, inc. I, da Lei 8.137/90, de natureza formal (ou de consumação antecipada), a simples declaração falsa ou a omissão, tendentes a não pagar ou a reduzir o pagamento do tributo, isso é, a mera conduta, já caracteriza o tipo; 6.Aqui, pouco importa a existência de procedimento administrativo-fiscal, uma vez que é a comprovação do resultado. De conseqüência, presente ou não o lançamento do crédito - mero exaurimento da conduta - a norma do artigo 2° incidirá, porquanto o tipo em tela visa tutelar o dever de veracidade das informações que devem ser prestadas ao Fisco. (grifos nossos).

[Tribunal Regional Federal (TRF) 4ª Região, HC 200504010526107, Relator Artur César de Souza, 2006].

HABEAS CORPUS. DELITO CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. LEI 8.137/90, ARTIGO 2º, INCISO II. AUSÊNCIA DE REPASSE DO IMPOSTO DE RENDA RETIDO NA FONTE. CRIME OMISSIVO. PARCELAMENTO. DÉBITO POSTERIOR AO REFIS. INCLUSÃO NO PAES. LEI Nº 10.684/03. COMPENSAÇÃO. INDEFERIMENTO PELA RECEITA FEDERAL. AUSÊNCIA DOS REQUISITOS LEGAIS. IMPOSSIBILIDADE DE SUSPENSÃO DA AÇÃO PENAL.

(omissis)

2. Entretanto, no caso dos autos, embora haja notícia de impugnação administrativa, a infração penal descrita na denúncia é a falta de recolhimento na época própria do imposto de renda retido na fonte (art. 2º, inc. II) que tem natureza instantânea, consumando-se com o simples ato omissivo de não proceder o repasse das importâncias descontadas de terceiros aos cofres públicos.

3. Nessa hipótese, mostra-se despiciendo aguardar o exaurimento da discussão na esfera fiscal, porquanto é irrelevante para a caracterização da referida conduta delituosa, a exemplo do que ocorre no crime de apropriação indébita previdenciária (artigo 168-A, § 1º, inc. I, do CP). (grifos nossos).

(omissis)

(TRF 4ª Região, HC 200404010307170, Relator Luiz Fernando Wowk Penteado, 2004).

3.3. Como a necessidade do exaurimento da instância administrativa quebra a proporcionalidade e da isonomia do penal

Vê-se, portanto, que o condicionamento da consumação dos crimes de sonegação ao exaurimento da instância administrativa tem tido diversas conseqüências práticas que ferem a isonomia e proporcionalidade penal.

Primeiramente, percebe-se que os delitos fiscais acabam, na prática, mitigando a unidade da jurisdição brasileira determinada pelo artigo 5º, inc. XXXV da CF [26]. Além disso, a atuação do Ministério Público acaba sendo tolhida, o que afronta o art. 129, inc. I, também da CF, pois ela fica subordinada à decisão definitiva do ente-arrecadador.

Essa contradição fica evidenciada nas notas taquigráficas do HC 81.611 abaixo transcritas:

O SR. MINISTRO CEZAR PELUSO – É que o Código Tributário prescreve que compete privativamente à autoridade administrativa fazer o lançamento.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Mas a Constituição diz que compete privativamente ao Ministério Público propor ação penal pública.

O SR. MINISTRO CARLOS VELLOSO – Quando for possível.

O SENHOR MINISTRO CARLOS AYRES BRITTO – Não, basta que haja indícios da autoria e certeza da materialidade do crime.

Esses privilégios acima referidos, além de afrontarem o texto constitucional, não existem para quaisquer outros ilícitos, sejam civis, sejam penais.

Ademais, percebe-se que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF não têm admitido nem mesmo a instauração de inquérito policial para apurar as fraudes perpetradas com o intuito de reduzir tributo devido. Assim, se a decisão administrativa demorar anos, o trabalho de coleta de provas para o inquérito policial será desnecessariamente dificultado.

Mais uma vez, percebe-se a existência de dificuldades para a punição dos delitos fiscais que não ocorrem nos tipos penais em geral.

Em virtude do tão referido entendimento jurisprudencial sobre o momento consumativo dos crimes de sonegação fiscal, tem-se que, atualmente, é impossível realizar a prisão em flagrante nessa espécie de delito. O agente pode ser surpreendido pela polícia inserindo elementos inexatos em seus livros fiscais, mas não poderá ser autuado em flagrante, pois aquela fraude constitui crime-meio para o crime contra a ordem tributária, o qual, por sua vez, apenas se consumará com o lançamento definitivo.

Essa impossibilidade do flagrante atingirá proporções inaceitáveis se o momento consumativo dos delitos do art. 2º da lei 8.137/90 também passar a ser o do exaurimento da instância administrativa, como já se começa a advogar.

