Uma Definição Aberta
O termo "decoro" descende do latim decorum, que significa "decência", "honra", "aquilo que convém".
Entretanto, o vocábulo, tal qual usado na atualidade, carece de contornos definidos, pois a subjetividade e a abstração norteiam cada caso. São várias as conotações, desde as vinculadas à legalidade de atos no exercício da vida pública, quanto as referentes à vida privada. Aragão afirma que "entre as diversas acepções, sobressai a unanimidade acerca da frequência da ideia de conduta aceitável, decência, comportamento honesto e condizente com a função legislativa exercida" [01].
No Brasil, o decoro parlamentar é instituto insculpido na Constituição Federal de 1988 (CF), na forma do § 1º do art. 55. O texto constitucional refere-se ao abuso das prerrogativas asseguradas a parlamentares e à percepção de vantagens indevidas como incompatíveis com o decoro parlamentar. A Carta remete ao Regimento Interno a tarefa de elencar outros casos de quebra de decoro.
O termo aparece pela primeira vez na Constituição de 1946 [02], sob a influência dos Estados Unidos da América, que traz o conceito no parágrafo 2º da Seção Quinta do art. 1º, sob a denominação "disordely behaviour" [03].
A instituição da observância ao decoro parlamentar como mandamento constitucional tem como pressuposto a democracia representativa. No dizer do Presidente da Câmara dos Deputados [04], quando da edição do Código de Ética e Decoro Parlamentar,
O próprio conceito de democracia representativa encerra uma forte conotação ética. Na medida em que cidadãos comuns elegem representantes e lhes concedem poderes amplos para deliberar sobre assuntos que afetam o bem-estar de todos, tal representação enseja uma responsabilidade singular. O representante deve, para tornar efetivo seu mandato, privilegiar, em suas decisões e ações, a busca do bem comum, evitando o interesse privado e a exploração do cargo para usufruir de privilégios [05].
Regras Pátrias
Em atendimento ao § 1º do art. 55 da CF, ambas as Casas do Congresso Nacional editaram normas específicas, de modo a definir: o decoro parlamentar, as respectivas condutas puníveis e as penalidades cabíveis.
Na Câmara dos Deputados (CD), a Resolução n. 17/1989, que aprova o Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), prescreve, em seu art. 3º, que à Mesa compete a elaboração de projeto sobre o Código de Ética e Decoro Parlamentar. Assim, em complemento ao Regimento, a Mesa aprova o Código de Ética e Decoro Parlamentar da CD, por meio da Resolução n. 25/2001.
O Senado Federal (SF) dispõe também de disposições pertinentes à matéria (arts. 19; 25; e 32 – que se refere à perda de mandato, em complementação ao § 1º do art. 55 da CF) em seu Regimento Interno (RISF) e na Resolução de n. 17/1993, que "dispõe sobre a Corregedoria Parlamentar", e na de n. 20/1993, que "institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar".
Ressalte-se que mesmo com a delimitação dada pela CD e pelo SF, a expressão tem uma textura aberta, sujeita a variações de alcance e sentido.
Deputados Federais e o Decoro Parlamentar
O presente estudo enfoca as regras aplicáveis aos Deputados Federais, notadamente por meio do RICD e do Código de Ética.
O Regimento da Câmara repete as regras constitucionais em seu art. 244, onde se reporta a "dignidade".
Importa mencionar, em primeiro lugar, os "atos incompatíveis com o decoro parlamentar". Tais são as condutas puníveis com a perda do mandato: o abuso das prerrogativas asseguradas pelo § 1º do art. 55 da CF; a percepção, no exercício da atividade parlamentar, de vantagens indevidas; o ajuste financeiro cujo objeto seja a posse de suplente; a fraude no andamento dos trabalhos legislativos com vistas a alterar-se a deliberação; e a omissão intencional de informações relevantes (relativas à declaração de bens e rendas, ao imposto de renda, além da declaração de impedimento para votar quando a matéria discutida envolver seus interesses patrimoniais).
Outras condutas, consideradas "atos atentatórios ao decoro parlamentar" são: a perturbação da ordem das sessões ou das reuniões; a infração a regras de boa conduta; a prática de ofensas físicas ou morais a outros parlamentares; o constrangimento e o aliciamento de servidores; a divulgação de informações secretas ou reservadas que assim o sejam na forma do Regimento; o uso de verbas de gabinete que violem o disposto no art. 37 da CF; a relatoria de matéria de interesse de financiador de sua campanha eleitoral; e a fraude do registro de presença a sessões ou reuniões.
As punições, prescritas no art. 10 do Código de Ética abrangem: censura (que pode ser oral ou escrita); suspensão de prerrogativas regimentais; suspensão temporária do exercício do mandato; e perda do mandato.
O Conselho de Ética, órgão responsável pelo procedimento disciplinar, é composto por quinze membros titulares (e quinze suplentes), que não podem ser substituídos como nas Comissões (arts. 6º e 7º do Código). O Corregedor da CD, ocupante do cargo de Segundo Vice-Presidente da Casa, participa das reuniões do Conselho, na forma do art. 9º da Código.
