3. O veto ao artigo quarto
O Projeto de Lei 3.653/1997 foi sancionado pelo Presidente da República com veto parcial, atingindo o artigo 4º, que afirmava que as atividades de perícia oficial de natureza criminal são consideradas como exclusivas de Estado.
Nas razões do veto argumentou-se que sendo as atividades periciais consideradas exclusivas de Estado, poder-se-ia afirmar que os §§ 1º e 2º do artigo 159 do Código de Processo Penal estariam derrogados.
Reza os supracitados dispositivos:
Art. 159. O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 1º Na falta de perito oficial, o exame será realizado por 2 (duas) pessoas idôneas, portadoras de diploma de curso superior preferencialmente na área específica, dentre as que tiverem habilitação técnica relacionada com a natureza do exame. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
§ 2º Os peritos não oficiais prestarão o compromisso de bem e fielmente desempenhar o encargo. (Redação dada pela Lei nº 11.690, de 2008)
O veto presidencial ao artigo 4º da Lei n.º 12.030/2009 não teve o condão de impedir a revogação tácita dos §§ 1º e 2º do artigo 159 do Código de Processo Penal, pelas razões a seguir expostas.
A Lei n.º 12.303/2009 define que somente pode realizar atividade de perícia oficial de natureza criminal aquela pessoa que logrou aprovação e nomeação em concurso público, não sendo expressa qualquer ressalva a respeito.
O artigo 2º apresenta a locução verbal "é assegurado" e o verbo "exigido". Na locução verbal, o sujeito encontra-se oculto, ou seja, é a lei que assegura, e a oração foi escrita na forma indireta. Escrito na forma direta o caput apresenta a redação: a lei assegurará autonomia técnica, científica e funcional, no exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal, exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial.
Pois bem, o verbo assegurar pode ser bitransitivo ou transitivo direto. O objeto direto é "autonomia técnica, científica e funcional", que representa aquilo que a lei assegura. O restante do caput define a quem se assegura a autonomia técnica, científica e funcional, representando o objeto indireto. A lei assegura a autonomia técnica, científica e funcional aos peritos oficiais de natureza criminal, no exercício de suas atividades.
A condição para que a autonomia técnica, científica e funcional esteja assegurada pela lei é que ocorra no exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal. Desta forma, as três modalidades de autonomia estão asseguradas apenas no caso de atividade de perícia oficial, não englobando os peritos não-oficiais nem os assistentes técnicos; e de natureza criminal, afastando os peritos oficiais que atuam na área cível.
Por fim, explicitando o conteúdo do termo de atividade de perícia oficial de natureza criminal, "exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial". Nesta oração a norma exige que o perito oficial de natureza criminal tenha realizado concurso público, excluindo assim os peritos ad hoc do conceito de perito oficial e mais, que este concurso público, para o provimento do cargo de perito oficial exija formação acadêmica específica, excluindo da categoria de perito oficial qualquer profissional que realizou concurso público onde fosse exigida apenas a graduação em qualquer área do conhecimento.
Em síntese, não se assegura autonomia técnica, científica e funcional:
- Nas atividades desenvolvidas pelo perito criminal, em papel social diverso do papel social de perito oficial de natureza criminal.
- Nas atividades de perícia oficial de natureza cível.
- No caso de exames periciais realizados por profissional que não prestou concurso público, como no caso dos assistentes técnicos e dos peritos ad hoc.
- No caso de exames periciais realizados por peritos que prestaram concurso público, contudo onde não se exigia formação específica.
Concluí-se que o artigo 2º, além de assegurar a autonomia técnica, científica e funcional, definiu os requisitos para identificar o perito oficial.
A seguir deve-se realizar a interpretação teleológica da Lei n.º 12.030/2009, iniciando pelo estudo do processo legislativo. Percebe-se que na Câmara dos Deputados, em função de um voto em separado do Deputado Marcelo Itagibe, o relator da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, Deputado Laerte Bessa, apresentou um 2º Substitutivo ao Projeto de Lei n.º 3.653/1997, publicado no Diário da Câmara em 07/08/2008, onde se acrescentava o § 2º ao então artigo 2º, com a seguinte redação.
