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Júri: da possibilidade de julgamento de réu ausente e o confronto com os processos anteriores à Lei nº 9.271/96

21/11/2009 às 00:00

Resumo:


  • A reforma operada pela Lei nº 11.689/08 permitiu o julgamento pelo Tribunal do Júri de réus ausentes, mesmo em casos de não localização do acusado.

  • Antes da reforma, nos crimes inafiançáveis, o Júri não poderia realizar-se sem a presença do acusado, gerando uma "crise de instância" se o réu não fosse encontrado.

  • A aplicação do parágrafo único do art. 420 do CPP a processos iniciados antes da Lei nº 9.271/96 deve respeitar a efetiva ciência da acusação ao réu, em conformidade com os princípios constitucionais de contraditório e ampla defesa.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

A nova lei permite julgamento pelo Tribunal do Júri de réu ausente, seja em virtude de vontade própria do acusado, seja por não ter sido encontrado. O texto trata da segunda hipótese.

1.

A maior novidade da reforma operada pela Lei nº 11.689/08 foi, sem dúvida, a que permite o julgamento pelo Tribunal do Júri de réu ausente [01], seja em virtude de vontade própria do acusado (art. 457, caput, e seu § 2º, do CPP), seja por não ter sido encontrado (parágrafo único do art. 420 do CPP). No presente texto, interessa-nos tão-somente a segunda hipótese.

É preciso que se diga, a título de introdução, que antes da reforma mencionada, nos crimes inafiançáveis, em hipótese alguma o Júri poderia realizar-se sem a presença do acusado (art. 414 do CPP [02]), surgindo a denominada crise de instância caso este não fosse encontrado (art. 413, caput, do CPP [03]).

Com o presente texto objetivamos conferir solução interpretativa ao seguinte questionamento: o parágrafo único do art. 420 pode ser aplicado aos processos iniciados antes da Lei nº 9.271/96? A resposta que nos parece mais adequada é a que inicia o tópico seguinte.


2. Da não-incidência do art. 420, parágrafo único, aos réus citados por edital em processos iniciados anteriormente à Lei nº 9.271/96

2.1. Das normas superiores aplicáveis na espécie e seus consectários

O desenvolvimento do processo até a decisão de pronúncia sem a ciência efetiva do réu era permitido pelo nosso Código de Processo Penal, em sua redação original. Como se sabe, a redação original do Código de Processo Penal, de clara inspiração no modelo fascista do Estatuto Processual Italiano de então, não primava pelo respeito às garantias fundamentais do acusado, violando-as a todo momento.

Com todo efeito, antes do advento da Lei nº 9.271/96 (que deu nova redação ao art. 366), era muito comum réus serem condenados sem sequer haverem tido conhecimento de que contra eles pesava uma imputação criminal, violando os princípios do contraditório e da ampla defesa. Sem qualquer sombra de dúvida, o regramento processual penal do Brasil anterior a esta lei feria de morte nossa Constituição Federal de 1988. Portanto, chega-se à conclusão de que a Lei nº 9.271/96 apenas normatizou questão constitucional que já deveria ter sido aplicada desde 05 de outubro de 1988, independentemente de existência de lei específica sobre o tema. Inconcebível, num Estado Democrático e de Direito, alguém ser condenado ignorando estar sendo acusado.

Os direitos fundamentais, segundo a síntese de FREDIE DIDIER JR. (Curso de Direito Processual Civil, vol. 1, JusPodivm, 2007, 8ª ed., p. 26), têm dupla dimensão, que seriam:

"a) Subjetiva: de um lado, são direitos subjetivos, que atribuem posições jurídicas de vantagem a seus titulares; b) Objetiva: traduzem valores básicos e consagrados na ordem jurídica, que devem presidir a interpretação/aplicação de todo ordenamento jurídico" (grifei).

Desse modo, consoante a dimensão objetiva assinalada acima e de acordo com os critérios amplamente aceitos em doutrina e jurisprudência, os preceitos constitucionais, especialmente os que expressam direitos e garantias fundamentais – como o são o contraditório e a ampla defesa –, devem ser interpretados e aplicados segundo o princípio da "força normativa da Constituição".

Neste ponto, convém reproduzir, por extremamente oportuno, os ensinamentos de CANOTILHO. Em duas passagens que esclarecem a força normativa de incidência dos direitos e garantias fundamentais – que CANOTILHO prefere denominar "direitos, liberdades e garantias" – sobre todo o arcabouço normativo, o Mestre português acaba por confirmar o que já ficou delineado. Tais passagens, por sua clareza e força argumentativa, merecem transcrição literal.

