7 PRESUNÇÃO DE VIOLÊNCIA VERSUS OBJETIVIDADE FÁTICA
Para adentrarmos no assunto de presunção de violência, faz-se mister que esclareçamos o que conceito de presunção. Para tanto, utilizaremos do conceito dado por Hildebrand, em seu Dicionário Jurídico:
Presunção – 1. Consequência que a lei deduz de certos atos ou fatos, e que estabelece como verdade, por vezes até contra prova em contrário. 2. Tomar como verdadeiro um fato, independente de prova, levando-se em consideração aquilo que normalmente acontece. (HILDEBRAND, 2009, p. 112)
Desse modo, podemos concluir por presunção, no ordenamento jurídico, como sendo os resultados deduzidos de um fato conhecido, para se chegar a um fato desconhecido, isto é, nas presunções deduzem-se os resultados.
Ocorre que a conseqüência das presunções, para o direito, está situada justamente no campo das provas, pois, dependendo do tipo, desde que comprovada a adequação típica, o réu poderá ser condenado, seja porque não provou o contrário, ou porque não se admite prova em contrário.
Diante disso temos os dois tipos de presunções, as denominadas juris et de jure e as juris tantum, que podem ser conceituadas no dizer de Hildebrand, em sua obra supracitada:
Presunção Absoluta – Circunstância conhecida e provada que não admite prova em contrário [...] Presunção juris et de jure – Diz-se da presunção legal que não admite prova em contrário.
Presunção relativa – Circunstância conhecida e provada que admite prova em contrário [...] Presunção juris tantum de veracidade – Diz-se da presunção legal que prevalece até prova em contrário. (HILDEBRAND, 2009, p. 122). (grifo nosso)
Por questões político-criminais adotou o nosso Código Penal, antes da vigência da Lei 12.015/09, a Presunção de Violência, também denominada de Violência Ficta, nas hipóteses consagradas no art. 224 do Código Penal Brasileiro. Dessa forma, tinha-se a seguinte redação para o artigo supramencionado: "Presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de 14 (catorze) anos; b) é alienada ou débil mental, e o agente conhecia esta circunstância; c) não pode, por qualquer outra causa, oferecer resistência".
Como se pode perceber, o artigo em questão não menciona nova pena, nem se caracteriza como qualificadora, nem como causa de aumento ou diminuição de pena. Na verdade, este artigo fora criado para ser uma norma de extensão do conceito de violência empregado nos delitos contra os costumes. Buscava, desta forma, abarcar situações em que o ofensor não se utilizava de violência real, ou de grave ameaça, aproveitando-se, entretanto, de alguma situação da vítima, ou seja, quando esta última não possuía tinha capacidade para anuir validamente (alíneas "a" e "b" do art. 224), ou quando por qualquer situação não tinha capacidade para oferecer resistência (alínea "c" do art. 224).
A primeira hipótese a ser amparada pelo Código Penal é o caso dos menores de 14 anos, objeto central de nosso estudo. Nesta, em razão da idade e considerada imaturidade do menor, merece este maior proteção legal, vez que a legislação o considera incapaz de consentir, de modo que qualquer consentimento dado pelo menor será considerado inválido, tronando, portanto, o ato sexual com este sujeito passivo um fato punível.
Entretanto, questão de grande relevo, diz respeito à caracterização da presunção tida no art. 224, do CP, buscando-se compreender se esta é absoluta ou relativa.
Observa-se que o artigo penal mencionado apresenta-se como uma presunção juris et de jure, todavia, diante da dicotonomia existente sobre a relativização desta presunção, havia doutrinadores que afirmavam que, uma vez admitida o erro tipo para o art. 224 do Código Penal, estar-se-ia relativizando-o. Desta forma, passou-se a admitir, mesmo que minoritariamente, mas de forma significante, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, o caráter relativo da presunção de violência.
A nosso ver este era o entendimento mais correto, uma vez que, se o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê que maiores de 12 (doze) anos já podem ser responsabilizados pelos seus atos infracionais, na verdade, estar-se-ia considerando-o capaz de discernir e consentir na prática de atos, podendo, assim, consentir de forma válida na realização de um ato sexual.
Como exemplo, os entendimentos doutrinário e jurisprudencial colacionados abaixo, acerca da relativização dessa presunção:
Entendemos que a presunção não pode ser absoluta, sob pena de adoção indevida da responsabilidade objetiva. (CAPEZ, 2009, p. 68).
