Resumo: o autor faz uma análise do sistema de investigação criminal no Brasil, como parte do sistema maior de justiça criminal, utilizando como marco alguns crimes de grande repercussão nacional e não resolvidos até o momento. São discutidos aspectos relativos à adequação do sistema inquisitorial brasileiro às demandas da moderna investigação criminal, incluindo o treinamento de policiais, os recursos técnicos e periciais, a excessiva burocratização do inquérito policial e a limitada incorporação de tecnologia em nosso meio. No decorrer do texto, o autor aponta diversos recursos da moderna investigação criminal, não utilizados em nosso meio e tece considerações sobre o papel do assistente técnico na garantia real da ampla defesa do acusado.
Palavras-chave: justiça criminal, investigação criminal, Código de Processo Penal, perícia criminal, perícia médico-legal, inquérito policial.
O "Crime da 113 Sul" [01], o "Caso Becker" [02] e o "Caso Raquel" [03], a par da distância geográfica e do modus operandi que os separa, têm pelo menos uma coisa em comum: o número de depoentes e o volume de folhas dos inquéritos crescem na proporção inversa da possibilidade de sua resolução.
Tal fato não é exatamente uma exceção, num país que possui um índice absurdamente baixo de resolução de crimes incomuns, praticados em circunstâncias, com métodos ou por pessoas que já não sejam de conhecimento prévio das autoridades responsáveis, para não dizer simplesmente de "domínio público". E isso se deve a diversas circunstâncias, que merecem uma análise mais apurada:
O Brasil, como diversos países europeus, adota um sistema de justiça criminal de tipo inquisitorial, em contraposição ao chamado sistema adversarial adotado pelas jurisdições de tradição anglo-saxã. Talvez a melhor forma de ilustrar as diferenças seja comparando os dois sistemas: o adversarial (p.ex. EUA) parte do pressuposto da igualdade entre as partes que se enfrentam em dada matéria, as quais se constituem na defesa e na acusação. Nessas condições, ambas as partes se engajam na produção de provas, que serão apresentadas e defendidas perante um Juiz. Esse sistema se caracteriza por ter uma fase judicial comumente mais extensa que a fase de investigação. No sistema inquisitorial (p.ex. Brasil, França), o pressuposto básico é o do monopólio do Estado na investigação, a qual irá determinar a presença de elementos de convicção sobre um determinado crime para que a persecução penal seja levada a juízo, ao mesmo tempo em que conduz a acusação. As características tradicionais do processo inquisitorial incluem uma ênfase maior na documentação e na produção de um inquérito revestido de formalidades, o qual não é tipicamente público, tampouco permitindo o contraditório. Assim, pode-se dizer que o pilar do sistema de justiça criminal brasileiro é o primeiro produto desse mesmo sistema, no qual se assentarão todos os demais procedimentos: o inquérito policial (Moraes, 2007).
Por outro lado, a moderna investigação criminal aportou uma série de conhecimentos e técnicas auxiliares da resolução de crimes. Uma ênfase muito grande tem sido colocada no tempo de duração da investigação, pois ele tem uma relação inversa com a possibilidade de obtenção de informações relevantes à resolução do caso. Qualquer bom livro de criminalística ensina que as evidências "esfriam" nas primeiras 72 horas e que, passado esse período sem obtenção de informações relevantes, o caso todo tenderá a esfriar(Genge, 2002; Geberth, 2003; 2006).. Casos resolvidos além desse período, o tem sido por fatores alheios ao domínio da boa técnica investigativa: o acaso e eventual denúncia de terceiros.
Desprovidos de recursos tecnológicos os mais modernos, em inúmeras situações nossos investigadores têm sustentado suas conclusões naquela que é conhecida vulgarmente no meio jurídico por "prostituta das provas": a prova testemunhal. Não é demais recordar que as testemunhas mentem, se enganam, se confundem ou esquecem muito rapidamente do que viram ou ouviram. Sem contar aquelas que passam a achar que viram depois de conversar sobre o caso com outras testemunhas, ou mesmo de assistir o noticiário [04]. Em recente caso de rumoroso acidente de trânsito no DF, no qual atuei como assistente técnico da defesa, uma testemunha disse não ter visto o veículo no local do acidente, mas que o reconheceu após assistir o noticiário na televisão. Ou seja, seu depoimento foi "moldado" por aquilo que assistiu na TV.
