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Direitos e garantias individuais no processo administrativo disciplinar

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17/10/2009 às 00:00
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PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Pelo princípio da presunção de inocência, esboçado no art. 5º, inciso LVII, da CF/88, "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória", o qual se entende que toda pessoa é considerada inocente, e assim deve ser tratada, até que se tenha uma decisão irrecorrível que o declare culpado.

A natureza jurídica desse princípio é uma garantia individual, repercutindo diretamente no processo em favor do acusado, seja processo de natureza civil, criminal ou administrativa, dentre outros.

O professor Paulo Rangel em sua obra afirma que:

A visão correta que se deve dar à regra constitucional do art. 5º, LVII, refere-se ao ônus da prova. Pensamos que, à luz do sistema acusatório, bem como do princípio da ampla defesa, inseridos no texto constitucional, não é o réu que tem que provar sua inocência, mas sim o Estado-administração (Ministério Público) que tem que provar a sua culpa [04].

O referido autor entende que a norma contida no inciso LVII, do art. 5º, da Magna Carta não pode ser entendida como princípio da presunção de inocência, mas sim como regra constitucional que inverte o ônus da prova para o Ministério Público.

Todavia, essa visão do autor não é completa. O art. 156 do Código de Processo Penal aduz que a prova da alegação incumbirá a quem a fizer, assim, provar a culpabilidade do réu é ônus do órgão acusador, no caso de alegação por parte da defesa de qualquer causa excludente da ilicitude, de culpabilidade ou extinção da punibilidade, pela inteligência do artigo acima mencionado, deveria caber ao acusado provar tais alegações, porém, como uma das consequências do princípio da presunção de inocência é que cabe ao acusador provar a culpa do réu. É a acusação que deverá demonstrar, no processo, que não há causas que excluam ou isentem o réu da pena ou o servidor da sanção disciplinar.

Assim, entende-se que não há inversão do ônus da prova para o Ministério Público ou comissão processante, mas, que cabe a estes provar que o acusado cometeu o delito ou transgressão a que lhe foi imputado, em todos os termos.

O que parece é que o princípio, ora em comento, significa que o réu não poderá ser considerado culpado antes do trânsito em julgado, devendo ser considerado e tratado como se inocente fosse. Esse significado é iuris tantum, pois caberá prova em contrário.

Dito isto, é preciso observar que as consequências do princípio da presunção de inocência são: aplicação do in dubio pro reo, acolhido pelo Código de Processo Penal no art. 386, inciso VI, o qual assegura que na dúvida, em favor do réu; somente decisão irrecorrível pode declarar a culpabilidade do acusado, depois de provada durante a instrução processual, e só assim poderá ser tratado como culpado; a prova da culpa do acusado é do Ministério Público ou querelante, no caso de processo crime, e da comissão processante, no caso de processo administrativo; a de estar obrigado o julgador a verificar detidamente a necessidade da restrição antecipada ao jus libertatis do acusado, fundamentando sua decisão; e, a revogação (ou não recepção) do art. 393, inciso II, do Código de Processo Penal, que mandava lançar o nome do réu no rol dos culpados.

Roberto Delmanto Júnior [05] acrescenta ainda que o princípio da presunção de inocência, abrange, além da questão do ônus da prova, mas, como também, a inadmissibilidade de qualquer tratamento preconceituoso em função da condição de acusado, direito a sua imagem, ao silêncio, sem que se considere culpado, local condigno em sala de audiências ou no plenário do Júri, ao não uso de algemas, salvo em casos excepcionais, e, por fim, à cautelaridade e excepcionalidade da prisão provisória.

Alberto Binder, em sua obra Introdução ao Direito Processual Penal, sobre o princípio de presunção de inocência escreve:

1. Que somente a sentença tem essa faculdade.

2. Que no momento da sentença existem somente duas possibilidades: culpado ou inocente. Não existe uma terceira possibilidade.

3. Que a ‘culpabilidade’ deve ser juridicamente provada.

4. Que essa construção implica a aquisição de um grau de certeza.

5. Que o acusado não tem que provar sua inocência.

6. Que o acusado não pode ser tratado como um culpado.

7. Que não podem existir mitos de culpa, isto é, partes da culpa que não necessitam ser provadas [06].

Por fim, o mesmo autor conclui que:

Definitivamente, o acusado chega ao processo isento de culpa e somente pela sentença poderá ser declarado culpado; entre os dois extremos – prazo que constitui, justamente, o processo – deverá ser tratado como um cidadão livre submetido a esse processo porque existem suspeitas a seu respeito, porém, em nenhum momento sua culpabilidade poderá ser antecipada. Uma afirmação deste tipo leva-nos à questão da prisão preventiva, que comumente é utilizada como pena.

