5 – DEPOSITÁRIO INFIEL E ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA
Um ponto de extrema relevância que não podia passar despercebido neste estudo refere-se à equiparação do devedor-fiduciante ao depositário infiel.
A alienação fiduciária em garantia, segundo Arnold Wald [27], é "todo negócio jurídico em que uma das partes (fiduciante) aliena a propriedade de uma coisa móvel ao financiador (fiduciário), até que se extinga o contrato pelo pagamento ou pela inexecução."
Aline Paula Gomes Costa [28] ensina que
O contrato em questão ocorre nas hipóteses em que um interessado em determinado bem, que não dispõe da importância necessária para adquiri-lo, realiza um contrato com uma instituição financeira a qual paga ao vendedor a importância do bem, tornando-se credor desta importância. A peculiaridade do instituto está em que a propriedade do bem passa à financeira, a qual detém a posse indireta, enquanto o adquirente passa a deter a coisa como possuidor direto e depositário. Pago o preço do financiamento, a propriedade se transfere plenamente ao adquirente.
Esse instituto foi introduzido no ordenamento no ano de 1965, por meio da Lei nº 4.728 em seu art. 66. Posteriormente veio a ser regulamentada pelo Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969.
A criação do Decreto-Lei n. 911/69, como bem preleciona Pablo Stolze [29], deu-se por pressão das instituições financeiras sobre o governo para alteração do sistema Legislativo. Queriam reforçar as garantias já existentes, não sendo suficiente as já asseguradas pelo penhor e pela venda com reserva de domínio.
Como resultado, ao contrário do que previa a Lei n. 4.728/65, o Decreto-Lei n. 911/69 passou a admitir a prisão civil, visto que equiparou o devedor-fiduciante ao depositário infiel. Seu art. 4º assim versa: "Se o bem alienado fiduciariamente não for encontrado ou não se achar na posse do devedor, o credor poderá requerer a conversão do pedido de busca e apreensão, nos mesmos autos, em ação depósito, na forma prevista no Capítulo II, do Título I, do Livro IV, do Código de Processo Civil."
Os que estão de acordo com o diploma argumentam que não sendo o devedor proprietário da coisa, deve guardá-la e conservá-la, configurando assim uma típica prestação de depósito. Esse entendimento, todavia, não é consensual no meio jurídico, visto que forte doutrina firma posição contrária. Pablo Stolze [30], por exemplo, ensina que
[...] o devedor não seria um mero depositário. Afinal, ele utiliza a coisa como verdadeiro proprietário, não tendo, simplesmente, obrigação de conservá-la e restituí-la. Ademais, o depositário não pode, senão quando expressamente autorizado, usar a coisa, nos termos do art. 640 do CC-02, o que não é exigido do devedor/fiduciante, que a comprou exatamente para dela gozar e fruir.
Desde a Constituição de 1946 é vedada a prisão civil na ordem interna, sendo que eram ressalvados os casos do devedor de alimentos e do depositário infiel, na forma da lei. Ou seja, pela leitura do dispositivo, verifica-se que cabia ao legislador infraconstitucional determinar em que termos se daria a prisão civil.
Hoje, contudo, foi retirada da Carta Magna a expressão "na forma da lei", o que retirou, por consequência, o poder do Congresso Nacional de regular as exceções impostas pelo texto constitucional. Assim, alguns estudiosos entendem ser inconstitucional a equiparação feita pelo art. 4º do Decreto-Lei 911/69.
Ademais, não se pode esquecer que a regra firmada pelo art. 5º, LXVII é a proibição da prisão civil, e não sua permissão. Há apenas dois casos em que a medida privativa de liberdade aqui em estudo é cabível, não estando a hipótese do devedor-fiduciário entre elas. Nesse sentido, Eduardo Talamini [31] assevera que
Se a Constituição estipulou duas hipóteses taxativas e exaustivas em que cabe a prisão civil, não é possível que a legislação infraconstitucional – manipulando os conceitos tradicionais para além daquele núcleo mínimo – altere o alcance dessas exceções, ampliando-o.
É de se consignar que o Decreto-Lei 911/69 não tenha sido recepcionado pela Constituição de 1988, visto que ao realizar equiparações para fins de prisão civil, demonstra não estar em harmonia com a nova ordem vigente além de ferir o cerne de nosso Estado: a dignidade da pessoa humana. [32]
6 - JURISPRUDÊNCIA
Importante, para uma concreta compreensão do tema aqui em estudo, se faz a análise da jurisprudência brasileira. Analisaremos aqui o entendimento do Supremo Tribunal Federal – guardião da Constituição – acerca do assunto.
O STF posicionou-se durante considerável tempo a favor da admissibilidade da prisão civil do depositário infiel. Considerava-se constitucional a utilização do instituto, até mesmo, para o contrato de alienação fiduciária.
