3. O CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS ADMINISTRATIVOS
3.1.FORMAS DE INVALIDAÇÃO: ANULAÇÃO E REVOGAÇÃO
Constitui princípio do direito administrativo o poder-dever que goza a Administração Pública para efetuar o controle de seus próprios atos, o qual poderá ocorrer a requerimento do particular ou de ofício. Dessa forma, possibilita-se uma reapreciação dos atos que produziu, seja analisando questões de legalidade ou de mérito. É o denominado Princípio da Autotutela.
Pela legalidade, verifica o administrador a conformidade do ato emanado com o ordenamento jurídico, sendo um dever sua invalidação diante de uma violação aos preceitos legais. Acerca do mérito, é possível que certo ato, malgrado legal, não seja mais conveniente ou oportuno para o interesse público, fazendo-se necessário o seu desfazimento.
Nesse prisma, são duas as modalidades de invalidação: revogação e anulação. Esta última é a supressão de um ato ilegal, podendo ser tanto pela própria Administração, quando estará agindo em consonância com o poder-dever de autotutela, quanto pelo Judiciário, no exercício da função jurisdicional.
Em outras palavras, é a forma de invalidação do ato administrativo por vício de legalidade ou legitimidade, cabível tanto nos atos vinculados quanto nos discricionários, sempre que se encontrem em dissonância com a legislação vigente. Não há, portanto, análise de conveniência e oportunidade, como ocorre na revogação.
Saliente-se que esta forma de invalidação constitui-se em um dever para a Administração Pública, sempre que verificada a desconformidade com o Direito. É ato vinculado, devendo ser praticado sempre que observada a ilegalidade ou ilegitimidade.
Por sua vez, a revogação é a extinção de um ato válido e eficaz que, em face de um interesse público superveniente, tornou-se inconveniente e/ou inoportuno. Subsume-se deste conceito que tal modalidade de invalidação é ato discricionário, praticável somente por quem o emanou. Em outras palavras, a revogação é de exclusividade da Administração, e não se funda numa contradição entre o ato a lei, mas tão-só num desinteresse em sua manutenção.
Em suma, os atos administrativos poderão ser invalidados pelo próprio Administrador Público, sob regência do princípio da autotutela, seja para anulá-los, constatando-se sua ilegalidade, seja para revogá-los, pelo desinteresse em sua manutenção diante do interesse público. Será possível, ademais, a invalidação do ato pelo órgão judicante, ao qual cumprirá a análise tanto dos vinculados quanto dos discricionários, verificando sua incompatibilidade em relação ao ordenamento jurídico, ou seja, a legalidade.
3.2.O DEVER JURÍDICO DO ADMINISTRADOR PÚBLICO DE ADOTAR A SOLUÇÃO IDEAL OU DE EXCELÊNCIA
Regido pelo princípio da legalidade, o administrador público deverá agir sempre visando os fins legais estatuídos no ordenamento jurídico como um todo. Não há que se falar tão-somente nas normas infra-legais, mas também nos ditames constitucionais, sejam os positivados ou os princípios implicitamente consignados.
Em relação aos atos vinculados, não há dúvidas, uma vez que o legislador definiu antecipadamente qual seria a atuação mais adequada e necessária para cada caso. A conduta administrativa deverá ser pautada em critérios pré-selecionados, dispensando-se qualquer tipo de interpretação para alcançar a providência que melhor atenda o fim estatuído pela lei e o interesse público.
O mesmo não ocorre com os atos discricionários, porque o legislador não determinou com exatidão qual seria a providência a ser tomada. Todavia, não se pode olvidar que a discrição requer também obediência aos preceitos legais, apesar da existência de intelecção subjetiva para averiguar qual atitude seguir. Acontece que esse juízo deverá ser feito a bem do interesse público, buscando observância não só a critérios de legalidade, mas também de eficiência, moralidade e razoabilidade.
Invocam-se as lições de Bandeira de Mello:
"Por outro lado, a ‘liberdade’ que a norma haja conferido em seu mandamento ao administrador, quando lhe abre alternativa de conduta (...), não lhe é outorgada em seu proveito ou para que faça dela o uso que bem entenda. Tal liberdade representa apenas o reconhecimento de que a Administração, que é quem se defronta com a variedade uniforme de situações da vida real, está em melhor posição para identificar a providência mais adequada à satisfação de um dado interesse público, em função da compostura destas mesmas situações. Por isso, a lei, não podendo antecipar qual seria a medida excelente para cada caso, encarrega o administrador, pela outorga de discrição, de adotar o comportamento ideal: aquele que seja apto no caso concreto a atender com perfeição à finalidade da norma" [17].