Nesse contexto, o inquérito policial, como concebido e utilizado em nosso país, caminha exatamente na contramão da moderna técnica investigativa. A necessidade de intimar formalmente as testemunhas, reduzir seus depoimentos a termo e acostá-los aos autos é incompatível com a obtenção de informações úteis e tempestivas, tornando os policiais meros burocratas que colecionam depoimentos e documentos, na esperança de que, num passe de mágica, algo surja de útil daquela pilha de papéis. No "Caso Becker", a polícia gaúcha obteve autorização para quebra do sigilo telefônico da vítima em apenas 48h (Trezzi, 2008), mas a operadora de telefonia tardou quase um mês em responder formalmente. Se ali houvesse informação útil, já teria perdido boa parte de seu valor, mas os investigadores estavam obrigados a aguardar a resposta oficial, impedidos de, in loco, obter as informações relevantes. E tudo isso em nome da produção de peças formais que poderão ser refeitas na fase judicial, numa flagrante duplicidade de trabalho ao qual só é possível atribuir um nome: desperdício de recursos públicos, humanos e materiais.
Se tudo isso não fosse suficiente, o inquérito policial não apenas prende na delegacia, preenchendo papéis, policiais que deveriam estar na rua investigando, mas também distribui poderes reais não previstos no Código de Processo Penal. Sim pois, na prática, não é o Delegado de Polícia que determina o andamento do inquérito, vez que está assoberbado pela demanda de 5, 6 ou mais cartórios e toda sua parafernália burocrática. Quem o faz é, de fato, o escrivão de polícia, o "dono do cartório" e, portanto, o verdadeiro "dono da ação penal", a par de qualquer pretensão que o Ministério Público possa ter sobre isso.
Ainda temos a questão do treinamento da polícia para a investigação. E para isso basta analisar os programas dos cursos de formação de Delegados de Polícia, os quais têm uma grande ênfase justamente nas matérias que reforçarão o caráter burocrático da investigação policial [05]. Se, para ser aprovado no concurso para Delegado, o bacharel deve ter conhecimentos prévios de direito penal e processual penal, entre outras, a única coisa que se poderia esperar é que o tempo dos cursos fosse utilizado no treinamento das técnicas de investigação, da psicologia do crime e do interrogatório, da perícia criminal e da medicina legal, do manejo das armas de fogo e etc. Talvez assim menos locais de crime seriam devassados por aqueles que tem a função de protegê-lo e preservá-lo.
Mas não é isso que acontece e não é raro que a única técnica de interrogatório conhecida pelo policial seja a "pressão" e que um investigador não saiba quais as limitações do uso do Luminol num local de crime. Nem que falar em interpretar uma lesão corporal e sua relação com o estado de espírito do suposto agressor (e a possível motivação do crime), como resta evidente na descrição das lesões encontradas nas vítimas da 113 Sul (Torre e Silva, 2006; Folino e Escobar-Córdoba, 2009). Nesse contexto, não é de estranhar que muitos policiais se sintam restringidos, e mesmo impotentes, quando não podem fazer uso da força para obter informações relevantes para resolver um caso rumoroso.
Mas a burocratização do Inquérito não tem repercussões somente sobre o trabalho policial propriamente dito. Os peritos, sujeitos estratégicos da investigação, também se vêem absorvidos por essa lógica perversa [06]. Apesar de a perícia criminal ter nascido dentro da Medicina Legal (Edmond Locard, o "pai da criminalística" era médico e discípulo de Lacassagne) (Lacassagne, 1906; Locard, 1935; Tilstone, Savage et al., 2006), o que se vê no Brasil é uma total dissociação entre o trabalho dos peritos criminais e dos legistas.
Aqueles, os peritos, em número insuficiente para dar conta da demanda de chamados e desprovidos de maiores recursos materiais, se limitam a comparecer rapidamente ao local de crime e cumprir as análises laboratoriais mínimas (na maioria das vezes sem qualquer controle de qualidade). Estes, os legistas, por sua vez, estão há vários anos confinados nos necrotérios, onde labutam em condições insalubres e com salários vergonhosos (ao menos na maior parte dos Estados), fazendo necropsias em tempo recorde para evitar a grita pela liberação dos corpos, como se a prioridade não fosse a investigação [07]. No Brasil, os médicos-legistas não comparecem ao local de crime, o que nos inclui em mais uma vergonhosa exceção: diz um adágio médico-legal que o local de crime é 50% da perícia (Gisbert Calabuig e Villanueva Cañadas, 2004; Spitz, Spitz et al., 2006), portanto neste país metade do trabalho está deixando de ser feito.
E não havendo comunicação direta entre os peritos, tampouco entre estes e os investigadores, o trabalho pericial acaba reduzido à produção de laudos (não necessariamente de provas) que tardam semanas em serem elaborados e acabam por "cair" no inquérito, totalmente dissociados da investigação. Os investigadores não terão acesso a informação fundamental antes da liberação dos laudos, e sua análise, interpretação e cotejo com as demais provas do inquérito serão feitos por alguém que não foi treinado para isso e que, na maioria das vezes, sequer entende os termos ali utilizados. E, se o policial tiver dúvidas a esclarecer, enviará um ofício aos peritos, que será protocolado no departamento responsável, seguirá para a chefia e...