Um julgado muito discutido foi o HC 75.512-7/SP, no qual o Ministro Maurício Correa afirmou que:
Os compromissos assumidos pelo Brasil em tratado internacional de que seja parte (§ 2º, do art. 5º, da Constituição) não minimizam o conceito de soberania do Estado-Povo na elaboração de sua Constituição: Por esta razão, o Pacto de San José da Costa Rica (ninguém deve ser detido por dívida: este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar) deve ser interpretado com as limitações impostas pelo art. 5º, LXVII, da Constituição."
Nesse período, embora alguns ministros fossem contrários a essa "antiquada" medida, constituíam a minoria. Eram, desse modo, votos vencidos quando da decisão.
Hoje, felizmente, nosso máximo órgão jurisdicional reviu sua posição, firmando entendimento contrário à prisão civil do depositário infiel. No dia 3 de dezembro de 2008, foram proferidas três decisões pelo STF que, com certeza, mudarão o destino da prisão civil do depositário infiel no país.
O RE 466.343/SP foi decidido em sessão plenária por unanimidade, negando provimento ao recurso que solicitava a prisão do devedor fiduciante. Nesse julgado, de grande utilidade se faz transcrever alguns dos argumentos utilizados pelos ministros para a fundamentação de seus votos.
O Min. Joaquim Barbosa diz haver conflito entre o Pacto de São José da Costa Rica e o Decreto-Lei 911/69, visto que o primeiro traz uma proibição à prisão civil por dívida, enquanto o segundo o permite. O aludido jurista votou a favor da proibição ensinando que
[...] a primazia conferida em nosso sistema constitucional à proteção à dignidade da pessoa humana faz com que, na hipótese de eventual conflito entre normas domésticas e normas emergentes de tratados internacionais, a prevalência, sem sombra de dúvidas, há de ser outorgada a norma mais favorável ao indivíduo.
O Min. Carlos Britto, como defendido anteriormente, entende pela improcedência da equiparação feita do devedor fiduciante ao depositário infiel. Para o ilustre ministro:
[...] a alienação fiduciária em garantia não se confunde, não se pode confundir com o contrato de depósito, nem pode ser também a ele equiparado, sobretudo se tiver o propósito de artificializar ou forçar a incidência daquela segunda ressalva de que trata o inciso LXVII do artigo 5º da Constituição Federal.
Outro julgado foi o RE 349.703/RS, no qual, também por unanimidade, o Pleno negou provimento ao recurso que, do mesmo modo que o processo citado anteriormente, visava à prisão do devedor fiduciante.
O Min. Cézar Peluso afirmou que
[...] a admissibilidade da prisão civil, subtendendo-se ressalva à hipótese constitucional do inadimplente de obrigação alimentar, seria sempre retorno e retrocesso ao tempo em que o corpo humano era corpus villis, que, como tal, podia ser objeto de qualquer medida do Estado, ainda que aviltante, para constranger o devedor a saldar sua dívida.
O Min. Celso de Mello ensina não ser cabível a utilização da prisão civil nos contratos de alienação fiduciária. Para o mesmo,
[...] o Decreto-lei nº 911/69 - no ponto em que permite a prisão civil do devedor fiduciante – não foi recebido pelo vigente ordenamento constitucional, considerada a existência de incompatibilidade material superveniente entre referido diploma legislativo e a vigente Constituição da República.
O terceiro e último processo a ser mencionado aqui refere-se ao HC 87.585/TO. Mais uma vez em Sessão Plenária e por unanimidade, o Supremo Tribunal Federal concedeu habeas corpus ao paciente.
Nesse julgado, merece destaque o voto do Min. Ricardo Lewandowski. O mesmo concedeu a ordem fundamentando que
[...] a prisão, que é sempre a ultima ratio do Estado, neste caso, se afigura absolutamente desproporcional, irrazoável, a meu ver, pois não atinge os seus objetivos, além de ser ofensiva ao princípio da dignidade da pessoa humana, que é dos postulados basilares do nosso sistema constitucional.
7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A prisão civil por dívidas foi, por muito tempo, um instituto jurídico permitido pelo Estado em diversas civilizações. Todavia, com o surgimento da Lex Poetelia Papiria (lei que introduziu o princípio da responsabilidade patrimonial na esfera dos negócios jurídicos), de 326 a.C., o não pagamento do débito passou a ensejar não mais a execução pessoal, mas do patrimônio do devedor. [33]
E essa mudança de paradigma atingiu, de certo modo, um expressivo número de países. Mormente nos desenvolvidos não há mais que se falar em execução pessoal do devedor, mas sim em execução de seu patrimônio. Até mesmo em países de terceiro mundo presencia-se essa realidade.
