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Luz, câmera e ação: nulidade contratual no filme "O último tango em Paris"

12/11/2009 às 00:00
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Un, deux, trois... Voilá le pas-de-deux... [01] Tal como no bailar de um tango, esboça-se sobre o salão, sobre essa folha de papel em branco, as cláusulas de um contrato. As partes bailarinas olham-se fixamente, aproximam-se, asseguram-se de suas intenções, avançam-se, avençam-se. Tudo começa com um abraço. L´embrace [02]. As cláusulas-passos vão sendo marcadas, trançadas. Em alguns momentos fazem-se ganchos, em outros, desenham-se "ochos". No correr da ronda [03], tomam velocidade, aceleram e deslizam: as cláusulas convencionadas fazem-se milongas [04]. Em vários momentos, impõe-se o olho no olho, em outros, olhos paralelos que se lançam ao infinito, ao objetivo comum, nos demais, olhares contrários, dialéticos, mas convergentes. Um par de bailarinos de tango são um só corpo (o contrato) e quatro pernas que se movem (as vontades das partes). Muitos de seus rituais resultam de condutas codificadas e de relacionamento social. O tango continua... É um bailar austero, introspectivo, denso, exato. No contrato não cabe o coxeado, o ambíguo, o bisonho. Depois as partes enternecem-se, asseguram-se, seguram-se. Tecem-se as cruzadas [05]. Marcam-se os pés juntos. Assina-se o contrato.

No entanto, por vezes, as partes se chocam, se enganam, se confundem, tropeçam-se, não se apóiam e caem. Ocorrem os defeitos, os vícios do tango, do contrato. Ou quanto à coreografia, a forma, ou quanto à música, a matéria. Ou ainda pior, quanto às partes bailarinas. Se o vício ocorreu durante o ensaio, o esboço, elabora-se uma outra coreografia, muda-se a música, troca-se o par. Mas se a coreografia já foi firmada e seus efeitos já são surtidos, clama-se pela sua anulação relativa ou absoluta. Relativa, se em decorrência de vícios, tais como erro, dolo, lesão, estado de perigo, fraude ou coação. Absoluta, se resultante de sua invalidade, de sua carência de pressupostos, quer seja quanto à capacidade das partes, ao objeto lícito e possível, quanto à sua forma prevista ou não defesa em lei, ou por previsão legal. Se o tango não foi um tango, mas uma simulação, a nulidade será absoluta. Em todos os casos de nulidade, uma interseção: este terá sido o último tango bailado. A menos que as partes que bailam com vícios passíveis de anulação, decidam prosseguir inobstante os defeitos, os tropeções, o som de acordes que, porventura truncados, prejudicaram o ritmo, mas não os destituiu de emoção. D´accord [06]. Passa-se o tempo e o contrato, travestido em tango, é convalidado. A nulidade relativa é prescritível. O mesmo não se pode dizer da nulidade absoluta, o tempo não a convalesce. A qualquer momento, uma vez declarada tal nulidade, o tango terá sido menos que uma miragem imaginada. E é com luzes e câmeras sobre uma obra-prima do cinema europeu que traz o tango como leit motif [07], que exemplificaremos um caso de nulidade contratual por vício da vontade de uma das partes.

O diretor de cinema italiano Bernardo Bertolucci, mesmo sem a intenção, ao escrever o seu filme O Último Tango em Paris de 1972, drama psico-erótico avant garde [08] que alcançou altas latitudes de polêmica ao ser lançado e proibido em vários países, narra um caso típico, mutatis mutandis, de nulidade contratual por erro essencial quanto à pessoa. O drama gira em torno do encontro inusitado entre uma pós-adolescente parisiense de 20 anos de idade, noiva de um jovem aspirante a cineasta e um americano viúvo de 45 anos cuja esposa acabara de se suicidar. Ambos flutuam por sobre os vácuos de suas vidas. A angústia dele é evidente, a dela, subliminar. Procuram um apartamento para alugar, ele, para refugiar-se em seu e de seu vazio de tudo, ela para morar com o seu noivo com quem está prestes a se casar, mas com quem está insatisfeita. Eles se cruzam nas cercanias do prédio, ele parece que não a vê, ela o nota e fica, visivelmente, intrigada. Ao adentrar o apartamento, ela, inesperadamente, lá o encontra, em um canto, soturno, encolhido. Iniciam-se as tratativas do contrato, ensaia-se o tango. Após breves diálogos entrecortados, ele, como no tango, fixa os olhos nela, aproxima-se, toma-a para si. Ato contínuo, abraçam-se, avençam-se. Dramaticamente, fazem amor... Ele se recusa a dizer seu nome, quem é, o que faz, como é a sua vida. Ela reluta, mas aceita, segue o pas-de-deux. Os passos da coreografia do casal marcam o contrato que se desenha. Olhos nos olhos, mergulham-se um no outro e nadam em suas infâncias, nos seus anseios, nos seus temores, nas suas energias vitais. Nele e com ele, naquele apartamento vazio com apenas alguns depauperados móveis, vazio como estão suas vidas, ela se sente protegida, aconchegada, cuidada. Nela e com ela, ele resgata a si mesmo, depura a sua dor, catalisa o seu desespero, reconhece-se no gozo sobre os escombros de si. Travam-se ganchos, "ochos," milongas, bailam-se cláusulas. A folha onde se inscreve o contrato é esse apartamento. Não se encontram fora dele. Um dia, ela chega e ele não mais está, nem mesmo a pouca mobília decadente. Ela despenca no desespero dos abandonados, de quem perdeu tudo, para quem não resta nada. Tenta reapoderar-se do que foi perdido, chamando o seu noivo ao apartamento e dizendo-lhe que é ali que quer com ele morar e ter filhos, esforça-se para reeditar o lúdico que experimentava com o seu amante. O noivo, a princípio, ensaia uns poucos passos, mas não se adequa ao contrato, ao tango. Abomina o apartamento, essa folha de papel triste. Diz que de nenhuma forma poderiam viver ali, não combina com eles. Chama-a para partirem. Ela está partida, continuará ali por alguns instantes. Despedem-se quase que formalmente, como estranhos, e ele retira-se como um expurgado. Ela sai fechando, desoladamente, uma a uma, as janelas, e devolve a chave do imóvel à concierge [09].