Recurso Especial. Estupro. Vítima menor de 14 anos de idade. Violência presumida. Presunção Relativa. 1. É Relativa a presunção de violência contida na alínea ‘a’ do artigo 224 do Código Penal. 2. Recurso conhecido e improvido. (STJ, REsp 206.658 – SC, 6ª T., rel. Min. Vicente Leal, 18/04/2002, D.J, 10/03/2003). (grifo nosso)
Ocorre que, diante destes entendimentos, o Projeto de Lei do Senado nº. 253/04 afirma que não há mais que se falar em Presunção de Violência, nem absoluta, nem relativa, dispondo tratar-se de uma objetividade fática, como já fora expositado neste trabalho.
Consideramos, no entanto, que embora haja denominação diversa para os efeitos da norma do art. 217-A, do CP, o que vigora, na realidade, é uma norma cujo o caráter é de verdadeira presunção absoluta, vez que continua a presumir-se que em qualquer hipótese a suposta vítima seria incapaz de consentir, independente da análise fática, ou se quer da existência de violência real ou grave ameaça, sem analisar as características pessoais do sujeito ativo, qual seja sua culpabilidade.
Quando o tipo Estupro de Vulnerável prevê que há violência em toda e qualquer situação, sem levar em consideração as características pessoais de cada vítima e do agente, acaba por reputar que haverá somente um tipo de fato social para todos os casos concretos a que a norma seria aplicável, quais sejam o abuso da condição de despreparo físico e psicológico da vítima.
Na verdade, esta previsão demonstra o retrocesso trazido pelo legislador, pois ratifica um entendimento que já vinha sendo afastado, em razão de sua desproporcionalidade, pela doutrina, e inclusive por nossa jurisprudência, como bem demonstra o juízo arbitral do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio de Mello, colacionado abaixo:
A presunção de violência prevista no art. 224 do Código Penal cede à realidade. Até porque não há como deixar de reconhecer a modificação de costumes havida, de maneira assustadoramente vertiginosa, nas últimas décadas, mormente na atual quadra. [...] de qualquer forma, o núcleo do tipo é o constrangimento, e, à medida que a vítima deixou patenteado haver mantido relações sexuais espontaneamente, não se tem, mesmo à mercê da potencialização da idade, como concluir, na espécie, pela caracterização. A presunção não é absoluta, cedendo às peculiaridades do caso como são as já apontadas, ou seja, o fato de a vítima aparentar mais idade, levar a vida dissoluta, saindo altas horas da noite e mantendo relações sexuais como outros rapazes, como reconhecido no seu depoimento e era de conhecimento público" (STF, HC 73.662 – MG, 2ª Turma – Voto do Min. Marco Aurélio). (grifo nosso)
Ademais, fazendo uma análise desta inovação trazida pelo legislador dentro do sistema penal brasileiro, podemos encontrar alguns pontos obscuros, que acabaram por evidenciar uma aparente contradição na tutela de bens jurídicos.
Uma vez considerando as consequências de uma objetividade fática, importa ressaltar a hipótese de uma menor de 14 anos que viesse a engravidar, por puro descuido, em não em decorrência de uma violência real, e posteriormente a abortar, de modo não natural. Neste caso, a própria legislação penal autorizaria este tipo de aborto, enquadrando-se no art. 128, inciso II do Código Penal Brasileiro: "Não se pune o aborto praticado por médico: II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal".
Como se poderia punir a gestante ou seu representante legal pelo aborto praticado mesmo que por hospitais clandestinos, uma vez que a própria legislação permite o aborto nestas condições?
Seria de se analisar que, uma vez que o art. 128, inc. II do CP é norma permissiva, cujo embasamento jurídico é de que a mulher não deve ser obrigada a levar adiante uma gravidez decorrente de ato que fora realizado contra sua vontade, como este fundamento seria respeitado, quando uma adolescente menor de 14 anos, em decorrência de uma prática sexual consentida com maior de 18 anos, viesse, por irresponsabilidade sua, conceber uma criança? Seria justo e direito que esta norma permissiva fosse alargada, a tal ponto de abranger estas situações em que sequer há verdadeiramente um bem jurídico a ser tutelado, a não ser a vida do próprio feto que está sendo gerado? Óbvio e evidente que não.