O gestor público jamais poderá utilizar-se da liberdade conferida pela norma para escolher alternativa que, de alguma forma, o favoreça ou mesmo qualquer delas indiscriminadamente. Deverá agir visando à captação das melhores circunstâncias, a bem do interesse público. Tem a obrigação de verificar, analisando o caso concreto, qual a melhor forma de proceder.
Nesse sentido perfilham-se, como principais características do regime jurídico de direito público, os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público. O primeiro aponta que a Administração buscará sempre e primordialmente o atendimento dos interesses da coletividade, como forma de resguardar e viabilizar os interesses individuais. É a primazia do interesse coletivo sobre os demais interesses que existem na sociedade.
A seu turno, a indisponibilidade significa que nenhum interesse público pertence à Administração ou a seus agentes. O administrador não possui a titularidade, sendo mero gestor da coisa pública; por isso, não lhe é conferida a disponibilidade sobre esses interesses confiados à sua guarda e realização. Importa em um poder-dever, isso porque sempre que se confere uma competência à Administração Pública há a imperiosidade de que se satisfaça um interesse público. Em decorrência lógica, o administrador, obrigatoriamente, deverá agir, visando sempre resguardá-lo.
Analisando a importância desses princípios como forma de basilar a atuação administrativa, Justen Filho que:
"Os princípios apresentam enorme relevância no âmbito do direito administrativo. Tal deriva de que a atividade administrativa traduz o exercício de poderes-deveres, o que significa a vinculação no tocante ao fim a ser atingido. Em inúmeras oportunidades, o Direito não estabelece a conduta satisfatória. A escolha da conduta a ser adotada dependerá das circunstâncias, o que não equivalerá a consagrar a liberdade para o agente escolher como bem entender. Nessas situações, pode haver alguma liberdade de autonomia quanto ao meio a adotar, e os princípios serão instrumento normativo adequado para evitar escolhas inadequadas" [18].
Como se percebe, afirma o autor que a supremacia e a indisponibilidade cercam o administrador público, impondo um dever de buscar sempre a forma mais adequada de atuar. Sem dúvida, quando estiver diante de uma situação que haja um "modus operandi" pré-concebido significa que a própria lei já encontrou a alternativa mais adequada, mais condizente com o interesse público em questão.
Todavia, numa concepção vetusta de discricionariedade, o administrador, ao se deparar com uma situação em que se afigurem diferentes opções para sua atuação, poderá agir do modo que melhor lhe aprouver, ressalvados apenas os casos de ilegalidade. Assim, não haveria a obrigatoriedade de, em se deparando com circunstância que justifique a atuação discricionária, buscar atender o interesse público, que é indisponível e requer sua satisfação com excelência.
Os atos discricionários, não obstante a necessidade de uma avaliação subjetiva, exigem a melhor atuação possível do administrador público. A discrição é conferida por impossibilidade de estabelecer antecipadamente, diante de um leque de opções possíveis, a que melhor se adequaria. Nessa linha, Bandeira de Mello:
"a única razão lógica capaz de justificar a outorga de discrição reside em que não se considerou possível fixar, de antemão, qual seria o comportamento administrativo pretendido como imprescindível e reputado capaz de assegurar, em todos os casos, a única solução prestante para atender com perfeição ao interesse público que inspirou a norma. Daí a outorga da discricionariedade para que o administrador - que é quem se defronta com os casos concretos - pudesse, ante a fisionomia própria de cada qual, atinar com a providência apta a satisfazer rigorosamente o intuito legal" [19].
