Sumário:1. Introdução 2. Conceito e transformações. 3. A fenomenologia do choque de ideias, e a criação de novos preconceitos. 4. Conclusão e consenso científico.
1. INTRODUÇÃO
Nos dias de hoje, a palavra preconceito tem surgido com frequência nos meios de comunicação, empregada de diversas formas de acordo com o contexto no qual é inserida. Também, na esfera jurídica, recebe especial relevância, sobretudo no Direito Penal e no Direito das Relações Sociais, pelos reflexos que gera ou pela própria carga valorativa que possui, tendo o condão de atrair consequências legalmente previstas.
Neste artigo, procurarei demonstrar, de forma breve, que o preconceito é um conceito que passou, e passa, por uma transformação semântica, e que a pesquisa pormenorizada de um assunto elimina o pré-conceito.
2. CONCEITO E TRANSFORMAÇÕES
A análise da palavra "preconceito", sem dúvida, pode passar pela Etimologia, pela abordagem semiótica, e pela possibilidade gramatical de formação de palavras compostas. Contudo, sem penetrar nestas áreas – o que tornaria o escopo do presente trabalho excessivamente extenso –, já é interessante verificar a transformação semântica que tal expressão vem sofrendo, ao abrir-se um simples dicionário.
De fato, a leitura de diversos dicionários publicados ao longo da história recente do Brasil, como nos exemplos a seguir, faz notar uma substancial diferença entre pensamento e ato, conforme se demonstrará.
Voltando à década de 50, mais precisamente em 1954, o Grande e Novíssimo Dicionário da Língua Portuguesa, de Laudelino Freire (São Paulo: editora José Olympio, 2ª ed., vol. IV, p. 4098), assim conceituava o "preconceito":
S.m. De pre + conceito. Conceito formado antecipadamente e sem fundamento razoável. 2. Estado de superstição, de cegueira moral. 3. Abusão (mau uso das coisas a partir do engano, n.a.), superstição que obriga a certos atos ou impede que eles se pratiquem.
Desde os tempos antigos, na elaboração dos dicionários, o primeiro significado que aparece após cada palavra corresponde ao seu sentido mais fiel e/ou popular, à sua substância mais essencial. É por isso que, no primeiro item significante de preconceito, do dicionário acima citado, há a apresentação de sua formação gramatical, somada ao conceito de ideia antes do ato.
Vejamos outros dicionários.
O Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, de 1977, do conhecido Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Rio de Janeiro: RRP Editorial Ltda., 12ª ed., vol. III, p. 973), pontificou:
Preconceito. S.m. Conceito antecipado; opinião formada sem reflexão; superstição; prejuízo. (Esta última palavra foi colocada em itálico por aquele escritor, também em razão de seu correspondente em inglês, prejudice).
Alguns anos antes, em 1975, o mesmo renomado autor, em seu Novo Dicionário Aurélio (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 1127), ampliava o número de significados, mantendo a mesma ideia de prevalência do pensamento sobre a ação humana:
[Do lat. Praeconceptu.] S.m. 1. Conceito ou opinião formados antecipadamente, sem maior ponderação ou conhecimento dos fatos; idéia pré-concebida. 2. Julgamento ou opinião formada sem se levar em conta o fato que os conteste; prejuízo. 3. Por extensão, superstição, crendice, prejuízo. 4. Por extensão, suspeita, intolerância, ódio irracional ou aversão a outras raças, credos, religiões etc.: O preconceito racial é indigno do ser humano.
Até aqui, verifica-se a concordância dos dicionaristas consultados, quanto à origem do preconceito: a mente humana. Por esta razão, o autor acima faz questão de preceder os significados dos itens 3 e 4 com a expressão por extensão, já que são desdobramentos possíveis do campo das ideias, a partir da verificação empírico-social.
Porém, de repente, no Dicionário Houaiss (São Paulo: Objetiva, 2001, p. 2282), à palavra preconceito foram acrescentados significados que não apareciam em dicionários antigos. O preconceito passou a designar:
1 qualquer opinião ou sentimento, quer favorável quer desfavorável, concebido sem exame crítico;
Ora, mas o exame crítico não é feito na esfera das emoções ou dos sentimentos. Tal exame só é possível na esfera da razão humana que se projeta sobre os sentimentos, ou deles recebe influência.
1.1 idéia, opinião ou sentimento desfavorável formado a priori, sem maior conhecimento, ponderação ou razão;
Novamente a inserção da palavra sentimento, de certo modo curiosa, porque não constava dos lexicons anteriores. Inclusive, o dicionário Michaelis de 1998 atribuía a inserção da relação sentimento e atitude a uma interpretação sociológica.