Nesta primeira passagem, o autor fala sobre o que se denomina "constitucionalidade da jurisdição" (Direito Constitucional, Almedina, 1993, 6ª ed., pp. 587/8):

"Os tribunais estão sujeitos à lei, devendo, por isso, considerar a lei como a primeira mediação metódica do ‘justo’ constitucional. Todavia, se a lei surge como primeira ‘mediação’ da vinculação constitucional, nem sempre existe harmonia entre a constituição e a lei, pois esta pode estar em desconformidade com a primeira. Nestes casos, existe uma dupla vinculação (mas vinculação antinómica) para o juiz. Deve obediência à lei, mas, por outro lado, não pode aplicar ‘normas que infrinjam o disposto na constituição ou os princípios nela consignados’. Isto significa a prevalência da vinculação pela constituição (princípio da constitucionalidade) em desfavor da vinculação pela lei (princípio da legalidade). A constituição prevalece como norma superior, reconhecendo-se aos tribunais o direito de acesso directo à constituição [04]sobretudo às normas constitucionais consagradoras de direitos, liberdades e garantias".

Em outra passagem, CANOTILHO (Direito Constitucional, Almedina, 1993, 6ª ed., p. 186) explora a característica da aplicabilidade direta (imediata) dos direitos fundamentais sob um prisma pouco explorado na doutrina brasileira:

"Aplicabilidade directa significa, desde logo, nesta sede – direitos, liberdades e garantias – a rejeição da ‘ideia criacionista’ conducente ao desprezo dos direitos fundamentais enquanto não forem positivados a nível legal. Neste sentido, escreveu sugestivamente um autor (K. Krüger) que, na época actual, se assistia à deslocação da doutrina dos ‘direitos fundamentais dentro da reserva de lei’ para a doutrina da reserva de lei dentro dos direitos fundamentais [05].

"Aplicação directa não significa apenas que os direitos, liberdades e garantias se aplicam independentemente da intervenção legislativa. Significa também que eles valem directamente contra a lei [06], quando esta estabelece restrições em desconformidade com a constituição.

"Em termos práticos, a aplicação directa dos direitos fundamentais implica ainda a inconstitucionalidade de todas as leis pré-constitucionais contrárias às normas da constituição consagradoras e garantidoras de direitos, liberdades e garantias. Se se preferir, dir-se-á que a aplicação directa dos direitos, liberdades e garantias implica a inconstitucionalidade superveniente [07]das normas pré-constitucionais em contradição com eles." (grifei).

Esclarecedoras, sem dúvida, as passagens acima transcritas. Realmente, como a aplicabilidade direta (imediata) também significa que os direitos e garantias fundamentais valem "directamente contra a lei", e como há o "direito de acesso directo à constituição", com o advento da Constituição Republicana de 1988 grande parte do regramento imposto pela redação original do nosso Código de Processo Penal deveria ser desconsiderado, porquanto não primava pelo respeito ao contraditório e à ampla defesa.

E diga-se mais. Não se pode olvidar que no caso dos julgamentos perante o Tribunal do Júri a Constituição não se satisfaz com a ampla defesa. Estabelece-se mais: a plenitude de defesa.

Como corolário lógico da ampla/plenitude de defesa e do contraditório, é indispensável que ocorra a comunicação prévia e efetiva ao réu da acusação que pesa contra si. Aliás, a Convenção Americana de Direitos Humanos [08] – Pacto de San José da Costa Rica –, em seu art. 8º, 2, ‘b’, prevê, como garantia judicial, que toda pessoa acusada de delito tem direito à comunicação prévia e pormenorizada da acusação formulada. Ora, como será possível que o acusado tenha ciência pormenorizada da acusação que lhe pesa se não for pessoalmente comunicado? Simplesmente, não é compossível [09]. A citação por edital é citação ficta, não podendo se presumir que o acusado tenha ciência pormenorizada nessa situação.

Infere-se, assim, que a redação original do art. 366 do Código de Processo Penal – redação anterior à dada pela Lei nº 9.271/96 – era contrária à Constituição Republicana de 1988 e à Convenção Americana de Direitos Humanos, pois admitia o julgamento à revelia do réu citado por edital, o que pressupunha a ausência de ciência efetiva acerca da imputação e, por óbvio, inviabilizava o amplo e/ou pleno exercício do direito de defesa.