Há que se ter em mente que, ao conferir qualquer grau de discricionariedade, o legislador pretendeu que houvesse uma adequação diante do caso concreto, que só seria possível pelo administrador, ao qual foi outorgada, sem dúvida, uma liberdade, mas acompanhada com um dever, o de coerência com o interesse público. E, ao revés do que se pode pensar, a discricionariedade é a maior prova de que a lei sempre almeja o comportamento de excelência, uma vez que se assim não fosse teria optado entre uma que realizasse o interesse público sob o conceito médio de satisfação. No entanto, conferiu uma margem de liberdade para que fosse executada não uma ação mediana, mas a melhor. Nesse sentido o magistério de Bandeira de Mello:
"É exatamente porque a norma legal só quer a solução ótima, perfeita, adequada às circunstâncias concretas, que, ante o caráter polifacético, multifário, dos fatos da vida, se vê compelida a outorgar ao administrador – que é quem se confronta com a realidade dos fatos segundo seu colorido próprio – certa margem de liberdade para que este, sopesando as circunstâncias, possa dar verdadeira satisfação à finalidade legal" [20].
Compartilha o mesmo entendimento Lustosa Júnior:
"a partir das considerações sobre o mérito, a que, sem dúvida alguma, merece maior relevância, dentre as novas idéias que arejam o tema da discricionariedade, é a conotação atribuída a essa voz. Eis: margem de liberdade conferida pelo administrador para que satisfaça, de forma ótima, ao interesse público. Essa exigência é lógica A vinculação dos atos administrativos representa, de certa forma, uma garantia para os administrados. Para que se justifique seu relaxamento, é necessário que os resultados obtidos não sejam menos que excelentes. De fato, esse é um dos fundamentos da discricionariedade. Deve ser exercitada nos momentos em que o administrador seja mais capacitado que o legislador para escolher o melhor caminho para alcançar a finalidade pública" [21].
Em síntese, os atos administrativos discricionários têm por objetivo atender de forma sublime o fim colimado na norma, e não meramente confiar ao administrador uma liberdade de atuação. O legislador, ao conferir a discricionariedade, percebeu que seria impossível prever antecipadamente o melhor critério a ser adotado diante de situações que comportam variantes; portanto, atribuiu à Administração Pública o poder-dever de averiguar qual seria a ação que atenderia da melhor forma o interesse público.
3.3.CONTROLE JUDICIAL DOS ATOS VINCULADOS
O controle dos atos administrativos, de uma forma geral, encontra fundamento no princípio da legalidade, explicitamente citado no art. 37, "caput", da Constituição Federal. Tal princípio surge com o Estado de Direito e é o alicerce do regime jurídico-administrativo, em que qualquer atuação estatal somente será possível caso exista uma determinação legal precedente.
Nesse sentido, diz-se que a Administração Pública só pode fazer aquilo que a lei permite, diversamente do que ocorre na legalidade conferida aos particulares, em que é possível fazer tudo que a lei não veda (art. 5º, II, CF). Nessa linha, qualquer desconformidade existente entre um ato administrativo e a legislação dará ensejo à sua invalidação pela própria Administração ou sua revisão pelo Poder Judiciário.
Gasparini conceitua esse controle jurisdicional como "o controle de legalidade das atividades e dos atos administrativos do Executivo, do legislativo e do Judiciário por órgão dotado do poder de solucionar, em caráter definitivo, os conflitos de direito que lhe são submetidos" [22].
Há que se destacar, primeiramente, com fundamento no princípio da inércia, que a atuação do poder judiciário somente se justificará mediante provocação do interessado. Segundo, que a própria Constituição da República prevê, em seu art. 5º, a inafastabilidade do controle jurisdicional, tema que será oportunamente abordado.
O controle judicial dos atos administrativos vinculados é feito com base no mencionado princípio da legalidade, cumprindo ao órgão judicante invalidá-los sempre que em dissonância com o ordenamento jurídico pátrio. Visa o controle da atividade administrativa, seja típica ou atípica, mantendo o ato quando, apesar da divergência de entendimento, verifique-se legal ou anulando-o quando contrários ao Direito.
Frise-se que não se fala aqui em apreciação do mérito, haja vista a inexistência de valoração de conveniência e oportunidade nos atos vinculados. O controle impõe-se tão-somente, por suas próprias características, à análise da legalidade, em qualquer dos elementos.
3.4.A AMPLIAÇÃO DO CONCEITO DE LEGALIDADE: A FORÇA NORMATIVA DOS PRINCÍPIOS
Já o controle jurisdicional da atividade administrativa discricionária encontra considerável divergência na doutrina pátria, lastreada primordialmente na separação dos poderes estatais. Não se questiona, entretanto, a anulação destes atos quando eivados de ilegalidade. Por outro lado, não se vislumbra a possibilidade de o Judiciário adentrar à análise do mérito administrativo, reduto do juízo de conveniência e oportunidade da Administração.