Ainda, uma questão não menos importante se refere ao grau de incorporação de tecnologia à investigação criminal no Brasil. O que vemos, na prática, na grande maioria das vezes, é uma disputa absurda por recursos dentro das secretarias de segurança, que terminam invariavelmente num paradoxo artificial entre adquirir armas e coletes a prova de balas para a repressão ou equipamentos para a investigação. E os peritos acabam numa sucessão de improvisos e "quebra-galhos", que vão desde o uso de softwares não-licenciados até o desenvolvimento de substâncias e técnicas "alternativas" de qualidade duvidosa. Nem que falar na aquisição de equipamentos modernos do tipo scanner 3-D, pois isso seria ilusório para uma perícia que sequer dispõem de fontes de luz UV. A maior parte dos consultórios médico-legais não possui máquinas fotográficas, fontes de luz (comum) adequada, colposcópios, corantes ou "kits estupro" para o exame das vítimas, enquanto os governos estaduais e federal fazem alarde dos laboratórios de DNA, que passam a maior parte do ano sem reagentes para trabalhar [08].
E apesar do mundo da perícia criminal não ser feito só de tecnologias "hard", mas também possuir vasto patrimônio de tecnologias "soft", tais como as técnicas de interrogatório de suspeitos e vítimas (Zulawski e Wicklander, 2002; Ford, 2006), as análises de perfil criminal (Kocsis, 2007) e as análises investigativas criminais (Davis, 1999), todas no terreno da formação de recursos humanos, estes recursos são completamente ignorados pela maioria de nossos investigadores. O eventual uso de bancos de dados sobre características de crimes, que são a base da moderna análise investigativa criminal poderia, inclusive, mudar a opinião disseminada em nosso país de que não possuímos assassinos seriais. De fato, o que não temos é capacidade para comparar crimes não resolvidos ocorridos em localidades diferentes, inclusive no mesmo Estado. Até que isso possa ser feito, casos como o de Adriano da Silva [09] não podem e não devem ser considerados uma exceção. Nesse contexto, a ciência da investigação criminal no Brasil não tem nada de ciência, tem pouco de investigação, mas acaba tendo muito de criminosa.
Um pequeno avanço na melhoria desse sistema foi a recente modificação do CPP, que permitiu a atuação de assistente técnico na defesa de acusados. Infelizmente, essa intervenção ainda requer admissão pelo Juiz e só é permitida após a conclusão dos laudos periciais, numa clara manutenção do monopólio do Estado sobre a investigação e de sua pretensa imparcialidade e competência para fazê-lo. Isso, na prática, inviabiliza a intervenção do assistente da defesa nas fases mais precoces e mais importantes da investigação (durante a realização dos procedimentos periciais) e limita sua atuação a questionar o produto final: a peça pericial. Uma vez que as provas periciais costumam ser, por sua natureza, irrepetíveis, o questionamento da validade ou credibilidade da peça produzida pelos peritos oficiais exigirá uma decisão em termos de "tudo ou nada", o que nem sempre atende aos fins da administração da justiça. E o legislador ainda calou sobre a possibilidade da realização de contraprova em laboratórios independentes, como sói acontecer nos sistemas mais avançados em todo o mundo.
Mas o papel do assistente técnico não é apenas o de garantir, junto aos advogados da parte, o mais amplo exercício do direito de defesa. Ele também é um grande fiscalizador do trabalho da perícia oficial, para não dizer o único, pois que até agora o Ministério Público tem se servido de provas de qualidade duvidosa face à incapacidade da maioria dos acusados de dispor de assistentes técnicos. O assistente técnico, para bem executar seu mister, será o responsável por escrutinar as provas técnicas, verificar suas debilidades e insuficiências e apontá-las ao juízo. E não pode haver melhor controle de qualidade que esse.
Neste momento, mais uma vez o legislador brasileiro tem em suas mãos a chance de aperfeiçoar o sistema de investigação criminal brasileiro, no momento em que se elabora o novo Código de Processo Penal. Nossos tribunais têm colocado uma ênfase cada vez maior na prova técnica e no uso de critérios científicos para tomar suas decisões. E o sistema de investigação tem que acompanhar essa evolução, qualificando e treinando os policiais para o exercício da tarefa precípua de investigar, alcançando os recursos humanos e materiais necessários ao trabalho pericial, remunerando adequadamente seus agentes, integrando de forma inteligente suas atividades e incorporando instrumentos de exercício real da ampla defesa na fase mais importante do processo: aquela em que as provas são produzidas. Talvez isso nos aproxime um pouco mais do sistema adversarial em suas características mais positivas, tornando o sistema brasileiro um híbrido adequado às demandas sociais da modernidade e com maiores índices de sucesso no esclarecimento de crimes como os de Brasília, Porto Alegre e Curitiba.