2 atitude, sentimento ou parecer insensato, esp. de natureza hostil, assumido em conseqüência da generalização apressada de uma experiência pessoal ou imposta pelo meio; intolerância (p. contra um grupo religioso, nacional ou racial) (p. racial) – cf. estereótipo (´padrão fixo´, ´idéia ou convicção´)
Aqui, novamente aparece a figura do ato humano, sempre em segundo lugar ou por extensão de significado, caracterizada tal figura pela generalização apressada que, por óbvio, se processa no intelecto e se traduz, depois, em atitude. O ato preconceituoso é fruto, outrossim, de uma reação em cadeia que se processa no campo das ideias, a partir de um processo comunicacional ou de aprendizado qualquer.
3 Conjunto de tais atitudes;
Nova criação do significado da palavra preconceito, que antes não existia: um conjunto de ações. E, por fim, o item 4:
4 qualquer atitude étnica que preencha uma função irracional específica, para seu portador (p. alimentados pelo inconsciente individual).
E relacionado, portanto, ao item 2 retro exposto.
Todos os dicionários consultados, entretanto – e mesmo outros não mencionados aqui, o que torna a opinião unânime -, destacam a importância da reflexão, do exame critico, da ponderação ou do conhecimento dos fatos como características fundamentais para a verificação da existência do preconceito.
Dessarte, a presença dessas características, contrariu sensu, desnatura o preconceito.
Isso é muito importante, por duas razões essenciais. A primeira, a de que todo ato irrefletido pode ter origens diversas: conhecimento deficiente, reações emocionais decorrentes de traumas, impulsividade de temperamento, destemor por ignorância, ausência completa de informações, imprevidência, negligência, imprudência, imperícia, reações emocionais decorrentes de fatores não necessariamente traumáticos, medo, planejamento de objetivos escusos ou criminosos, e muitas outras origens. A segunda é que o estudo aprofundado sobre um tema, particularmente utilizando-se a metodologia científica, aliada à completa imparcialidade, necessariamente trará conclusões não-preconceituosas, porque seu estudioso chegará a um resultado embasado em elementos científicos, ou de prova demonstrável, ou ainda de argumentação plausível formada a partir de extenso estudo.
Desta forma, o ato preconceituoso somente pode ser configurado ante a inexistência, como dissemos, de reflexão, de estudo ou do conhecimento dos fatos. Assim é que chegamos a um conceito de preconceito:
Preconceito é todo pré-conceito que o ser humano possui, de qualquer assunto, existente em sua mente, adquirido pelo conhecimento ou pela experiência, sem a participação de uma verificação pormenorizada dos elementos formadores deste conceito, e que pode gerar, ou não, atos insensatos, ou de natureza hostil e violenta, ou de intolerância, atos estes que estão sempre dissociados da verdade.
Por que a inclusão da expressão "atos estes que estão sempre dissociados da verdade"? Porque somente a partir da verdade, da honestidade e da transparência, como norteadores da verificação que elimina o preconceito, é que se pode encontrar a sensatez perseguida pelos homens em sociedade. Por isso, há verdades inquestionáveis para a manutenção da civilização humana e mesmo do estado de Direito:
a)Só há Justiça efetiva onde há equilíbrio harmônico nas relações sociais;
b)Só há equilíbrio harmônico a partir da solidariedade;
c)Não existe solidariedade duradoura, se estiver baseada na mentira;
d)A violência sempre deve ser combatida com a verdade.
Com estas premissas, a investigação da verdade recebe especial atenção quando permeada pela metodologia científica e, mesmo tratando-se da esfera metajurídica e da esfera metafísica, pela busca mais completa possível de informações que sirvam de embasamento para uma opinião. A metodologia científica, por sua vez, também deve estar pautada pela ética e pela imparcialidade.
3. A FENOMENOLOGIA DO CHOQUE DE IDEIAS, E A CRIAÇÃO DE NOVOS PRECONCEITOS
Pode acontecer que, em determinado momento histórico, uma pessoa possua um pré-conceito sobre determinado assunto, e seja publicamente rechaçado ou humilhado por sua posição. Ocorre que, em seguida, tal pessoa empreende um estudo detalhado sobre o pensamento que possui, para verificar honestamente se realmente está errada. Pode acontecer, também, que depois de extensa elaboração científica ou de pesquisa, esse mesmo indivíduo chegue a uma conclusão mais perfeitamente fundamentada, que inclusive sustenta sua velha opinião.