Acontece que a cada dia vem ganhando força a corrente doutrinária que admite essa modalidade de controle, inclusive adentrando à análise do mérito. Não obstante, verifica-se a ampliação dos critérios de aferição da legalidade. Seu conceito não se restringe mais aos textos positivos, tendo se desenvolvido e ampliado, de forma a incluir os princípios gerais do direito, notadamente os administrativos.
Inegável também que o advento do neoconstitucionalismo trouxe consigo um novo marco filosófico para o direito constitucional: o pós-positivismo, que ultrapassa a teoria da legalidade estrita, conjugando-a com a atribuição de normatividade aos princípios, acarretando no surgimento de uma inovadora hermenêutica constitucional. Humberto Ávila (2004:70), com propriedade, conceitua:
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção.
São os princípios normas gerais e abstratas, por vezes não expressamente previstos, que servem de base para o ordenamento jurídico como um todo. São os valores fundamentais de uma sociedade, que embasam a elaboração e aplicação de outras normas, princípios e regras, principalmente estas últimas. Dirley da Cunha enumera as características dos princípios jurídicos:
"são normas jurídicas e, portanto, são cogentes, obrigatórios, dotados de eficácia jurídica vinculante e integram o ordenamento jurídico; são o alicerce do sistema jurídico e, por conta disso, servem de critério para sua exata compreensão e inteligência, dando-lhe coerência geral; determinam o conteúdo das regras jurídicas e dos demais atos do poder público; condicionam a interpretação e a eficácia das regras; e tem uma tríplice função, a saber, de ser fundamento da ordem jurídica, com eficácia derrogatória e diretiva; de orientar o trabalho interpretativo e, finalmente, de ser fonte supletiva em relação às demais fontes do direito" [23].
Diante de tais qualidades, vem a calhar a lição de Barroso, pela qual os "princípios não são, como as regras, comandos imediatamente descritivos de condutas específicas, mas sim normas que consagram determinados valores ou indicam fins públicos a serem realizados por diferentes meios" [24].
Nesse passo, ganha corpo a idéia de juridicidade administrativa, que supera o conceito vetusto de legalidade – direito por regras –, englobando-o. Dessa forma, determina que a atuação administrativa seja pautada não apenas na lei, mas no ordenamento jurídico como um todo, o qual é composto por princípios e regras. É uma substituição da concepção inicial de legalidade, que visa aperfeiçoar a atividade administrativa e adequá-la ao novo modelo de constitucionalismo – pós-positivista –, tendo os princípios sempre como fundamento, independentemente da legislação infraconstitucional. Inolvidável a lição de Binenbojm (2007:32):
A idéia de juridicidade administrativa, elaborada a partir da interpretação dos princípios e regras constitucionais, passa, destarte, a englobar o campo da legalidade administrativa, como um de seus princípios internos, mas não mais altaneiro e soberano como outrora. Isso significa que a atividade administrativa continua a realizar-se, via de regra, (i) segundo a lei, quando esta for constitucional (atividade secundum legem), (ii) mas pode encontrar fundamento direto na Constituição, independente ou para além da lei (atividade praeter legem), ou, eventualmente, (iii) legitimar-se perante o direito, ainda que contra a lei, porém com fulcro numa ponderação da legalidade com outros princípios constitucionais (atividade contra legem, mas com fundamento numa otimizada aplicação da Constituição).
Solidificou-se assim a teoria da supremacia da constituição. Seus princípios e regras têm natureza de normas jurídicas, que estabelecem um imperativo, uma obrigatoriedade de conduta, a ser observada tanto pelos particulares quanto pela Administração Pública.
Nesse prisma, todos os atos emanados pelo poder público deverão observar os princípios gerais do direito, de maneira especial aqueles que se referem ao direito administrativo, possuindo-os como base na interpretação das regras a serem aplicadas e em sua exteriorização, ou seja, na execução em si dos atos administrativos. O administrador deverá encontrar, numa análise macro do Direito, aquele ato que se mostre imprescindível para a consecução de um fim – necessariamente público.