Finalmente, é possível observar que o entendimento do STF a respeito do momento consumativo dos crimes contra a ordem tributária prolonga o arrependimento eficaz previsto no art. 15, 2ª parte, do CP. Ou seja, prolonga o momento no qual "o agente, após ter esgotado todos os meios de que dispunha – necessários e suficientes –, arrepende-se e evita que o resultado aconteça" (BITENCOURT, 2000, p. 366) [27].

E mais. No "arrependimento eficaz" com relação aos crimes de sonegação, não se exige que seja o próprio agente que impeça o resultado. Qualquer pessoa que pague o tributo antes do exaurimento da instância administrativa, tornará atípica a conduta anteriormente perpetrada. Daí se concluir que não se trata de uma disposição de política criminal – como no caso do arrependimento eficaz dos delitos em geral –, mas sim de uma norma de política arrecadatória.

Ainda se pode dizer, por fim, que a última parte do art. 15 do CP ("o agente (...) só responde pelos atos já praticados"), não se aplicaria ao "arrependimento eficaz" dos delitos fiscais, uma vez que a fraude é absorvida pelo crime-fim, quer se entenda aplicável o princípio da especialidade, quer se aplique o princípio da consunção [28].

3.4. Uma possível solução para o problema

Apenas para concluir, é preciso fazer referência que o Ministro Joaquim Barbosa foi quem deu – em seu voto-vista no HC 81.611 – a melhor solução para a compatibilização entre a existência de lançamento definitivo, o momento consumativo do crime de sonegação e a isonomia do direito penal:

Creio que a solução a ser dada nesse caso já é prevista em lei, especificamente no art. 93 do Código de Processo Penal, que trata das questões prejudiciais heterogêneas.

Veja-se que o deslinde acerca da relação jurídica tributária é estranho ao direito penal, de forma que, em louvor à regra da especialidade, tal relação jurídica há de ser mais bem apreciada pelo juízo ou órgão que ordinariamente cuida dessa matéria.

Assim, a decisão acerca da existência ou inexistência de crime fiscal compete exclusivamente ao Poder Judiciário, mas o ato de lançamento continua sendo atribuição da Administração Pública.

Isso nos leva a dizer que, nos crimes tributários, a instância administrativa e a jurisdicional têm relativa independência, porquanto o fato humano voluntário que faz surgir a obrigação tributária e o ilícito penal é o mesmo.

[...]

À luz desse entendimento, havendo os requisitos para oferecimento da denúncia, o Ministério Público deverá oferecê-la. A seguir, o juiz poderá seguir dois caminhos diferentes, para resolver a questão prejudicial.

O primeiro, que me parece metodologicamente desinteressante, seria o da decisão, em caráter incidental (ou seja, na motivação), sobre a ocorrência do fato típico tributário, hipótese em que não haveria coisa julgada material.

Já o segundo, mais coerente com tudo aquilo exposto, é o

da suspensão do processo penal, cumulada com a suspensão do prazo prescricional, na forma do art. 93 do Código de Processo Penal, para que se aguarde o desfecho acerca do lançamento.

Dessa forma, após a decisão administrativa sobre o lançamento definitivo (portanto, sobre a ocorrência ou não ocorrência do fato imponível, nos termos da lei tributária), ou a ação penal se encerrará sem julgamento do mérito, ou retomará seu curso com a prova da existência do resultado naturalístico exigido pelo art. 1º da Lei 8.137/1990.

E finaliza, citando Luiz Flávio Gomes, por que essa solução é a que melhor harmoniza o ordenamento jurídico pátrio [29]:

Cabe ainda considerar que a tese da prejudicialidade, tal como sustentada neste trabalho e no acórdão citado:

a) não impede a atuação do Ministério Público (que está autorizado a dar início à ação penal, segundo jurisprudência do STF);

b) não viola sua prerrogativa de promover com exclusividade a ação penal pública (CF, art. 129, I);

c) não lhe veda o acesso ao judiciário (CF, art. 5.º, XXXV) (leia-se: está garantida a processabilidade);

d) não fere a intelecção da Súm. 609 do STF (que diz que a ação penal nos crimes tributários é pública incondicionada);

e) não conflita com a orientação do STF tomada na ADIn 1.571, isto é, não afeta a processabilidade concreta;

f) não leva à prescrição do crime, porque o seu curso fica suspenso (CP, art. 116, I);

g) não favorece a "indústria" da prescrição porque o recebimento da denúncia é o primeiro marco interruptivo da extinção da punibilidade;

h) não favorece a impunidade porque o juiz deve colher a prova testemunhal e outras de natureza urgente, preservando-as para atendimento do interesse público fundado na segurança;

i) não significa morosidade da prestação jurisdicional porque o processo administrativo-fiscal relacionado com a exigência do tributo ou contribuição tem prioridade (art. 6.º do Dec. 982/93);

j) faculta ao contribuinte o exercício do direito constitucional da ampla defesa, isto é, permite-lhe discutir (no âmbito administrativo) direito que lhe pertence.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARVALHO, Bernardo Marino. A quebra da isonomia nos crimes de sonegação fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2311, 29 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13676. Acesso em: 29 mar. 2024.

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