A despeito da utilidade da prisão civil por dívidas em outros tempos, hoje sua utilização se faz imprópria, visto que a humanidade atingiu certo grau de evolução, não mais cabendo esse tipo de privação de liberdade.
Atualmente os Estados visam a garantir direitos fundamentais de seus cidadãos. E, no nosso ponto de vista, utilizar a medida privativa de liberdade aqui em estudo, em razão da proteção do bem jurídico patrimônio em detrimento da dignidade da pessoa humana, é incompatível com o Estado de hoje. Principalmente no que diz respeito ao Brasil.
A dignidade da pessoa humana é consagrada como o cerne de nosso Estado. Entende-se que todo o ordenamento jurídico, quando de sua interpretação, deve-se amoldar a esse princípio a fim de garantir a satisfação dos direitos de todo cidadão.
Nessa perspectiva, entende-se ser o art. 5º, LXVII norma constitucional de eficácia negativa. Isso porque tal dispositivo não visa a determinar a prisão civil do depositário infiel. Pelo contrário. Constitui-se em uma garantia dada à sociedade de que não haverá prisão civil por dívidas.
A finalidade do legislador quando da criação do inciso LXVII do art. 5º não era determinar a prisão civil do depositário infiel, mas tão-somente autorizar. Desse mesmo entendimento comunga Inácio de Carvalho Neto [34]:
[...] o objetivo da norma, que é de direito individual, não é determinar a prisão de quem quer que seja, mas, ao contrário, proibir, como regra, a prisão civil por dívida. Admite, contudo, duas exceções, não como determinação, mas como mera permissão.
Embora houvesse divergências, desde o início do problema, expressiva parte da doutrina já defendia essa posição. O judiciário por sua vez, embora também não chegasse a um consenso, tinha como orientação, infelizmente, o entendimento do STF pela constitucionalidade do instituto.
No momento atual, com a devida correção feita pelo STF em sua jurisprudência, acredita-se não haver mais dúvida acerca da prisão civil do depositário infiel. É fato sua inconstitucionalidade frente à Carta Magna. Finalmente ter-se-á a concretização da Dignidade da Pessoa Humana.
REFERÊNCIAS
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Notas
- Prisão civil por dívida. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 51.
- Breves notas acerca da prisão. Disponível em <jus.com.br/revista/texto/5712">http://jus.com.br/revista/texto/5712>. Acesso em: 30 de jun. de 2009.
- Ibid., p. 53
- AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 53.
- GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume II: obrigações. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 308.
- A inadmissibilidade da prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia: uma análise empírica. Disponível em: <jus.com.br/revista/texto/8156">http://jus.com.br/revista/texto/8156>. Acesso em: 03 ago. 2009.
- Op. cit., p. 51.
- Ibid., p. 55.
- Apud AZEVEDO, Álvaro Villaça, op. cit., p. 54.
- Direito civil brasileiro: contratos e atos unilaterais. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 3. p. 379.
- Ibid., p. 360.
- Curso de direito civil brasileiro: teoria das obrigações contratuais e extracontratuais. 23. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 3. p. 347.
- Ibid., p. 349.
- Op. cit., p. 363.
- GONÇALVES, Carlos Roberto, op. cit., p. 363.
- Direito civil: dos contratos e das declarações unilaterais da vontade. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. v. 3. p. 273.
- Ibid., p. 274.
- Op. cit., p. 352.
- RODRIGUES, Sílvio, op. cit., p. 280.
- DINIZ, Maria helena, op. cit., p. 355.
- GONÇALVES, Carlos Roberto, p. 365.
- Op. cit., p. 361.
- A prisão civil do depositário infiel na visão do Supremo Tribunal Federal. Disponível em <http://jusvi.com/artigos/38208>. Acesso em: 10 de jul. de 2009.
- FIUZA, César. Direito Civil: curso completo. 11. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2008. p. 556.
- Apud DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 361.
- Apud DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 361.
- Apud GAGLIANO, Pablo Stolze, op. cit., p. 313.
- A inadmissibilidade da prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia: uma análise empírica. Disponível em: <jus.com.br/revista/texto/8156">http://jus.com.br/revista/texto/8156>. Acesso em: 03 ago. 2009.
- Op. cit., p. 314.
- Op. cit., p. 315.
- Apud GAGLIANO, Pablo stolze, op. cit., p. 316.
- A inadmissibilidade da prisão civil por dívida decorrente da alienação fiduciária em garantia: uma análise empírica. Disponível em: <jus.com.br/revista/texto/8156">http://jus.com.br/revista/texto/8156>. Acesso em: 03 ago. 2009.
- AZEVEDO, Álvaro Villaça. Op. cit., p. 27.
- A prisão do depositário infiel, o Pacto de São José da Costa Rica e o Novo Código Civil. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em: 15 de jul. de 2009.