Nesse sentido, inclusive, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça – STJ –, em sede de Recurso Especial nº 79.761-DF, do qual se colaciona trecho do voto do Ministro Relator Anselmo Santiago:
"O Administrador há de exercer o seu poder discricionário dentro dos estreitos limites da moralidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, sob pena de ofensa à lei e à Constituição, que não autorizam senão medidas onde o interesse público seja legítimo" [25].
Hodiernamente, é inquestionável a idéia de normatividade dos princípios, em que o ordenamento jurídico é regido tanto principiologicamente quanto por regras. Consolidou-se o princípio da juridicidade – também compreendido como legalidade em sentido amplo. Assim, a atuação Administrativa passou a seguir não só as leis, mas o Direito como um todo, e isso não só diante de uma ação vinculada, mas também quando se apresentar a discricionariedade.
Propaga-se, então, a doutrina do controle jurisdicional da discricionariedade administrativa, fundamentalmente apoiada na normatividade dos princípios. Germana de Moraes condensa muito bem essa questão:
"Urge abandonar a antiga concepção de discricionariedade, plasmada sob a égide do ‘direito por regras’, em função do princípio da legalidade administrativa, e redefini-la, de acordo com o s postulados do constitucionalismo da fase pós-positivista, a partir da nova noção do princípio da juridicidade e à luz da compreensão filosófica contemporânea do ‘direito por princípios’" [26].
Não há, portanto, como ainda defendem alguns, liberdade ampla para o administrador público agir quando estiver diante de uma situação que conceda uma margem de intelecção para se emanar o ato. Será necessária, ao revés, uma análise subjetiva apoiada nos princípios gerais do direito, a fim de se alcançar a melhor escolha – a de excelência –, que perfaz plenamente o interesse público.
Exsurge, destarte, o princípio da juridicidade como a principal forma de controle da discricionariedade, com a certeza de que todos os atos administrativos são vinculados, existindo apenas graus de vinculação, como aduz Binenbojm:
"A emergência da noção de juridicidade administrativa, com a vinculação direta da Administração à Constituição, não mais permite falar, tecnicamente, numa autêntica dicotomia entre atos vinculados e atos discricionários, mas, isto sim, em diferentes graus de vinculação dos atos administrativos à juridicidade. A discricionariedade não é, destarte, nem uma liberdade decisória externa ao direito, nem um campo imune ao controle jurisdicional. Ao maior ou menor grau de vinculação do administrador à juridicidade corresponderá, via de regra, maior ou menor grau de controlabilidade judicial dos seus atos" [27].
Enfim, a edição de atos administrativos contrários aos princípios gerais do direito ou aos específicos do direito administrativo, bem como quando eivados de ilegalidade em sentido estrito, reclama invalidação, que poderá ocorrer sob a chancela do poder-dever de autotutela ou sobre a ingerência do órgão judicial, ao qual incumbe, sobretudo, a defesa da Constituição. Para tanto, lhe foi conferida a legitimidade para exercer a fiscalização pela via difusa de constitucionalidade.
3.5.CONTROLE JUDICIAL DA DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA E O PRINCÍPIO DA INAFASTABILIDADE DO CONTROLE JURISDICIONAL
É o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional – albergado pela Carta Magna em seu art. 5º, XXXV – um dos principais argumentos para justificar o controle da discricionariedade administrativa, eis que "a lei não excluirá do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito".
Sendo assim, sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a direito (individual ou coletivo), será possível recorrer ao Poder Judiciário a fim de que intervenha, exercendo sua função constitucionalmente estabelecida, para aplicar o direito ao caso posto. Dirley da Cunha destaca que por intermédio deste princípio consagra-se também a garantia do acesso à justiça, manifestando-se "pela inafastável prerrogativa de provocar o Poder Judiciário para a defesa de um direito" [28].
Sob outro ângulo, o princípio do acesso à justiça proibiu a edição de qualquer lei ou ato que tenda a limitar o acesso no Judiciário, por flagrantemente violar as diretrizes constitucionais. Nesse sentido, questiona-se: se não é dado à lei ou ato criar limites à tutela jurisdicional, como seria possível persistir o entendimento de que a discricionariedade administrativa, notadamente o mérito, está livre de controle judicial?
O princípio da inafastabilidade da jurisdição, analisado conjuntamente com o princípio do acesso à justiça, traz como conseqüência a imperiosidade de uma tutela judicial que satisfaça plenamente aos anseios do jurisdicionado, pautado sempre em critérios de justiça, bem como zelando pelos objetivos do ordenamento jurídico, o que vem a consagrar o direito de ação, pelo qual todos têm direito à prestação de uma tutela jurisdicional suficiente e adequada.
