A discussão não é recente. Há longa data um inacabado debate a respeito da relação entre o Direito da Concorrência e o Direito de Propriedade Intelectual é travado não apenas entre estudiosos das respectivas áreas, como também entre agentes do Poder Público de diversos países. Apesar de as legislações sobre tais institutos não serem recentes, observa-se que a consolidação e a devida relevância reservada a tais assuntos apenas recentemente vêm recebendo destaque. A proteção proveniente de cada instituto revela um conflito aparente existente entre seus objetos e finalidades. A realidade contemporânea demonstra, no entanto, a necessidade de uma análise conjunta dessas duas áreas do conhecimento.
As recentes e profundas mudanças pelas quais o mercado mundial vem passando são causas diretas da importância crescente que os Estados vem dispensando ao atual contexto econômico. Concentração de poder econômico e desenvolvimento tecnológico acelerado são exemplos de tais mudanças e, também, sinais nítidos da necessidade de um tratamento diferenciado à presente realidade fática.
O Direito da Concorrência visa reprimir o abuso do poder econômico tendente à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros, nos termos do artigo 173, §4º da Constituição de 1988. Além disso, sua finalidade de prevenção e repressão às infrações da ordem econômica, disposta no artigo 1º da Lei 8884/94, deve ser orientada, dentre outros, pelos ditames constitucionais da defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico. Ressalte-se aqui, que o poder econômico nem sempre vai implicar em abuso, e, uma vez alcançado por meio de maior eficiência, é legítimo.
Combate, portanto, o monopólio econômico resultante da eliminação de concorrentes que, por sua vez, tenha sido gerada por meio de infrações econômicas e outros meios ilícitos. Reprime também o monopólio econômico que, embora alcançado licitamente, tem a possibilidade de fixar preços e quantidades, se tal liberalidade for exercida abusivamente.
Os direitos de propriedade intelectual, por sua vez, encontram seu fundamento constitucional no artigo 5º, XXIX, no qual é assegurado, aos autores de tais direitos, o privilégio temporário para sua utilização, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
Ao detentor do direito de propriedade intelectual é concedido um monopólio jurídico e instrumental. As vantagens decorrentes das prerrogativas concedidas ao titular do direito geram, naturalmente, poderio econômico deste em detrimento dos demais concorrentes no mercado. A concentração de poder, no entanto, é lícita e garantida pelo Estado. O abuso de tal poder é que levará às mesmas conseqüências combatidas pelo Direito da Concorrência, tornando-o passível de reprimenda.
Dessa forma, o Direito de Propriedade Intelectual e o Direito da Concorrência, na medida em que se relacionam, devem ser objetos de uma análise conjunta, exigindo-se uma harmonização que possibilite uma maior eficiência na produção e implementação de políticas públicas.
Conhecimentos advindos das referidas áreas deverão ser trabalhados conjuntamente. Essa é a ideia norteadora do que será apresentado adiante. Será necessário analisar como se dá tal interseção, desenvolvendo um estudo a respeito da aplicabilidade do sistema normativo concorrencial aos direitos de propriedade intelectual. O presente artigo não busca trazer respostas completas a tais questionamentos, visa apenas incitar uma reflexão, para que tais institutos não sejam vistos de forma estanque, e que a produção e implementação de políticas públicas tenham em vista a sua interseção.
Contexto Internacional
Num primeiro momento mostra-se conveniente uma contextualização de como vêm sendo tratadas essas duas áreas do conhecimento na esfera internacional. Sabe-se que a proteção à Propriedade Intelectual e o Direito da Concorrência sempre se relacionaram, pela própria natureza de ambos. O que mudou foi a forma de tratamento a eles dispensada, sendo que ao longo do tempo viu-se que uma análise conjunta era medida essencial para uma adequada condução das forças econômicas.
A evolução desta concepção de análise conjunta dos referidos institutos se faz presente em alguns dispositivo do acordo TRIPs (Trade-Related Aspects on Intelectual Property Rights), tratado internacional integrante do conjunto de acordos assinados em 1994, que encerrou a Rodada Uruguai criando a Organização Mundial do Comércio (OMC).
A questão passou, desde então, a ser regulada, na esfera internacional, pelas seguintes disposições:
ART.40. 1 - Os Membros concordam que algumas práticas ou condições de licenciamento relativas a direitos de propriedade intelectual que restringem a concorrência podem afetar adversamente o comércio e impedir a transferência e disseminação de tecnologia.