Neste caso, o indivíduo não é mais preconceituoso. Ele está certo, ou ele está errado, ou ele possui uma questão que ainda não encontrou consenso. Mas não pode mais ser chamado de preconceituoso, porque empreendeu atividades que escapam ao próprio conceito de preconceito.
Aqui, portanto, está demonstrada a dialética da fenomenologia do choque de ideias: duas pessoas possuem ideias diversas, e uma delas é "taxada" de preconceituosa, porém, apenas esta pessoa, no exemplo dado, é a que resolveu, de forma racional, investigar a verdade por trás do tema discutido.
O que se observa na sociedade contemporânea é a classificação de pessoas por suas opiniões, como preconceituosas ou não, independentemente da constatação quanto à eventualidade de estudo, ou não, que estas pessoas perseguidas fizeram sobre o tema objeto de preconceito. Para este fenômeno de rápida rotulação de pessoas, como se observa, por exemplo, com facilidade nos meios de comunicação brasileiros, tem sido fundamental a atividade política e a influência sobre a mídia e pela mídia, feita por diversos grupos de pessoas, que não são objeto de estudo específico deste trabalho.
O que importa é que a rápida classificação de pessoas, por suas opiniões (eis que os atos violentos decorrentes ou não de preconceito já são punidos atualmente pela legislação penal em vigor) tem banalizado o conceito de preconceito, e o que ele realmente significa. É como se não fosse permitido às pessoas de opinião diversa a oportunidade de verificarem, sequer, o quanto estão erradas, ou o quanto determinado tema veiculado pela mídia está equivocado.
Cresce em nosso meio social de início de século XXI, ao lado dos preconceitos, um tipo de pensamento que não permite sequer a investigação quanto à verdade de um fato, tema ou opinião. Assemelha-se este pensamento contemporâneo ao famigerado patrulhamento ideológico, pelo qual pessoas unidas por laços ideológicos têm por meta impor seu pensamento e seus objetivos a outras pessoas, vigiando constantemente o espaço e o publico alvos, para que a ninguém seja permitido perscrutar as intencionalidades, fatos e correlações entre estes.
Por isso, não é demais dizer que temos diversos tipos de preconceitos clássicos, que hoje dão lugar a novos tipos de preconceito, alguns motivados pelo pensamento político, outros deflagrados por minorias, e ainda outros derivados do patrulhamento ideológico. Em lista exemplificativa:
- Preconceito de raça
- Preconceito de cor
- Preconceito de religião
- Preconceito de sexo
- Preconceito de idade
E tantos outros, existentes desde sempre em nossa sociedade, alguns deles já previstos como crimes hediondos pelo nosso ordenamento jurídico.
Ao lado destes, surgem algumas novas categorias:
PRECONCEITO REVERSO SOFISMÁTICO – é todo o pensamento, que pode ou não ser traduzido em ato, não refletido, que qualifica positivamente membros de qualquer grupo humano ligado por questões ideológicas, políticas ou de outra natureza, pela exclusiva razão de fazerem parte deste grupo. Exemplo fictício: PRECONCEITO: os estagiários da profissão X são todos preguiçosos. PRECONCEITO REVERSO SOFISMÁTICO: os estagiários da profissão X são todos trabalhadores incansáveis, justamente porque farão parte da profissão X. Aqui, os estagiários foram avaliados positivamente, não em razão de sua real produtividade, mas em razão de pertencerem a uma classe ou grupo. Essa categoria de preconceito é baseada em premissas aparentemente verdadeiras, mas que revelam a falsidade de todo o raciocínio, se verificadas em minuciosa investigação.
PRECONCEITO DO PRECONCEITO – trata-se do modo de pensar que se traduz no autopoliciamento tendente a não abordar nenhum tema ligado a um determinado tipo de preconceito, em decorrência de diversos fatores psicológicos ou psicossociais como o medo, a pressão de grupos, o receio de ser rejeitado, ou o simples comodismo. Também pode indicar a certeza não verificada pessoalmente, quanto a uma conclusão veiculada pela mídia, e que a pessoa aceita passivamente, sem exercer seu espírito crítico. Indica, por fim, um conceito errado que alguém possua sobre o que significa preconceito.
PATRULHAMENTO IDEOLÓGICO – é o preconceito que, inclusive por meio de atitudes hostis, não admite que ninguém pense publicamente de forma contrária ao grupo que exerce tal patrulhamento, porque é pré-concebido que o pensamento deste grupo é necessariamente o melhor, independentemente da verdade.