O princípio da inafastabilidade da jurisdição, analisado conjuntamente com o princípio do acesso à justiça, traz como conseqüência a imperiosidade de uma tutela judicial que satisfaça plenamente aos anseios do jurisdicionado, pautado sempre em critérios de justiça, bem como zelando pelos objetivos do ordenamento jurídico, o que vem a consagrar o direito de ação. Na lição de Nery Júnior:
"Pelo princípio constitucional do direito de ação, todos têm o direito de obter do Poder Judiciário a tutela jurisdicional adequada. Não é suficiente o direito à tutela jurisdicional. É preciso que essa tutela seja a adequada, sem o que estaria vazio de sentido o princípio" [29].
Para contrabalancear a inafastabilidade da tutela jurisdicional, o princípio da separação de poderes aparece como o principal fundamento dos que não admitem o controle sobre a discricionariedade administrativa. Afirma-se que não poderia o Poder Judiciário adentrar aos redutos pertencentes ao Poder Executivo. Haveria ofensa ao Princípio Republicano, uma vez que o primeiro estaria se imiscuindo nas funções do segundo, quebrando um equilíbrio constitucionalmente firmado.
Todavia, se é evidente a necessidade de respeito aos Princípios Republicano e da Separação de Poderes, deve ser seguido também os Princípios da Legalidade e da Inafastabilidade do Controle Jurisdicional. O que não se afigura possível é que um deixe de ser observado em detrimento total de outro.
Nessa esteira, não é possível simplesmente sustentar a impossibilidade de controle dos atos discricionários. Negar ao órgão jurisdicional o controle seria admitir a existência de um poder absoluto, impassível de ter os limites de sua atuação aferidos por outro Poder, este devidamente legitimado a tanto pela própria Carta Magna.
Afirmar que o Poder Judiciário não pode realizar esse tipo de controle não condiz com o princípio da inafastabilidade da jurisdição, bem como contraria a ordem constitucional vigente, notadamente o princípio republicano, também utilizado pela doutrina vetusta como caracterizador da impossibilidade de controle. Nas palavras de Elias:
"O controle, atividade legítima e constitucionalmente assegurada, é inerente ao princípio republicano, onde o interesse a atingir deve ser público. Insurgindo-se o povo – através de ações populares, ações civis públicas, mandados de segurança etc. – contra um ato administrativo, seja ele discricionário, seja ele vinculado, não há que se isentar o Poder Judiciário de analisar todos os aspectos do ato para, fundamentalmente, comprovar que teve razão e justiça, ou não, a Administração quando o emanou" [30].
O interesse a ser atingido por um ato administrativo, qualquer que seja, é e deverá sempre ser público. Nesse diapasão, não se pode admitir que o controle jurisdicional seja de tal forma limitado, a pretexto de ferir o princípio da separação de poderes. Como anteriormente destacado, o Poder é uno, sendo a separação mera forma de alcançar os objetivos do Estado, uma divisão de funções. Verificada violação a direito por ato discricionário, deverá o caso ser levado ao conhecimento do Judiciário, órgão legitimado pela CF/88 para aferir, de forma difusa ou concentrada, a legalidade da discrição.
Não são os princípios republicano e da separação de poderes justificativas para limitar a atuação judicial. Pelo contrário, com o advento do neoconstitucionalismo eles figuram inclusive como fundamento desta. Ambos trazem a idéia da divisão das funções do Estado em seguimentos distintos, com atribuições setorizadas. Ao mesmo tempo, cada um desses, de modo paralelo, será responsável por controlar a atividade dos demais, seguindo a harmonia constante no art. 2º da CF/88.
Os poderes não devem simplesmente coexistir. Eles são a estrutura de um Estado Democrático de Direito, que por essência reza pelo respeito ao ordenamento jurídico e ao bem-estar popular, traduzido no interesse público.
Por ser responsável pela sustentação da justiça, o Poder Judiciário deverá exercer sua legitimação quando instado a tanto. Deverá proceder a análise dos atos administrativos sempre que ofendam um direito, independentemente de haver discricionariedade em seu conteúdo. Apenas não se pode admitir que a valoração do Administrador não atenda plenamente o interesse público ou que seja, por exemplo, irrazoável.