Do mesmo modo, não consideramos válido que o legislador haja criado uma norma de cunho tão absoluto, que englobe até mesmo situações em que não há, a despeito da precocidade dos sujeitos passivos, qualquer indício real de dignidade e liberdade sexual a ser protegida, contrariando, de forma tão inconsequente, o Princípio do Direito Penal Mínimo, entre diversos outros tão quanto importantes, recaindo em uma verdadeira e arbitrária imposição de crimes e penas por parte do Estado, em muitas situações nas quais em verdade não haveria o que se proteger, revelando o detrimento dos Princípios e finalidades de um Estado Democrático de Direito.
CONCLUSÃO
O Direito, além de ser um fenômeno de ordem jurídica, é primordialmente um fato social, devendo sempre estabelecer-se em consonância com os anseios e necessidades sociais, para que os fins do Estado Democrático possam ser atingidos de forma justa e eficaz, tipificando única e exclusivamente condutas que, em virtude de seu grau de reprovação e nocividade à paz social, tenham verdadeira relevância para a sociedade. Assim, o Direito deve estar em constante dinâmica, adaptando-se às novas realidades.
A despeito dessa dinamicidade, deve-se salientar que o Código Penal Brasileiro é produto legislativo da década de 40, refletindo idéias morais e sociais daquela época, valores estes não mais condizentes com as novas concepções da sociedade, em especial no que se refere à sexualidade.
Inegável, pois, a necessidade de alteração de muitos dos tipos penais trazidos neste Código, especificamente em se tratando de seu Título VI, que antes dispunha sobre os Crimes Contra os Costumes, cuja tutela se dirigia tão somente à proteção de uma moral sexual de uma época já anciã. Portanto, diante desta necessidade, a alteração do Título VI, para uma nova denominação de Crimes Contra a Dignidade Sexual foi sobremaneira acertada, coadunando, a partir da promulgação da Lei 12.015/09, com a própria ideologia constitucional, qual seja o respeito às Garantias Fundamentais e aos Direito Humanos, procurando expiar-se de qualquer forma de discriminação em suas previsões legais.
Contudo o que se vê com a introdução do tipo penal no art. 217-A é uma verdadeira distorção dos reais objetivos penais e sociais. Buscou-se proporcionar maior proteção legal aos indivíduos tidos como mais vulneráveis a violação de seus bens. Na verdade pode e deve o ordenamento jurídico conferir-lhe maior proteção, mas deve fazer conforme os preceitos e princípios de nossa própria Carta Magna.
Em contrapartida, em que pese o art. 217-A introduzido por esta nova Lei, o Estupro de Vulnerável, flagrante é a desobediência à múltiplos Princípios Constitucionais norteadores do próprio Direito Penal, entre eles a Dignidade da Pessoa Humana, a Adequação Social, a Proporcionalidade, a Culpabilidade, a Individualização da Pena e a Presunção de Inocência, entre diversos outros, demonstrando a clara inconstitucionalidade desta figura típica.
Não se pode negar que os menores de 14 anos, sujeitos passivos sob estudo neste artigo, encontram-se, na maioria dos casos, em real situação de vulnerabilidade, demandando maior proteção legal, sendo, contudo, inconcebível a objetivação fática do Estupro de Vulnerável, pois esta constitui afronta clara aos já mencionados Princípios Fundamentais do Estado Democrático de Direito, não havendo, a nosso ver, outra solução, a não ser a declaração de inconstitucionalidade do art. 217-A do CP, visando a adequação da norma vigente aos alicerces ideológicos de nosso ordenamento, e ainda às novas concepções e demandas sociais, em respeito, principalmente aos limites de um Direito Penal mínimo.
Sabemos, em verdade, por simples conhecimento de mundo, estudando o Estupro de Vulnerável sob a ótica de passivos menores de 14 anos, que não se pode afirmar, nos dias de hoje, que todo aquele que se encontra nesta faixa etária está incapacitado para consentir, pois, embora de forma precoce, possuem sim desenvoltura para escolher iniciar ou não uma vida sexual, fazendo-o de plena ciência sobre o que estão para fazer, mesmo que por vezes analisando as consequências que podem advir de um relacionamento sexual, como uma gravidez, por exemplo, o que, diga-se de passagem, muitas vezes até mesmo pessoas de maior idade têm.