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Ao sair do prédio, o seu amante, que estava em tocaia, a segue e a alcança. Redivivo, diz que voltou à vida e que isso só foi possível porque foi pelas mãos dela. Revela-se, diz qual o seu nome, o que faz, os acontecimentos trágicos recentes. Ela, ainda sofrida a cause [10] do abandono, se decepciona: não era esse o homem com quem ela acreditara ter se envolvido, não foi essa a pessoa que ela construíra em sua mente e em suas fantasias, no silêncio por ele próprio imposto. Mas ele a quer, quer viver com ela. Ela o rejeita. Não, definitivamente, não era esse o homem para o qual ela se dara. Erro essencial quanto à pessoa. Ele insiste, suplica, persegue-a até uma casa de tango. Faz as vezes do galanteador. Tira-a para dançar. Ela desdenha, mas embarca no que sobra de sua fantasia. Bailam truncadamente, defeituosamente, viciosamente. Retiram-se e ele a acompanha malgré [11] ela o rechaçar. Correm pelas ruas de Paris freneticamente, ela o abomina, grita, reiteradamente, que vai chamar a polícia. Chegam ao prédio onde ela mora. Ela sobe pelo elevador, ele toma as escadas. Reencontram-se no rol de entrada do apartamento, quase lutam corporalmente contra a porta. Adentram-no. Ela dirige-se a uma estante, ele se aproxima, acaricia os seus cabelos e diz que a ama, que quer saber o seu nome. Ela, destituída de seu imaginário, diante dele, para ela um latrocida de ilusões, a corporificação de seu engano, de sua falta de perspectivas, de seu erro essencial, saca de um revólver e, ao mesmo tempo em que o responde, atira...

Resignado com o seu fim, já que a vida seria mais que morte sem ela, ele coreografa os seus últimos passos rumo à sacada, de onde lança o seu derradeiro olhar, olhar de pena de si mesmo por sobre o horizonte.

Ultima-se o tango. Anula-se o contrato. Erro substancial, erro de fato. Sentença constitutiva de nulidade. Efeito ex-nunc, eficácia inter pars: o contrato que, a partir de agora, não mais haverá para as partes, não deixa de ter havido. Nulle chose [12].

Ainda ao lado da estante, alheia ao corpo do amante esvaído na sacada em posição fetal, ela agarra-se à arma do crime e indaga-se sobre o que dirá à polícia.: " ... ele me perseguiu na rua, ele tentou me atacar... não, eu não sei quem é ele, sequer o seu nome, nunca o vi, ele tentou me atacar, não, eu não sei quem é ele..." Esforça-se, alucinadamente, por impingir nulidade absoluta ao contrato: impingir-lhe efeito ex-tunc, efeito ex-tango.

Inútil.

Dentro daquele apartamento, ali, onde, um dia, ele e ela, juntos, formaram um só corpo, con(traídos) em tango, sempre poderão ser vistos, em réstias de luz, fragmentos do encontro bailado. Os efeitos de seu prazer e de sua dor vão lá permanecer. Permanecer a despeito dele, a despeito dela, a despeito de tudo, para além das vontades, para depois dos sentidos.


Notas

  1. Um, dois, três...Vejam o passo a dois.
  2. O abraço.
  3. Grupo de casais que dançam o tango em um salão no sentido horário.
  4. Ganchos, "ochos" e milongas são passos do tango
  5. Passo do tango.
  6. De acordo.
  7. Mote.
  8. À frente de seu tempo.
  9. Zeladora.
  10. Por causa.
  11. Apesar de.
  12. Coisa alguma.
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Sobre a autora
Andrea Almeida Campos

Professora de Direito da Universidade Católica de Pernambuco. Doutoranda. Advogada.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAMPOS, Andrea Almeida. Luz, câmera e ação: nulidade contratual no filme "O último tango em Paris". Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2325, 12 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13835. Acesso em: 26 abr. 2024.

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