2.2. Segue: da necessidade de interpretação histórico-sistemática da Reforma Processual Penal

Ainda não saindo da linha dos argumentos expostos no item anterior, é também essencial entender que a Reforma Processual Penal advinda, entre outras, com a Lei nº 11.689/08, se implementada sem esforço interpretativo, virá a ocasionar uma situação jurídica mais gravosa e desrespeitadora à Constituição Federal que o próprio Código de Processo Penal em sua redação original.

Para demonstrar tal afirmação, utilizaremo-nos da interpretação histórica e sistemática, sempre fundamental para entender a teleologia normativa.

Como já se disse insistentemente, o Código de Processo Penal original permitia que o processo corresse até termos finais com a simples citação por edital do réu. Não se exigia, pois, a efetiva ciência da acusação.

Havia, entretanto, um forte mecanismo de equilíbrio ao contraditório e à ampla/plena defesa inserido no procedimento do Tribunal do Júri: o anterior art. 414 do Código de Processo Penal, que ordenava que a intimação da decisão de pronúncia deveria ser efetivada, sempre e sempre, pessoalmente ao acusado. Assim, admitia-se que a fase de judicium accusationis transcorresse à revelia do réu citado por edital, mas esse contraditório capenga era corrigido quanto aos crimes inafiançáveis, posto que não se admitia que o julgamento em plenário fosse realizado sem a efetiva ciência da decisão de pronúncia.

Portanto, mesmo para a Lei Adjetiva original de feições autoritárias não se admitia que a fase de judicium causae fosse inaugurada sem que o réu tivesse tomado ciência efetiva da acusação que lhe pesava. O art. 414 funcionava como um corretivo ao contraditório e à ampla defesa deficitárias do CPP original.

Todavia, com o advento da Lei nº 11.689/08, em pleno século XXI, com relação aos processos iniciados antes da Lei nº 9.271/96, se houver equívoco de interpretação, estaremos diante da possibilidade de que acusados citados por edital também venham a ser intimados da decisão de pronúncia por edital – por força do art. 420, parágrafo único, do Código de Processo Penal –, o que implica em reconhecer que tais acusados poderão ser condenados, em um Estado Democrático e de Direito, ignorando que estão sendo acusados.

Com o advento da Lei nº 11.689/08, a prevalecer a possibilidade de aplicação do novel art. 420, parágrafo único, do Código de Processo Penal, aos processos anteriores à Lei nº 9.271/96 e cujos réus foram citados por edital, instalar-se-ia regramento mais autoritário e desrespeitador às garantias inseridas na Constituição Republicana de 1988 e no Pacto de San José que o próprio Código de Processo Penal de 1941 em sua redação original.

A nosso aviso, a alteração promovida pelo parágrafo único do art. 420 do CPP, no sentido de se permitir a intimação por edital da sentença de pronúncia, foi extremamente salutar. No entanto, a sua aplicabilidade deve ser adequada aos ditames constitucionais, para possibilitar a sua incidência tão-somente aos processos cujos acusados tenham sido citados pessoalmente, isto é, desde que tenham tido ciência efetiva da acusação que lhes pesa, dando-se compostura aos preceitos radicados na Constituição Federal e no Pacto de San José.

Diversamente, nas hipóteses em que a fase de judicium accusationis transcorreu à revelia do acusado citado por edital – posto que era admitido pelo autoritário CPP –, a alteração promovida pela Lei nº 11.689/08, se interpretado com o devido rigor hermenêutico, não poderá ser aplicada, sob pena de criar um regramento jurídico que despojará diuturnamente, tal qual o furtador contumaz, os valores mais caros conquistados por um Estado Democrático e de Direito.

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Em síntese, pelo que ficou acima exposto, temos duas situações, tendo como marco divisor a Lei nº 9.271/96: (1) antes dessa lei, de acordo com o regramento original do CPP (insista-se, contrário à Constituição de 1988 e ao Pacto de San José), era permitido o desenvolvimento processual à revelia do acusado, porquanto era juridicamente irrelevante a sua citação pessoal, sendo possível chegar-se à fase de pronúncia sem a efetiva ciência da acusação. Contudo, o réu não poderia ser levado a julgamento perante o Tribunal do Júri por força do antigo art. 414, que funcionava como uma reparação à falta de contraditório e ampla/plena defesa; (2) após a lei, não mais se pode chegar à fase de pronúncia sem que haja a efetiva ciência do acusado, pois, caso seja citado por edital e não compareça, o processo terá o seu curso suspenso, consoante determina o atual art. 366 do Estatuto Processual. É, nesse caso, a aplicação plena dos princípios fundamentais estampados na Constituição de 1988 e ao Pacto de San José.