Obras consultadas:
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Notas
- O advogado e ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) José Guilherme Villela, 73 anos, a mulher dele, Maria Carvalho Mendes Villela, 69, e a empregada, Francisca Nascimento da Silva, 58, foram mortos na noite de 28/08/2009 — os corpos foram descobertos três dias depois. No total, eles levaram 72 facadas. Até 16/09/2009 já haviam sido coletados 52 depoimentos, sem esclarecimento do caso.
- Na noite de 4 de dezembro de 2008, Marco Antonio Becker, presidente do CRM/RS, foi executado com quatro tiros de pistola. 40, calibre restrito, disparados pelo carona de uma motocicleta Falcon 400 cilindradas em Porto Alegre. Até 01/08/2009 o inquérito já contava com 1450 páginas e mais de 70 depoimentos. Em 30/09/2009 um dos suspeitos alegou ter investigado o caso por conta própria e identificado os executores e o mandante. Até o momento o caso continua em aberto.
- O corpo de uma menina de 9 anos foi encontrado dentro de uma mala abandonada na Rodoferroviária de Curitiba por volta das 2h30 da madrugada de 05/11/2008. Rachel Maria Lobo Oliveira Genofre estava desaparecida desde as 17h30 de segunda-feira (3), quando saiu do Instituto de Educação, no Centro, onde estudava. Até 31/10/2009 mais de 1000 pessoas já haviam sido ouvidas e o crime ainda não estava esclarecido.
- Como sabemos, a natureza humana permite diferentes percepções e apreensões sobre um mesmo fato por dois ou mais indivíduos. Este grau de subjetividade pode ser determinante em um depoimento. Além de sofrer interferências objetivas, como a duração do contato com a situação testemunhada, o grau de iluminação do local do fato e a ausência ou presença de silêncio, há elementos subjetivos determinantes, como a atenção da testemunha, a emoção envolvida, eventuais confabulações ou falsas memórias, imaginação, possíveis alucinações, medo, cólera, erros de avaliação e de reconhecimento. Nas palavras de Beccaria, "a testemunha diz a verdade quando não tem interesse em mentir".
- No RS, de acordo com a Lei Nº 8.835, de 22/02/1989, que "regula o ingresso de servidores na Polícia Civil do Estado e dá outras providências", o percentual de apenas 10% da carga horária do curso de formação é destinado às matérias relacionadas à investigação científica do crime (medicina legal, toxicologia, perícia e outras).
- Apesar da pretensão de imparcialidade de que se reveste a investigação, é importante recordar que tanto a polícia quanto os peritos estão a serviço do Estado e, na prática, da acusação. E isso não mudou nos Estados em que a perícia é autônoma, pois sua vinculação hierárquica é determinada pela legislação. A perícia oficial só poderá produzir provas úteis à defesa se houver determinação judicial, quando isso já não costuma ser possível. Ao suspeito, indiciado ou réu, resta buscar por seus próprios meios e à custa de seu patrimônio os elementos necessários a produzir sua defesa.
- Na Inglaterra, por exemplo, o tempo médio de liberação de um corpo é de 4 dias. Ele fica à disposição da investigação enquanto for necessário, pois a prioridade é a resolução do caso, que pode ser prejudicada pela inumação ou, pior, cremação precoce.
- Um panorama dos recursos tecnológicos disponíveis para a investigação criminal moderna pode ser obtido nos catálogos dos principais fornecedores do mundo. Entre eles: http://www.sirchie.com/, http://www.leica-geosystems.us/forensic/ e http://www.photomodeler.com/.
- Adriano da Silva, 25 anos, foi preso em 06/01/2004 acusado de matar crianças no Rio Grande do Sul. Confessou à polícia ser o autor da morte de pelo menos 12 menores no norte do Estado. Após ser detido, em Maximiliano de Almeida (RS), ele deu alguns detalhes dos crimes, realizados nos últimos 16 meses. Todas as vítimas eram crianças e tinham entre 8 e 13 anos. Apesar de ser foragido da justiça, ele já havia sido preso e fora liberado, pois portava uma carteira de identidade de outra pessoa. A ligação entre diversos desses crimes não era conhecida até sua prisão e confissão. Em juízo, o acusado admitiu apenas um dos crimes, alegando ter sido coagido a confessar os demais