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A Polícia Federal no controle de armas

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A regulamentação e o controle do comércio e circulação de armas de fogo no Brasil ocorrem por motivos óbvios: para além do contexto social de extrema violência nos meios urbanos e rurais, o rastreamento de armas de fogo é condição fundamental para a tutela do sistema de segurança pública e de persecução penal. O Estatuto do Desarmamento (Lei Federal nº. 10.826/2003) é o reconhecimento disso, sendo a norma central no controle brasileiro sobre armas. É uma legislação ordinária federal que desvela a preocupação do Estado quanto à incolumidade física de pessoas e do patrimônio, entre outros bens jurídicos. O Estatuto permite a tutela administrativa preventiva e de polícia sobre arma de fogo, decorrente do artigo 144 da Constituição Federal, que define a segurança pública como dever do Estado. Ou seja, o controle da arma de fogo está umbilicalmente atrelado ao dever previsto no artigo 144, cujo fim é a preservação, em linhas gerais, da ordem pública.

A segurança pública é exercida por meio da Polícia Federal, dentre outros órgãos públicos. A partir disso, é possível concluir que, se a arma de fogo é objeto de atividades de segurança pública e se a segurança pública, por sua vez, é exercida pela Polícia Federal, então, o controle do armamento no país se confirma mais propriamente no artigo 144 (segurança pública) do que no artigo 142 da Constituição, que dispõe sobre as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica. Nesse panorama, a Polícia Federal ainda assume um papel de destaque em relação aos demais órgãos de segurança pública no controle de armas, porque, por opção legislativa consolidada no Estatuto do Desarmamento, compartilha (junto com o Comando do Exército) da responsabilidade sobre a circulação de armas de fogo em território nacional, uma vez que o Sistema Nacional de Armas (SINARM) está instituído no seu âmbito.

O cadastro das armas funcionais dos militares (aquelas de propriedade da corporação e não pessoal), porém, não ocorre no SINARM. Segundo o §único do artigo 2º do Estatuto, as armas de fogo das Forças Armadas e auxiliares e outras que constem de seus registros são cadastradas no SIGMA, cujo controle e alimentação de dados são de responsabilidade do Comando do Exército. Isso não significa que essas armas estejam imunes ao controle da Polícia Federal, mas, para haver o controle, é preciso que o Exército efetive a integração do SIGMA ao SINARM, o que, após seis anos de vigência da lei, ainda não aconteceu. A integração dos sistemas é condição de efetividade para a tutela da segurança pública prevista no artigo 144 da CF/1988. Infelizmente, o diagnóstico da situação do controle de arma, previsto em nome do dever constitucional de segurança pública, é o de que a Polícia Federal, atualmente, não tem acesso aos dados do SIGMA ─ uma realidade que não é segredo de Estado.

Com isso, as armas militares estão fora do alcance do controle da Polícia Federal, em violação ao espírito do Estatuto. As armas de fogo militares — além das armas de fogo institucionais da ABIN, do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República, de colecionadores, atiradores, caçadores e das representações diplomáticas — estão fora do alcance do poder de polícia administrativo do Estado, o que dificulta inclusive investigações e persecução criminal nos casos de comércio irregular de armas militares, extravio de armas militares e uso dessas armas em crimes tipificados no Código Penal, entre outros. O resultado é que a Polícia Federal não consegue exercer plenamente sua atribuição prevista no artigo 144 da Constituição e, como se não bastasse, sofre imposições constitucionalmente dispensáveis no controle de suas aquisições de armamento pelo Exército, com base no artigo 24 do Estatuto.

O artigo 24 é especialmente interessante para a reflexão sobre o status da Polícia Federal no controle de armas. É que apesar de o artigo 144 da CF/1988 combinado com o artigo 1º do Estatuto sinalizar uma relação mais estreita entre a Polícia Federal e o controle de armas, o mesmo diploma legal confere às Forças Armadas um poder de autoridade administrativa sobre a Polícia Federal. Ou seja, um paradoxo. Isso porque o Comando do Exército detém poder de ingerência sobre as escolhas técnicas e sobre o quantitativo de armamento a ser adquirido pela Polícia Federal. Hoje, portanto, segundo o artigo 24 do Estatuto, a Polícia Federal depende da autorização do Comando do Exército para importar e adquirir armas de fogo, munições e acessórios. A redação do artigo 24 induz à ilação de que a Polícia Federal não teria condições legais hierárquicas de exigir a interligação do SINARM e do SIGMA ao Comando do Exército ─ um equívoco à luz do artigo 144 da CF/1988.

Sem desconsiderar a relevância constitucional do Exército no controle da circulação e da aquisição de armamento em território nacional, o fato é que, numa perspectiva constitucional e, inclusive, legal (Estatuto do Desarmamento), é contraditório atribuir à Polícia Federal o dever de segurança pública (artigo 144 da Constituição) e a responsabilidade pelo controle da circulação de armas mediante o SINARM (artigos 1º e 2º, do Estatuto), e, no entanto, condicionar suas aquisições e importações de armas à autorização do Comando do Exército (artigo 24, do Estatuto). Ora, se a responsabilidade pelo controle de armas no país é compartilhada de igual para igual pela Polícia Federal e pelo Exército, não faz sentido submeter a Polícia Federal ao poder discricionário decisório do Exército para fins de aquisição de armamento quando ao Exército é dada absoluta independência para o mesmo fim, especialmente diante da inércia na interligação do SINARM e do SIGMA. Argumentos atrelados a questões de soberania nacional não justificam essa submissão, que impõe entraves burocráticos dispensáveis ao processo de aquisição: a prestação de informações após a aquisição atenderia a contento essa demanda militar. A mudança de realidade da Polícia Federal no controle de armas depende da filtragem constitucional do artigo 24 do Estatuto e da interligação do SINARM e do SIGMA. Sem isso, a Polícia Federal não cumpre sua missão constitucional. ▪

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Sobre os autores
Hebert Mesquita

Delegado de Polícia Federal em Brasília/DF e professor universitário do IESB.

Arryanne Queiroz

Delegada de Polícia Federal e mestra em Ciências da Saúde pela Universidade de Brasília, com dissertação intitulada "Deficiência e Justiça: um estudo de caso sobre a visão monocular".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MESQUITA, Hebert ; QUEIROZ, Arryanne. A Polícia Federal no controle de armas. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2346, 3 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/13955. Acesso em: 2 nov. 2024.

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