Este é o programa constitucional, porém, a realidade de nosso processo penal está muito longe de cumprir com o mesmo. Ao contrário, a realidade mostra-nos que existe uma presunção de culpabilidade e que aqueles que são submetidos a processo são tratados como culpados; em muitas ocasiões, por falhas do procedimento, a sociedade ‘deve deixar sair’, apesar de ‘já’ terem sido ‘condenados’ pela denúncia ou pelos meios de comunicação de massa.

Os fenômenos dos ‘presos sem condenação’ – em prisão preventiva; da utilização do processo como método de controle social; das restrições à defesa – especialmente a defesa pública; da enorme quantidade de presunções que existe no processo penal; da utilização do conceito de ‘ônus da prova’ contra o acusado; do maltrato durante a prisão preventiva; do modo como os detidos ‘passeiam’ pelos corredores dos tribunais etc., são sinais evidentes de que o princípio de inocência é um programa a ser realizado, um trabalho pendente [07].

Para dar efetividade ao princípio aqui comentado, é necessário ter em mente que se trata de uma garantia constitucional que ultrapassa os limites do processo penal, permeando todos os procedimentos que visem à aplicação de sanção, seja qual for a sua natureza, inclusive o processo disciplinar.

Como já maciçamente dito, no processo disciplinar, além de outros princípios, deve ser observado o princípio constitucional da presunção de inocência, que autoriza a absolvição do acusado quando não houver provas seguras ou de elementos que possam demonstrar violação ao regulamento disciplinar.

Com fundamento nos dispositivos constitucionais, fica evidenciado que o princípio da presunção de inocência é aplicável perfeitamente ao Direito Administrativo. A ampla defesa e o contraditório pressupõem o respeito ao princípio do devido processo legal, no qual se encontra inserido o princípio da inocência, princípios estes que o processo administrativo deve observar, já que a Constituição o igualou ao processo judicial.

O referido princípio insere-se perfeitamente no âmbito administrativo militar. Neste diapasão, importante trazer à lição de Paulo Tadeu Rodrigues Rosa, a seguir transcrita:

Na dúvida, quando da realização de um julgamento administrativo onde o conjunto probatório é deficiente, não se aplica o princípio in dubio pro administração, mas o princípio in dubio pro reo, previsto na Constituição Federal e na Convenção Americana de Direitos Humanos, que foi subscrita pelo Brasil.

A ausência de provas seguras ou de elementos que possam demonstrar que o acusado tenha violado o disposto no regulamento disciplinar leva à sua absolvição com fundamento no princípio da inocência, afastando-se o entendimento segundo o qual no direito administrativo militar vige o princípio in dubio pro administração, que foi revogado a partir de 5 de outubro de 1988.

A autoridade administrativa militar (federal ou estadual) deve atuar com imparcialidade nos processos sujeitos aos seus julgamentos, e quando esta verificar que o conjunto probatório estampado é deficiente deve entender pela absolvição do militar. A precariedade do conjunto probatório deve levar à absolvição do acusado para se evitar que este passe por humilhações e constrangimentos de difícil reparação, que poderão deixar suas marcas mesmo quando superados, podendo refletir nos serviços prestados pelo militar à população, que é consumidor final do produto de segurança pública e segurança nacional [08].

Dessa forma, importante esclarecer que a Constituição Federal garante a todos os acusados, seja em processo criminal, seja em processo administrativo, o direito de serem considerados inocentes, até que uma decisão irrecorrível lhe diga culpado, portanto, perfeitamente, aplicável o princípio da presunção de inocência no processo administrativo disciplinar.

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As principais consequências da aplicação do princípio da presunção de inocência no processo disciplinar são: a de atribuir inexoravelmente a obrigação de colheita da prova pela comissão processante, o que significa dizer que o acusado não precisa provar que é inocente, e sim a comissão que tem que provar que o servidor é culpado, e não por meros indícios e suposições, mas por provas cabais da sua culpa; na dúvida a interpretação será sempre em favor do acusado; somente decisão irrecorrível pode declarar a culpabilidade do acusado, depois de provada durante a instrução processual, e só assim poderá ser tratado como culpado.


PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Esboçado no art. 1º, inciso III e art. 5º, inciso III, ambos da CF/88. Por esse princípio, entende-se que o acusado tem o direito de ser julgado conforme a lei, de forma justa, podendo, para se ter um julgamento justo, provar, contraprovar, alegar e defender-se de forma ampla, em processo público. Deve haver uma igualdade de tratamento entre as partes da relação processual. Pela lição de Luís Gustavo Grandinetti [09], o princípio da dignidade é uma garantia de que o acusado, no processo penal ou processo administrativo, não fosse um mero espectador do seu próprio julgamento, não permitindo, desta forma, que o sistema processual seja inquisitivo.

O professor Luis Recaséns Siches [10] declara que foi no Cristianismo que a ideia da dignidade da pessoa humana adquiriu maior relevo, convertendo-se como princípio básico em todas as legislações dos países ocidentais. Segundo o autor, o valor deste princípio é que embasa o respeito do direito à vida e do direito à liberdade.

Sobre o direito à vida, deve-se entender que a pessoa humana deve ter garantido pelo Estado a sua integridade física, vida e saúde, não podendo outro atentar injustamente contra aquele; o Estado, ainda, tem que cooperar na defesa do homem contra os perigos da natureza e situações prejudiciais; direito à solidariedade social.

Já sobre direito à liberdade, entendida esta como a liberdade jurídica, compreende-se duas classes de defesa, são elas a defesa do indivíduo contra o Estado, e a defesa da pessoa contra ataques de outros indivíduos. Eis alguns aspectos da liberdade jurídica: liberdade em ser dono do próprio destino; liberdade de consciência, de pensamento, de opinião e de expressão; inviolabilidade da vida privada, da família, do domicílio e da correspondência.

Santo Agostinho, em A Cidade de Deus, Livro XII, Capítulo 20, afirma o seguinte:

A liberdade é concebida aqui não como uma disposição humana íntima, mas como um caráter da existência humana no mundo... o homem é livre porque ele é um começo e, assim, foi criado depois que o universo passara a existir: (Initium) ut esset, creatus es hommo, ante quem nemo fuit. No nascimento de cada homem esse começo inicial é reafirmado, pois em cada caso vem a um mundo já existente alguma coisa nova que continuará a existir depois da morte de cada indivíduo. Porque é um começo, o homem pode começar; ser humano e ser livre são uma única e mesma coisa. Deus criou o homem para introduzir no mundo a faculdade de começar: a liberdade [11].

À luz do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, o STF editou a súmula vinculante n. 11, publicada em 22.08.2008, que dispõe sobre o uso de algemas. O inteiro teor da súmula é o seguinte: "Só é lícito o uso de algemas em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso ou de terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere, sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado".

A edição da súmula pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal deu-se, em muito, por conta da "espetacularização" nas prisões feitas pela Polícia Federal de pessoas da alta classe e de autoridades, e que, sem nenhuma necessidade, faziam o uso indiscriminado de algemas. Assim, em que pese a sua motivação, que também é legítima, a edição da súmula é de fundamental importância, principalmente, para o preso pobre, que muitas vezes entra em julgamento no plenário do júri algemado, o que o estigmatiza como um criminoso de alta periculosidade, mesmo sem ter sido ainda julgado.

Vê-se, portanto, que, o uso de algemas é a exceção no ordenamento jurídico, devendo restringir-se, tão-somente, nos casos de resistência do conduzido e de fundado receio de fuga, ou ainda de perigo à integridade física própria ou alheia.

Em qualquer dos casos, o uso de algemas deverá ser justificado por escrito pela autoridade executante, sob pena deste ser responsabilizado disciplinar, civil e penalmente. Outra consequência para o uso indevido das algemas diz respeito à nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere. Assim, o julgamento perante o Tribunal do Júri por acusado assistindo a sessão o tempo todo com algemas é caso de nulidade do julgamento, desde que este seja condenatório.

Ademais, o uso de algemas de forma indevida gera no conduzido um profundo abalo psíquico, o que acarreta no dano moral a ser reparado pelo Estado, na medida em que este tem responsabilidade civil objetiva pelos atos praticados por seus agentes, no exercício de suas funções. Afirmar que a responsabilidade é objetiva, é garantir ao lesado que terá indenização independente de culpa do agente, basta que fique comprovada a conduta lesiva, qual seja, o uso da algema, o dano e o nexo de causalidade.

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Sobre o autor
Fabiano Samartin Fernandes

advogado, coordenador jurídico da AGEPOL/CENAJUR e pós graduando em Ciêncais Criminais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FERNANDES, Fabiano Samartin. Direitos e garantias individuais no processo administrativo disciplinar. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2299, 17 out. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13692. Acesso em: 28 mar. 2024.

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