2 - Nenhuma disposição deste Acordo impedirá que os Membros especifiquem em suas legislações condições ou práticas de licenciamento que possam, em determinados casos, constituir um abuso dos direitos de propriedade intelectual que tenha efeitos adversos sobre a concorrência no mercado relevante. Conforme estabelecido acima, um Membro pode adotar, de forma compatível com as outras disposições deste Acordo, medidas apropriadas para evitar ou controlar tais práticas, que podem incluir, por exemplo, condições de cessão exclusiva, condições que impeçam impugnações da validade e pacotes de licenças coercitivos, à luz das leis e regulamentos pertinentes desse Membro.
A norma se completa dispondo sobre a necessidade de uma consulta entre os países membros quando ocorrer a aplicação, por qualquer dos signatários, de repressão a tais práticas contratuais anticoncorrenciais.
Como se observa, já há, neste momento, uma aceitação de que algumas práticas de proteção à propriedade intelectual, quando restritivas da concorrência, podem afetar adversamente o mercado. No entanto, é nítida também a liberdade que se dá aos países membros de legislarem sobre práticas restritivas da concorrência, respeitada, é claro, a compatibilidade com as demais disposições do acordo.
Com o alvedrio concedido aos signatários do acordo TRIPs, o que se viu foi uma notável diferenciação regulatória nos países desenvolvidos para aqueles em desenvolvimento, sendo que estes, além de reprimir disposições contratuais (relativos à cessão de direito de propriedade intelectual) que representem lesão à concorrência, afastam também medidas que abusam do direito de propriedade intelectual, baseando-se no que dispõe o art. 8.2 do acordo, que assim dispõe:
8.2 - Desde que compatíveis com o disposto neste Acordo, poderão ser necessárias medidas apropriadas para evitar o abuso dos direitos de propriedade intelectual por seus titulares ou para evitar o recurso a práticas que limitem de maneira injustificável o comércio ou que afetem adversamente a transferência internacional de tecnologia.
Portanto, nos paises em desenvolvimento, o abuso do Direito de Propriedade Intelectual torna-se passível de reprimenda pelos órgãos regulatórios, alargando-se o campo de restrição. Porém, o próprio acordo TRIPs faz uma importante ressalva no sentido de que nem todos os abusos podem justificar uma objeção pela lei nacional. Somente o poderão aqueles abusos que importarem em "efeitos adversos sobre a concorrência num mercado relevante". De especial importância as ponderações de Carlos Corrêa sobre o significado de mercado relevante:
"El significado de "mercado correspondiente" queda abierto a interpretación.
La definición del mercado en el que la práctica o conducta anticompetitiva es juzgada, es de particular importancia. En los Estados Unidos, por ejemplo, se entiende que un "mercado relevante" a los afectos de la legislación antitrust comprende todos los productos para los cuales existe elasticidad cruzada de demanda. En otras palabras, tal mercado incluye los productores a los que el consumidor recurriría si el precio del producto patentado es elevado anormalmente. Ello dependerá, a su vez, de cuán único o sustituible es aquél y de la clase de que se trate.
Con base en los elementos citados, el artículo 40.2 adopta un "test de competencia" y la regla de la razón"("rule of reason") para evaluar los afectos de una práctica en un caso en particular." [01]
Já se observa, nos ensinamentos de Corrêa, a importante ideia da substitutividade, que será detalhada adiante.
Dessa forma, é evidente a tendência mundial de se proteger o mercado consumidor contra práticas abusivas dos detentores de propriedade intelectual. É justamente neste contexto que se encontra o Brasil, já apresentando, inclusive, uma legislação pertinente à atual necessidade de gestão compartilhada da propriedade intelectual com as diretrizes do direito da concorrência. Não há qualquer conflito normativo entre as garantias contidas na Lei 8.884/94, que dispõe sobre as regras de proteção à concorrência, e aquelas contidas na Lei 9.279/96, que regula direitos e obrigações relativas à propriedade intelectual.
Exclusividade que não é Monopólio
Como já mencionado anteriormente, há entre os dois campos do direito em estudo uma aparente tensão de caráter prático. Ao mesmo tempo em que há o incentivo estatal à exclusividade temporária ao reconhecer direitos de propriedade intelectual, há também um evidente fomento à concorrência, coibindo-se situações de monopólio, que são, de forma geral, vistas como prejudiciais ao mercado.
No entanto, ao contrário do que muitos afirmam, a exclusividade gerada pela propriedade intelectual não cria um monopólio sob a perspectiva econômica, na medida em que é possível que diversos direitos de propriedade intelectual concorram entre si. É inegável, entretanto, que a exclusividade em questão restringe a concorrência no momento imediato (concorrência estática), por vezes criando monopólios temporários. De toda forma, inquestionável também o fato de que, em longo prazo, a proteção fomenta a concorrência numa perspectiva dinâmica.