§ 2º Fica ressalvada da exigência do concurso público previsto no caput deste artigo a designação de perito ad hoc, na forma dos §§ 1º e 2º do art. 159 do Código de Processo Penal [26].
Então, foi inserida, naquele momento do processo legislativo, uma ressalva à exigência de concurso público, na hipótese de designação de perito pela autoridade judicial, o denominado perito ad hoc. Entretanto, quando a matéria foi submetida ao plenário da Câmara dos Deputados, este parágrafo foi suprimido, concluindo os legisladores que não cabia qualquer ressalva à exigência de concurso público no desempenho de atividades de perícia oficial de natureza criminal.
A análise histórica do processo legislativo auxilia no entendimento de que a Lei n.º 12.030/2009 tem a finalidade de assegurar a imparcialidade dos peritos oficiais de natureza criminal, conferindo autonomias que não poderão ser ampliadas, por imposição legal, aos denominados peritos ad hoc.
Assim, tanto a interpretação gramatical do artigo 2º como a interpretação teleológica do texto legal conduzem à conclusão de que houve a extinção da figura do perito ad hoc. Caso vingue o entendimento de que estes profissionais ainda existem, força é concluir que a eles não há que se falar em autonomia técnica, científica ou funcional, o que, por si só representa uma incoerência com o próprio sentido da norma, assecuratória de garantias a quem realiza as atividades de periciais criminais, que se exige deste profissional.
4. Conclusão
A promulgação da Lei n.º 12.030/2009, após doze anos no Congresso Nacional, representa a positivação de garantias aos peritos oficiais de natureza criminal, para que os trabalhos periciais possam se realizar com isenção e imparcialidade, qualidades imprescindíveis para a prova pericial, ainda mais quando produzidas em fase pré-processual, sob a égide do contraditório diferido.
A Lei n.º 12.030/2009 assegurou autonomia funcional, técnica e científica aos peritos oficiais de natureza criminal.
A autonomia pode ser vista em sua dimensão horizontal e em sua dimensão vertical. No plano horizontal, a Lei n.º 12.030/2009 assegurou três formas de autonomia aos peritos oficiais de natureza criminal, a autonomia funcional, técnica e científica. No plano vertical, a definição da profundidade da autonomia somente será obtida através da análise do caso concreto, sopesando a profundidade pretendida com os princípios constitucionais que regem a Administração Pública.
A autonomia funcional da instituição pode ser conceituada como uma faculdade atribuída a esta instituição de livremente traçar suas normas de conduta, limitada apenas pelas regras legalmente impostas, na definição do seu papel social.
A autonomia funcional não se confunde com a independência funcional, mais ampla e nem com a autonomia administrativa, que se refere à possibilidade de praticar atos de gestão.
Apesar de a autonomia funcional ser concedida, normalmente, ao órgão, a Lei n.º 12.030/2009 atribuiu esta autonomia ao perito oficial de natureza criminal, cabendo a interpretação do alcance desta autonomia no sentido de proporcionar, nas atividades de natureza pericial, ausência de ingerências, seja de órgãos estranho à instituição como de órgãos e ocupantes de cargos presentes na instituição a que o órgão pericial encontra-se inserido. Trata-se de uma vinculação parcial, somente para a atividade fim pericial.
A autonomia funcional do indivíduo é o direito de tomar decisões livremente, atendo-se apenas aos seus preceitos éticos, morais e intelectuais, sempre lembrando da limitação de fundo, de seguir seu papel social.
A ausência de norma expressa assegurando a autonomia funcional ao perito oficial de natureza criminal fez com que diversos órgãos periciais estaduais se desvinculassem da polícia judiciária, formando institutos próprios.
No âmbito federal, o órgão pericial criminal encontra-se contido no organograma do Departamento de Polícia Federal e não se desvinculou da polícia judiciária da União, principalmente pela menor ingerência observada em suas atividades.
Acredita-se que a implantação e correta interpretação da autonomia funcional prevista na Lei n.º 12.030/2009 freará a onda de desvinculações dos órgãos periciais das polícias judiciárias.