Não se pode conceber, desta feita, que no momento de punir um suposto ofensor, o Direito Penal observe apenas as características de uma presumida vítima, sem ao menos avaliar as condições pessoais do sujeito, a existência ou não de um dolo de ferir a dignidade e a liberdade sexual do sujeito passivo, tendo em vista que o tipo previsto no 217-A do CP não exige a presença de violência real ou até mesmo de grave ameaça, como apontado nesta produção.
É ponto passivo na doutrina atual, que o Direito Penal é inteiramente baseado na culpabilidade do agente, sendo inaceitável sua punição sem considerar este elemento do fato típico, sob pena de verdadeira adoção da Responsabilidade Objetiva, indubitavelmente rechaçada por nosso Código Penal. É, no entanto, o que ocorre na figura do Estupro de Vulnerável.
Uma vez que o Direito Penal encontra fundamento para sua existência na proteção dos indivíduos de uma coletividade, punindo tão somente aqueles que violem bens jurídicos fundamentais, não há lógica, nem bom senso em sancionar indivíduos por condutas que, na verdade, não demonstram qualquer violação de bem a ser protegido, qual seja a dignidade e liberdade sexual dos menores de 14 anos, nos casos em que se possa auferir a capacidade destes para consentir validamente no ato sexual, tendo em vista que o próprio ordenamento jurídico, mais especificamente no Estatuto da Criança e do Adolescente, prevê que estes possuem um nível suficiente de consciência de seus atos infracionais para arcar com suas consequências.
O objetivo de toda a discussão empregada neste trabalho, em verdade, destina-se à resposta de uma única pergunta: a introdução do crime de Estupro de Vulnerável em nossa sistemática jurídica representou um avanço, ou um retrocesso em relação às previsões legais anteriormente vigentes?
Como demonstrado previamente, quando da Justificação do Projeto de Lei que deu origem à Lei 12.015/09, foi-se alegado que houvera uma substituição da anteriormente vigente Presunção de Violência, por uma objetividade fática, isto é, não haveria mais que se aplicar as hipóteses e previsões legais do revogado art. 224 do CP, com a introdução do crime Estupro de Vulnerável.
O que ocorreu, no entanto, é que embora se haja dado uma nova denominação ao fenômeno constante do art. 217-A do CP, continua a prevalecer a presunção de que, independentemente do consentimento da vítima, ou da existência de grave ameaça ou violência real, há uma violência ficta, precisamente o que decorria das antigas disposições do art. 224 do CP, quando tratava da Presunção de Violência. Logo, não há que se falar em real mudança entre o que se previa antes, e o que se observa agora.
A própria doutrina, em sua maioria, já considerava que aquela Presunção de Violência deveria ser relativizada, encaminhando-se até mesmo a jurisprudência de nossos Tribunais Superiores a este entendimento, demonstrando-se que a interpretação desta presunção dar-se-ia em acordo com os Princípios Fundamentais de Direito, e, sobretudo, com a própria realidade social que há muito se descortinava às vistas de todos os setores da comunidade: o desenvolvimento cada vez mais precoce das crianças e adolescentes.
Seria de se esperar que, assim como na maior parte das demais valiosas alterações trazidas pela nova Lei, fosse mantida tal evolução de pensamento, e não que esta trouxesse uma previsão legal que, além de produzir obscuridades dentro do próprio ordenamento, como a revogação tácita do art. 9º da Lei de crimes Hediondos, e a esdrúxula possibilidade de autorização do aborto para todas as menores de 14 anos, com base em uma objetividade fática que representa a adoção da Responsabilidade Objetiva pelo Direito Penal.
Concluímos, portanto, que, muito além de uma intenção inovadora, o legislador, quando da criação do tipo Estupro de Vulnerável, caminhou tão somente para a ratificação de preceitos que já restavam ultrapassados e destoantes da realidade fática do século XXI, uma vez que, ao contrário do que representava a relativização da Presunção de Violência na relação sexual com menores de 14 anos, teve-se, na verdade, a manutenção de verdadeira Presunção Absoluta, camuflada sob o vulgo de Objetividade Fática, promovendo uma inverídica percepção de justa e necessária proteção legal, para encobrir a tutela de uma falsa moral, denotando uma arbitrariedade estatal característica de Estados eminentemente ditatoriais.