A patente, por exemplo, por ser um direito de propriedade intelectual, tem o condão de garantir ao titular do direito o poder de excluir terceiros de explorar o objeto durante sua vigência, o que limita, temporalmente, o número de concorrentes a fazerem uso daquela invenção/modelo de utilidade. Portanto, ela inibe a concorrência estática, podendo até mesmo criar uma situação desfavorável ao consumidor, mesmo que momentânea.
Por outro lado, na medida em que estimula investimentos em pesquisa para a criação de novas tecnologias, a patente torna-se um instrumento fundamental para fomentar a concorrência dinâmica. Essas novas tecnologias concorrerão com as anteriores e, se mais eficientes, irão, naturalmente, as substituir. Daí porque dizer que, não obstante os direitos de propriedade intelectual inibam a concorrência estática, funcionam como propulsores da concorrência dinâmica.
Percebe-se, portanto, que, da mesma forma que a legislação de defesa da concorrência busca a promoção da eficiência econômica, também o faz o regramento normativo referente à propriedade intelectual, ainda que por meios complementares e aparentemente antagônicos.
Bem-Estar Social como Objetivo Mútuo
A eficiência econômica que os dois campos do direito em estudo proporcionam é responsável para alcançar-se o fim último da teoria moderna da economia, qual seja, o bem-estar social. Explica-se: o fato de o titular de um direito de propriedade intelectual poder impedir que terceiros explorem o bem protegido é de fundamental importância para a inovação tecnológica, que, em última análise, traz benefícios incontestes para o mercado consumidor.
Se tal prerrogativa não fosse concedida, qualquer pessoa poderia livremente produzir e explorar o objeto de invento (no caso da patente) sem ter incorrido nos inevitáveis custos com pesquisas e desenvolvimento do projeto, o que certamente reduziria os incentivos à inovação e criação. Um déficit em inovações tecnológicas seria motivo bastante para abreviar vantagens para o mercado consumidor, na medida em que não se veria redução de gastos provenientes de otimização da produtividade, que é um processo natural em um mercado que inova tecnologicamente.
Ademais, os efeitos da concorrência dinâmica em si são invariavelmente positivos para que se produza bem-estar social. Pelo fato de gerar certo poderio econômico frente aos concorrentes, a inovação tecnológica torna-se algo perseguido por todos, gerando-se uma concorrência em busca de métodos mais eficazes e econômicos. Esta concorrência, dita dinâmica, é responsável direta por uma queda de custos e melhora da qualidade dos produtos ofertados ao consumidor.
Os benefícios da competitividade e de uma política bem conduzida de proteção à propriedade intelectual foram atestados em um relatório emitido pela Federal Trade Comission (FTC) em 2003. O relatório entitulado "The Proper Balance of Competition and Patent Law and Policy", que traz inúmeras recomendações de como manter um adequando equilíbrio entre o sistema da concorrência e a política de patentes, é incisivo ao afirmar que uma análise conjunta entre as duas áreas do conhecimento é imprescindível para se chegar ao bem-estar social.
Competition can stimulate innovation. Competition among firms can spur the invention of new or better products or more efficient processes. Firms may race to be the first to market an innovative technology. Companies may invent lowercost manufacturing processes, thereby increasing their profits and enhancing their ability to compete. Competition can prompt firms to identify consumers’ unmet needs and develop new products or services to satisfy them. Patent policy also can stimulate innovation. The U.S. Constitution authorizes Congress "[t]o promote the Progress of Science and useful Arts, by securing for limited Times to . . . Inventors the exclusive Right to their respective . . . Discoveries.
Dessa forma, inconteste o fato de que a inovação estimulada pela concorrência e pela proteção à propriedade intelectual traz inúmeros benefícios ao sistema econômico, gerando, por conseguinte, melhoria ao bem-estar social.
A Necessária Gestão Compartilhada
Muito embora seja inegável o fato de a propriedade intelectual e a concorrência convergirem para um objetivo comum de melhora do bem-estar da coletividade, não se pode perder de vista a necessária razoabilidade quando da aplicação de restrições à utilização de uma inovação.
Uma medida razoável se faz cogente na medida em que a limitação à utilização da inovação por terceiros, que é inerente aos direitos de propriedade intelectual, muitas vezes pode transpor a medida do que seria suficiente para o resguardo dessa propriedade, servindo, a partir desse momento, como limitação abusiva da concorrência, punível, portanto, pelos ditames da Lei 8.884/94.
É nesse momento que surge a necessidade de uma análise conjunta dos Direitos de Propriedade Intelectual e o Direito da Concorrência. Como analisar, então, se há abuso de poder dominante (proveniente da exclusividade concedida pela propriedade intelectual) para fins de aplicação da legislação antitruste?