POLITICAMENTE CORRETO – em termos de história geral, é expressão criada mui recentemente. Indica um tipo de pensamento que deve estar de acordo com o que pensa a maioria. Ocorre que são ideias nascidas justamente – e principalmente - na esfera política, de forma impositiva. O preconceito reside em julgar negativamente pessoas que manifestem ideias contrárias ao politicamente correto. Um exemplo notório atual é a investigação sobre as causas do aquecimento global, em que é politicamente correto acreditar que os países devem reduzir as emissões de CO2 para brecar o chamado efeito estufa. No livro O ambientalista cético, Bjorn Lomborg refutou essa conclusão, pensando de modo politicamente incorreto, porém fortemente alicerçado por inúmeros estudos científicos que demonstram ser as causas do aquecimento global bem mais profundas do que as relativas à ação humana.
NEOPRECONCEITO CONTRA OS CRISTÃOS – apesar de ser derivado da forma clássica de preconceito contra a religião, assume hoje proporções nunca vistas na história da humanidade, estando todos os valores cristãos sendo atacados por todos os lados, particularmente na mídia e na esfera política, e tal fato já atingiu o grau de notoriedade. Livros, filmes e grupos organizados disseminam uma mensagem anticristã sistemática, sem ao menos conhecer, muitas vezes nem de longe, os assuntos contra os quais se insurgem.
E assim, poder-se-ia citar inúmeros exemplos de preconceitos.
4. CONCLUSÃO E CONSENSO CIENTÍFICO
A transformação semântica da palavra preconceito consiste na valorização maior quanto aos atos e sentimentos caracterizados como preconceituosos, cada vez mais se afastando da origem da palavra, que reside na problemática das ideias.
A conclusão a que se chega é que o preconceito não é sadio para a vida em sociedade, mas a pré-concepção fica imediatamente afastada, a partir do momento em que o indivíduo preconceituoso ou acusado de preconceito empreende, de forma imparcial, ou metodológica e fundamentada, uma pesquisa sobre o tema controverso, que irá gerar resultados de acordo ou não com o que pensa a maioria.
Estar errado nem sempre é ser preconceituoso.
Importante é não taxar rapidamente alguém de preconceituoso, por não concordar com a linha de pensamento da maioria, ou com a linha imposta por autoridades, grupos de pessoas ou pela mídia.
O que importa, somente, é a verdade.
E na busca pela verdade, a construção de argumentos baseados na mentira e na imposição política onde os fins justificam todos os meios, mesmo os desonestos, gera uma reação em cadeia que irá redundar, mais cedo ou mais tarde, em prejuízo para as próprias pessoas e grupos que criaram a mentira, ou inflamaram a sociedade com acusações preconceituosas ou com acusações de preconceito.
A relevância jurídica que este tema suscita é por demais óbvia: na elaboração de qualquer novo texto legal, e é de suma importância que cada pessoa responsável pelo processo legislativo conheça a fundo os significados e os fundamentos científicos de cada tema envolvido, sobretudo de suas implicações na esfera social, pois é grande a responsabilidade das Câmaras de Vereadores, das Assembleias Legislativas e do Congresso Nacional quanto à implementação da eficácia das normas jurídicas construídas irrefletidamente, apenas atendendo a interesses partidários ou de minorias, por exemplo.
É necessário, também, ao indivíduo, estar aberto ao conhecimento do consenso científico sobre determinada matéria. Embora esse consenso não seja a única forma de descobrimento da verdade em um sentido geral, ele é necessário para a determinação de certos fatos. Um exemplo aleatório, que é comum hoje em dia, é a necessidade de comprovação científica de assuntos ligados à genética.
Muitos temas que não possuem esse consenso podem ser "atirados" à população como verdades que não são, em decorrência de motivações, repita-se, que escapam à honestidade intelectual, científica ou ética.
Ressalte-se que o grande perigo do século XXI é a aceitação passiva, pela população mundial, de conceitos elaborados sem a reflexão necessária, cujos temas são explorados por organizações que procuram dominar a política das nações. A manipulação das massas por parte da mídia, em época de chips e terabytes, também é outro perigo que deve ser combatido e investigado.
Por fim, cabe ao profissional do Direito, sobretudo ao advogado e ao juiz, analisar todos os meandros dos temas que são alvos de preconceito, ou que geram preconceitos, para que sempre a verdade reine na construção da solidariedade que harmoniza as relações sociais, na eterna busca na concretização da Justiça nestas relações.