Se a Reforma Processual Penal operada pela Lei nº 11.689/08 for aplicada indistintamente às duas hipóteses, redundará, na situação (1), vinte anos depois da promulgação da Constituição Republicana, em uma situação jurídica mais gravosa da que era prevista pelo autoritário Código de Processo Penal original, cujo regramento foi, de certa forma, corrigido pela Lei nº 9.271/96. À primeira hipótese, o novo regramento só será aplicado se houver citação efetiva. Na hipótese (2), a reforma irá incidir, sempre e necessariamente, apenas se houver citação efetiva do acusado, até porque se a citação não for efetiva – citação-edital –, o processo não chegará até a fase de pronúncia.

Em outras palavras, para se respeitar a Constituição Federal e o Pacto de San José, a intimação da decisão de pronúncia por edital – permitida agora pela Lei nº 11.689/08 – tem como pressuposto necessário a citação pessoal do réu.

Ressalte-se que este entendimento já tem sido aplicado no TJDFT [10], TJMG [11], TJRS [12] e, mais recentemente, em decisão monocrática no Acre [13].


3. DA CONCLUSÃO

De todo o exposto, para que os direitos fundamentais dos acusados citados por edital antes do advento da Lei nº 9.271/96 sejam devida e legitimamente respeitados e se mantenham incólumes, prestando homenagens incondicionais à Constituição Federal e ao Pacto de San José, a única interpretação a ser dada é aquela que não admite a incidência do parágrafo único do art. 420 do Código de Processo Penal nesses casos. Assim, em face da falta da comunicação efetiva da acusação ao réu não deve se permitir a incidência deste dispositivo, devendo o processo continuar sobrestado na denominada crise de instância, até que seja intimado pessoalmente da decisão de pronúncia ou sobrevenha alguma causa extintiva de punibilidade.

Em outras palavras, a citação pessoal (efetiva) é pressuposto necessário para a aplicabilidade do parágrafo único do art. 420 do Código de Processo Penal, com a redação que lhe foi dada pela Lei nº 11.689/08.


Notas

  1. Diga-se que ausente no presente texto quer dizer, restritamente, a não-presença.
  2. O dispositivo era assim redigido: "A intimação da sentença de pronúncia, se o crime for inafiançável, será sempre feita ao réu pessoalmente."
  3. O dispositivo era assim redigido: "O processo não prosseguirá até que o réu seja intimado da sentença de pronúncia."
  4. Grifo do autor.
  5. Idem.
  6. Idem.
  7. Idem.
  8. Recorde-se que a Convenção Americana de Direitos Humanos, em consonância com o entendimento do STF, possui qualidade normativa supralegal.
  9. Tanto é incompossível que a Súmula nº 366 do STF – que se encontra plenamente aplicável – se contenta só com a indicação do dispositivo legal na citação-edital, sendo dispensável a transcrição da inicial acusatória ou o resumo dos fatos.
  10. 1ª T. Crim., HC 20090020024079HBC, Rel. Des. MÁRIO MACHADO, j. 26/03/2009.
  11. 5ª Câm. Crim., HC 1.0000.09.498700-5/000, Rel. Des. MARIA CELESTE PORTO, j. 25/08/2009.
  12. 1ª Câm. Crim., Correição Parcial Nº 70028300283, Rel. Des. MARCO ANTÔNIO RIBEIRO DE OLIVEIRA, j. 18/02/2009; 3ª Câm. Crim., Correição Parcial Nº 70027292382, Rel. Des. ELBA APARECIDA NICOLLI BASTOS, j. 18/12/2008.
  13. Conforme recente entendimento do Juiz de Direito Titular da Vara do Tribunal do Júri da Comarca de Rio Branco/AC, LEANDRO LERI GROSS, e do Juiz de Direito Substituto com atribuições perante a mesma Vara, GUSTAVO SIRENA. A título de exemplo: proc. nº 001.95.000821-5, j. 10/11/2009.’
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Sobre o autor
Glaucio Ney Shiroma Oshiro

Promotor de Justiça em Cruzeiro do Sul (AC). Pós-Graduando em Direito Penal e Processual Penal.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OSHIRO, Glaucio Ney Shiroma. Júri: da possibilidade de julgamento de réu ausente e o confronto com os processos anteriores à Lei nº 9.271/96. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2334, 21 nov. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13889. Acesso em: 28 dez. 2024.

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