Questões Relevantes
Delineado o quadro institucional em que é aferida a falta de decoro parlamentar, algumas perguntas se impõem: a partir de que momento o Deputado deve obediência a tais regras; e licenciado o Deputado para investir-se em cargo de Ministro ou outros previstos no art. 56 da Constituição, deve ele ainda prestar observância ao Código de ética e Decoro Parlamentar?
A resposta à primeira pergunta é difícil. A resposta mais incontroversa é que somente a posse vincula o Deputado às regras de decoro. No entanto, há quem defenda que seja desde a diplomação, ou, ainda, desde o registro da candidatura, ou, mais, o parlamentar, uma vez eleito, deve ter toda uma vida de honradez [06].
É nesse sentido o intento do projeto de apoio popular [07] recentemente apresentado à CD, que visa a impedir a candidatura de pessoa com processo judicial em curso. Entretanto, a principal crítica é a de que a perseguição política inviabilizaria a aferição de acusações verdadeiras, além do fato de que tal aferição somente poderia ser feita após o trânsito em julgado de sentença condenatória [08] .
Quanto à segunda pergunta, o Supremo Tribunal Federal (STF), não considerando a matéria de interna corporis [09], manifestou-se no MS 25.579-MC (Rel. p/ o ac. Min. Joaquim Barbosa, julgamento em 19/10/05, DJ de 24/8/2007), por meio do qual definiu que sim. Além disso, o Deputado licenciado pode inclusive optar pela remuneração, e ainda tem prerrogativa de foro em matéria penal (INQ-QO 777-3/TO, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 1/10/1993), mas, em contrapartida, deve também portar-se com decoro parlamentar: "O membro do Congresso Nacional que se licencia do mandato para investir-se no cargo de Ministro de Estado não perde os laços que o unem, organicamente, ao Parlamento (CF, art. 56, I)".
A perda do mandato é a punição para casos graves de falta de decoro. É a punição, também, para os casos previstos no art. 55 da CF. No dizer de Paulo Gustavo Gonet Branco, a perda do mandato "enseja grande discricionarismo político à Casa Legislativa a que pertence o parlamentar" [10]. É nesse sentido que o STF vem deixando de analisar a questão no mérito, restringindo-se à verificação dos requisitos formais, notadamente a ampla defesa.
Importa registrar que é também possível ao cidadão representar contra Deputado, conforme preconiza o inciso I do art. 13 do referido Código. O Brasil tem investido na transparência e na participação popular. O Congresso veicula sessões e reuniões relevantes pela televisão. Assim, o povo pode acompanhar a atividade legiferante e também controlar seus representantes eleitos.
Conclusão
A observância ao decoro parlamentar está prevista na Constituição e nos Regimentos Internos das Casas do Congresso Nacional. Entretanto, tendo em vista sua textura aberta, somente a análise do caso concreto irá ser conclusiva quanto à violação, ou não, do instituto.
Trata-se, em último caso, de trato de cunho político e é considerado pelo STF como de interna corporis, motivo pelo qual a atuação da Suprema Corte se limita à verificação dos requisitos formais e da efetiva ampla defesa do acusado.
Notas
- ARAGÃO, João Carlos Medeiros de. Ética e Decoro Parlamentar no Brasil e nos EUA: Integração dos Instrumentos de controle para Mudança Social. Brasília: Entrelivros, 2. ed., 2007, pp. 61-65.
- Vide § 2º do art. 48 da Constituição de 1946: "Perderá, igualmente, o mandato o deputado ou senador cujo procedimento seja reputado, pelo voto de dois terços dos membros de sua câmara, incompatível com o decôro parlamentar"
- TEIXEIRA, Carla Costa. A honra da política: decoro parlamentar e cassação de mandato no Congresso Nacional (1949-1994). Rio de Janeiro: Relume Dumará: Núcleo de Antropologia da política, 1998, pp. 41-42.
- Dep. Aécio Neves.
- BRASIL, Congresso. Câmara dos Deputados. Apresentação - Transparência e Ética no Parlamento In Código de Ética e Decoro Parlamentar: aprovado pela Resolução n. 25, de 2001. Brasília: Câmara dos Deputados, Coordenação de Publicações, 2001, p. 6.
- RIBEIRO, Renato Ventura. Considerações sobre o Decoro Parlamentar e os Limites Legais In http://www.conjur.com.br/2007-ago-31/decoro_parlamentar_quais_limites_legais.
- As leis que ganharam repercussão na mídia como de "iniciativa popular", tiveram, em verdade, "apoio popular", pois receberam a subscrição de grande eleitorado, mas, a apresentação, na Câmara, foi formalizada por um parlamentar, que "adotou a causa". Confira SANTOS, Luiz Claudio Alves dos. A participação popular na iniciativa das leis no contexto da democracia representativa e da participação política no Brasil [manuscrito]. Brasília: 2009. Defesa em 29/9/2009.
- Vide ADPF 144/DF, Rel. Min. Celso de Mello, 6/8/2008.
- Vide MS 23.529/DF, Rel. Min. Octavio Gallotti, 27/9/2000.(MS-23529).
- MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009, p. 945.