A autonomia técnica refere-se à possibilidade da instituição ou do indivíduo determinar-se quanto às atividades técnicas desenvolvidas e a autonomia científica refere-se ao processo de pesquisa.
A interpretação gramatical do artigo 2º da Lei n.º 12.030/2009 revela que esta norma não se aplica:
- Nas atividades desenvolvidas pelo perito criminal, em papel social diverso do papel social de perito oficial de natureza criminal.
- Nas atividades de perícia oficial de natureza cível.
- No caso de exames periciais realizados por profissional que não prestou concurso público, como no caso dos assistentes técnicos e dos peritos ad hoc.
- No caso de exames periciais realizados por peritos que prestaram concurso público, contudo onde não se exigia formação específica.
Apesar do veto presidencial ao artigo 4º da Lei n.º 12.030/2009, restaram revogados tacitamente os §§ 1º e 2º do artigo 159 do Código de Processo Penal, extinguindo a figura do perito ad hoc, a partir da interpretação gramatical do artigo 2º da Lei n.º 12.030/2009 e da interpretação teleológica da referida norma, ambas convergindo para a mesma conclusão.
Caso, a partir entendimento diverso do apresentado neste trabalho, entenda-se que persiste a figura do perito ad hoc, força é concluir que a eles não há que se falar em autonomia técnica, científica ou funcional, o que, por si só representa uma incoerência com o próprio sentido da norma, de assegurar as garantias indispensáveis a quem realiza as atividades de periciais criminais, que se exige deste profissional.
O conjunto de autonomias afasta qualquer entendimento de subordinação dos peritos oficiais de natureza criminal a qualquer outro cargo existente na polícia judiciária.
Os exames periciais constituem meio para o livre convencimento motivado do juiz, da mesma forma que o inquérito policial constitui meio para o convencimento do membro do Ministério Público oferecer a denúncia.
Sem dúvida, trata-se de uma mudança de paradigmas, pois atualmente muito do que foi dito é decidido por ocupantes de cargos e órgãos diversos do pericial. Com a autonomia funcional, técnica e científica a atribuição é repassada para o perito oficial de natureza criminal e para o órgão central pericial.
Caberá a aplicação coerente das autonomias asseguradas por esta lei. Acredita-se que existirá resistência de alguns setores na implantação das medidas ora propostas; mas espera-se que, a partir do entendimento teleológico na norma, tais resistências se dissolvam, a partir dos benefícios que é ter uma perícia oficial isenta, imparcial e livre de pressões.
Esta lei representa um postulado fundamentado de realização, cabendo a todos, autoridade judicial, promotores, procuradores, delegados de polícia e principalmente os peritos oficiais de natureza criminal, que se torne um estado real de vigência.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de direito administrativo. 10 ed. rev. ampl. atual. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2003.
DI PIETRO. Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 20 ed. São Paulo: Atlas, 2007.
MAZZILLI, Hugo Nigro. Independência do Ministério Público. In: CAMARGO FERRAZ, Antônio Augusto de Mello de (coord.). Ministério Público: instituição e processo, São Paulo: Atlas, 1997.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 1990.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As funções essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, dez. 1991, p. 27.
RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 38-46.
SILVA. José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 15 ed. rev. São Paulo: Malheiros, 1998.
TEIXEIRA, Francisco Dias. Princípios constitucionais do Ministério Público. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 49, jul./ago. 2004, p. 291-315.
Notas
- Tanto o Ministério Público como a quem se imputa a autoria do fato delituoso.
- Diário da Câmara dos Deputados do dia 07 de outubro de 1997, p. 31352. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/dc_20.asp?selCodColecaoCsv=D&Datain=7/10/1997&txpagina=31352&altura=700&largura=800>. Acesso em: 25-09-2009.
- Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Msg/VEP-758-09.htm> Acesso em: 25-09-2009.
- Houaiss. Dicionário eletrônico. Verbete: autonomia. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=autonomia&stype=k > Acesso em: 25-09-2009.
- Houaiss. Dicionário eletrônico. Verbete: autonomia. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=autonomia&stype=k > Acesso em: 25-09-2009.