Embora haja posicionamentos contrários, a doutrina e os próprios precedentes do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) apontam no sentido de que a identificação de um abuso de posição dominante depende da inquirição dos efeitos líquidos da conduta tida como abusiva sobre o bem-estar social. Em outras palavras, a análise da licitude de uma determinada conduta passa pelo sopesamento de seus efeitos anticompetitivos (prejuízos) e de seus benefícios para a sociedade (ganhos). Dessa forma, caso os ganhos sejam equivalentes ou maiores do que os prejuízos, não se pode considerar a prática como ilícita para fins de aplicação da legislação antitruste.
Outrossim, para que se caracterize uma prática como abusiva, imprescindível a constatação de que o agente da prática detém poder de mercado, que nada mais é do que a capacidade de impor, de maneira lucrativa e duradoura, preços superiores aos competitivos, com redução da quantidade ofertada a um nível inferior à demanda do mercado.
Assim, as autoridade antitrustes, a fim de verificar a existência de poder de mercado, devem sempre perquirir se o direito de propriedade intelectual investigado apresenta substitutos próximos, seguindo a metodologia tradicional de análise antitruste. Como já mencionado na passagem acima transcrita de Carlos Corrêa, a análise da disponibilidade de substitutos no mercado correspondente é de fundamental importância para se identificar se há ou não poder de mercado de uma dada empresa. Tal análise há de ser feita caso a caso:
The availability of substitutes was an empirical question that could only be determined on a case-by-case basis. Further, even if the intellectual property right concerned generated market power, the ght holder''s behaviour might not necessarily constitute an abuse of a dominance. Therefore, under current standards the exercise of an intellectual property right as such was not restrained by competition law. [02]
Dessa forma, caberá ao aplicador do direito da concorrência, ao analisar um caso concreto, verificar os efeitos líquidos da conduta e se o agente desta conduta detém poder de mercado. Terá ele que identificar a linha tênue que divide a legítima proteção da invenção do uso abusivo dessa proteção. Destaca-se o seguinte trecho do Anexo 1 à Resolução CADE n. 20/99:
"A análise de condutas anticoncorrenciais exige exame criterioso dos efeitos das diferentes condutas sobre os mercados à luz dos arts 20 e 21 da Lei 8.884/94. As experiências nacional e internacional revelam a necessidade de se levar em conta o contexto específico em que cada prática ocorre e sua razoabilidade econômica. Assim, é preciso considerar não apenas os custos decorrentes do impacto, mas também o conjunto de eventuais benefícios dela decorrentes, de forma a apurar seus efeitos líquidos sobre o mercado e o consumidor."
Portanto, uma análise casual dos efeitos anticoncorrenciais de uma dada exclusividade no âmbito da propriedade intelectual é de suma importância para um adequado equilíbrio entre as duas áreas de conhecimento em análise. Observa-se que a doutrina é uníssona no sentido de que os efeitos da proteção à propriedade intelectual devem ser analisados sob a mesma ótica adotada para as demais contingências que afetam a concorrência, ou seja, deve-se verificar os efeitos líquidos da conduta antes de julgá-la ilícita.
Registre-se, mais uma vez, a importância reservada, pelo relatório da FTC, a um adequado equilíbrio entre as forças aqui tratadas:
Competition and patents are not inherently in conflict. Patent and antitrust law "are actually complementary, as both are aimed at encouraging innovation, industry, and competition."7 Patent law plays an important role in the property rights regime essential to a well-functioning competitive economy. For example, firms may compete to obtain the property rights that patents convey. Patents do not necessarily confer monopoly power on their holders,8 and most business conduct with respect to patents does not unreasonably restrain or serve to monopolize markets. Even when a patent does confer monopoly power, that alone does not create an antitrust violation.
Logo, a violação às regras antitruste não são verificáveis a priori, devendo haver uma análise casual, considerando sempre os reais efeitos anticompetitivos da conduta, bem como os benefícios gerados para a sociedade.
Conclusão
O direito da Concorrência e o direito da Propriedade Intelectual são mecanismos complementares para se alcançar o bem estar econômico e social. Existe, no entanto, uma infundada crença de tensão entre eles, na medida em que possuem objetivos aparentemente opostos. Enquanto ambos buscam criar incentivos para estimular inovação em um mercado competitivo, o desafio consiste em identificar políticas que possibilitem o sucesso de uma economia de mercado à medida que depende de produtos sob proteção.
A interface dos institutos se observa pelo importante papel que a inovação e a propriedade intelectual possuem numa economia de mercado e, por outro lado, a aplicação do direito da concorrência e suas políticas para a criação e exploração dos direitos de propriedade intelectual.
Uma análise conjunta dos institutos é medida necessária para alcançar-se o bem-estar social, sendo que é indubitável os benefícios, para a coletividade, proporcionados pela inovação tecnológica motivada por ambas as áreas do conhecimento.