Diante disso, o princípio da legalidade (num conceito redefinido e ampliado) serve de base para efetuar o controle judicial, justificando a busca pelo interesse público e o respeito aos princípios constitucionais que, para além de uma separação de poderes, almejam a busca pela justiça do "modus operandi" do Estado, cujo fim último é o interesse público.
3.6.A SINDICABILIDADE DO MÉRITO
Em um primeiro momento, o mérito administrativo era tido como a parte insindicável dos atos administrativos discricionários. Só seria cabível o exame quanto à legalidade estrita, vedada a análise do motivo e do objeto escolhidos pelo administrador. Não poderia o órgão jurisdicional verificar para além do texto positivado. Entendia-se que tais requisitos haviam sido entregues com exclusividade à Administração, que poderia agir da forma que lhe aprouvesse (em observância aos ditames legais).
Todavia, surge a teoria do desvio de poder, que possibilitou a análise da discricionariedade, admitindo sua invalidação quando não coadunasse com os fins legalmente estipulados. A orientação jurisprudencial segundo a qual seria impossível o Judiciário efetuar o controle do mérito administrativo excluía um leque de situações em este seria necessária.
A finalidade, um dos elementos do ato administrativo, possui um grau de vinculação inequívoco, haja vista que todo ato tem por fim o interesse público. Com efeito, contrariando o entendimento dominante, parcela da doutrina segue a linha de que esse seria o fim geral, mas que cada ato possui um fim específico, e nessa circunstância haveria discricionariedade. Nesse sentido, Bandeira de Mello aduz:
"Contrariando a opinião que prevalece pacificamente na jurisprudência e na doutrina brasileiras e majoritariamente fora do Brasil, entendemos, pelo contrário, que pode haver certa discricionariedade quanto ao fim. Embora seja indiscutível que o fim do ato administrativo deva ser sempre e necessariamente um interesse público, sob pena de invalidade, na maior parte das vezes a apreciação do que é interesse público depende, em certa medida, de uma apreciação subjetiva, isto é, de uma investigação insuscetível de se reduzir a uma objetividade absoluta (como, aliás, todos os elementos da norma), de tal modo que só pode ser perseguido o interesse público; porém, a qualificação do interesse público comporta certa margem, delimitada, é certo, de juízo discricionário" [31].
O exemplo clássico utilizado pela doutrina sobre a invalidação de ato administrativo discricionário por desvio de poder é o de transferência como forma de punição disciplinar. Como se sabe, as formas sanções disciplinares são advertência, suspensão ou demissão. Assim, desvia-se da finalidade legal a imposição de transferência, que seria possível tão-somente em caso de interesse público que exigisse a medida.
Além do controle da finalidade, alavancado pela teoria do desvio de poder, insurgiu-se como forma de controle da discrição a teoria dos motivos determinantes, pela qual, conforme já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
"A decisão administrativa deve ser motivada, ou seja, deve apresentar de forma explícita, clara e congruentemente as razões e fundamentos legais que a resultaram. Os motivos que determinaram a vontade do agente público, consubstanciados nos fatos que serviram de suporte à sua decisão, integram a validade do ato, eis que a ele se vinculam visceralmente. É o que reza a prestigiada teoria dos motivos determinantes" [32].
Cumpre destacar que a motivação é um dever imposto pela Lei do Processo Administrativo, nº 9.784/99, em seus artigos 2º e 50. Posto como princípio da Administração Pública, a motivação deve ser adequada, indicando precisamente quais os motivos que justificaram a adoção daquela medida. E, por certo, com fundamento nos princípios da legalidade e na inafastabilidade do controle jurisdicional, outorga-se ao Judiciário a análise tanto dos motivos quanto da adequada motivação.
As teorias do motivo determinante e do desvio de poder constituem, juntamente com o princípio da juridicidade, as principais justificativas para anulação de um ato administrativo em sede de controle jurisdicional. Por elas, após detectado um vício de discricionariedade, não há outra alternativa senão a invalidação do ato administrativo discricionário.