- Houaiss. Dicionário eletrônico. Verbete: função. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=fun%E7%E3o&stype=k> Acesso em: 25-09-2009.
- Houaiss. Dicionário eletrônico. Verbete: função. Disponível em: <http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=fun%E7%E3o&stype=k> Acesso em: 25-09-2009.
- Para uma análise da teoria dos papéis sociais, ver RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 38-46.
- Em sentido contrário, entendendo que autonomia funcional deve ser empregada somente para o órgão e independência funcional deve ser empregada para o indivíduo, ver TEIXEIRA, Francisco Dias. Princípios Constitucionais do Ministério Público. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 49, jul./ago. 2004, p. 291-315. Para uma diferenciação entre autonomia funcional e independência funcional veja item 3.2.
- O papel social do perito oficial de natureza criminal encontra-se delimitado nos instrumentos normativos que especificam as atribuições daqueles profissionais.
- Nas áreas do conhecimento que necessitam de curso próprio, o diploma em curso reconhecido é o requisito para considerar apto o profissional, como no caso da engenharia química, engenharia elétrica, contabilidade, economia, medicina veterinária. Nas áreas de conhecimento que não tem curso de graduação, supõe-se que o curso de formação pericial, realizado nas respectivas Academias, irá fornecer os conhecimentos específicos para a atuação, como no caso da documentoscopia, balística, merceologia e locais de crime.
- De acordo com as atribuições especificadas em diploma legal próprio.
- Como por exemplo, a coação para a realização do laudo pericial com conclusão adequada à autoridade.
- Os dezessete estados são Alagoas, Amapá, Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Sergipe e Tocantins.
- Este Projeto de Lei foi apensado ao Projeto de Lei n.º 244/2007 e convertido na Lei n.º 12.030/2009
- Artigo 127, § 2º, da CF/88 e artigo 3º, da Lei n.º 8.625/93. Da mesma forma a Defensoria Pública, conforme artigo 133, § 2º da CF/88 e artigo 3º, da Lei Complementar n.º 80, de 12/01/1994.
- Artigo 127, § 1º, da CF/88 e artigo 1º, parágrafo único da Lei n.º 8.625/93. Da mesma forma a Defensoria Pública, conforme artigo 43, inciso I, da Lei Complementar n.º 80, de 12/01/1994.
- MAZZILLI, Hugo Nigro. Independência do Ministério Público. In: CAMARGO FERRAZ, Antônio Augusto de Mello de (coord.). Ministério Público: instituição e processo, São Paulo: Atlas, 1997, p. 107.
- MAZZILLI, Hugo Nigro. Independência do Ministério Público. In: CAMARGO FERRAZ, Antônio Augusto de Mello de (coord.). Ministério Público: instituição e processo, São Paulo: Atlas, 1997, p. 107.
- TEIXEIRA, Francisco Dias. Princípios Constitucionais do Ministério Público. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 49, jul./ago. 2004, p. 291-315.
- MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. As Funções Essenciais à Justiça e as Procuraturas Constitucionais. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, dez. 1991, p. 27.
- TEIXEIRA, Francisco Dias. Princípios Constitucionais do Ministério Público. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 49, jul./ago. 2004, p. 291-315.
- Exemplos retirados de MAZZILLI, Hugo Nigro. Independência do Ministério Público. In: CAMARGO FERRAZ, Antônio Augusto de Mello de (coord.). Ministério Público: instituição e processo, São Paulo: Atlas, 1997, p. 105.
- Conforme reza o artigo 207 da CF/88: "As universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão".
- Disponível em: <http://www.conseg.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=1554:1o-conseg-define-qprincipiosq-e-qdiretrizesq-para-seguranca-publica&catid=49:noticias-gerais&Itemid=226> Acesso em: 08-10-2009.
- Trecho do 2º Substitutivo do Deputado Federal Laerte Bessa. Diário da Câmara dos Deputados do dia 07 de agosto de 2008, p. 35931. Disponível em: < http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/DCD07AGO2008.pdf#page=387>. Acesso em: 25-09-2009.