Ademais, não se pode olvidar a teoria da redução da discricionariedade a zero, uma vez presente a necessidade de se aplicar a solução de excelência. Os atos discricionários objetivam atender de forma sublime o fim colimado na norma, e não meramente confiar ao administrador uma liberdade de atuação. A atribuição de discricionariedade à Administração Pública justifica-se tão-somente no dever de averiguar qual a ação que atende da melhor forma o interesse público, uma vez que seria impossível para o legislador prever antecipadamente, diante das variantes do caso concreto, a melhor alternativa. Sobreleva destacar mais uma passagem da obra Bandeira de Mello:
"a lei só quer aquele específico ato que venha a calhar à fiveleta para o atendimento do interesse público. Tanto faz que se trate de vinculação, quanto de discrição. O comando da norma sempre propõe isto. Se o comando da norma sempre propõe isto e se uma norma é uma imposição, o administrador está, então, nos casos de discricionariedade, perante o dever jurídico de praticar, não qualquer ato dentre os comportamentos pela regra, mas, única e exclusivamente aquele que atenda com absoluta perfeição à finalidade da lei" [33].
Neste caso não se trata propriamente de vícios, mas da escolha que contempla da plenamente o interesse da coletividade. É uma teoria que vêm ganhando força no que tange à controlabilidade do mérito administrativo, impondo ao administrador público o dever de diligência na escolha de seus atos, sob pena de vê-lo invalidado.
Portanto, caso sejam encontrados vícios na discricionariedade, faz-se mister a anulação do ato. Entretanto, essa já não é a grande discussão presente na doutrina e jurisprudência. Extremamente controvertida é a possibilidade de substituição da decisão que continha vício de discricionariedade ou cujas circunstâncias levaram à redução da discricionariedade a zero por outra juridicamente possível.
Historicamente defendeu-se a impossibilidade de o Poder Judiciário adentrar à análise do mérito, uma vez que este compreendia o âmbito de conveniência e oportunidade do Poder Público. Contudo, há que se ter em mente que a atuação do gestor público deve visar sempre o interesse público, e quando isso não ocorrer competirá, mediante provocação, ao órgão jurisdicional determinar seu cumprimento. Sobre a redução da discricionariedade a zero, Germana de Moraes apresenta o seguinte posicionamento:
"Em suma, o controle jurisdicional do exercício da discricionariedade de efeitos, seja de decisão – entre agir ou não agir, seja de escolha – entre mais de uma conduta, dentre uma série limitada pré-fixada na norma (discricionariedade optativa) ou dentre uma série ilimitada não pré-fixada normativamente, porém aceita pelo Direito (discricionariedade criativa), será possível ao Juiz determinar a substituição do ato administrativo anulado por outro nas situações em que há ‘redução da discricionariedade a zero’ [...]" [34].
A determinação judicial para cumprimento de uma obrigação, neste caso, será justificada pela inexistência de outra medida que se mostre possível para aquela situação. É a alternativa necessária para a satisfação do interesse público. Ademais, há que se ter em mente que, em grande parte das situações, é possível averiguar ao menos a indispensabilidade de implementação de alguma medida. Em outras palavras, em que pese a impossibilidade de averiguar como a Administração Pública atuará, será possível detectar que tal atuação é necessária. Assim, restará reduzida a zero a discricionariedade quanto ao agir ou não agir, subsistindo a discricionariedade de escolha, de como realizar.
Todavia, é certo que tais determinações requerem, em alguma medida, um bom senso por parte do julgador, haja vista a necessidade de observância à Lei de Responsabilidade Fiscal. Com efeito, o Estado tem de cumprir as finalidades constitucionalmente estabelecidas. Não será possível escusar-se de efetivar obrigações constitucionais que exigem uma prestação positiva sob o fundamento de contingência de recursos. Assim se mostra o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
"Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder público, em tal hipótese – mediante indevida manipulação de sua atividade financeira e/ou político-administrativa – criar obstáculo artificial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência. Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ – ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade" [35].
Enfim, ao Judiciário foi conferido o poder-dever de busca da justiça e proteção à Constituição Federal. Nesse sentido, é de sua competência analisar as ofensas aos direitos dos cidadãos, sejam individuais ou coletivos, inclusive quando o ato ensejador da lesão for praticado pela Administração Pública – independentemente de ser vinculado ou discricionário, uma vez que a nenhum dos Poderes é dado escusar-se do cumprimento dos preceitos constitucionais, implícitos ou explícitos. Impossível, portanto, a não satisfação dos fundamentos e objetivos constitucionais sob a alegação de estar atuando chancelado pelo Poder Discricionário.