Nanotecnologia e a aplicação do princípio da precaução
Um grande número de autores não distingue o princípio da prevenção do princípio e o da precaução, por vezes, referindo-se aos dois com o mesmo significado, por outras colocando o princípio da precaução como uma forma de expressão do princípio da prevenção, que o englobaria. Todavia, boa parte da doutrina vem entendendo que aplicação do princípio da prevenção implica na adoção de medidas antes da ocorrência do dano concreto, cuja origem e a possibilidade é conhecida e previsível, a fim de evitar o acontecimento de novos danos ou minorar seus efeitos. (CANOTILHO 1998, p. 43). Diferentemente, o princípio da precaução refere-se apenas as situações onde não existe um conhecimento dos riscos potenciais de danos de uma determinada atividade ou de um determinado produto ou espécie viva a ser produzido e lançado no meio ambiente. Os riscos são incertos ou não são totalmente claros quando abalizados pela ciência. [11]
O princípio da precaução (Vorzorgenprinzip), ou PPP inicia seu percurso na política ambiental da República Federal da Alemanha na década de 70, quando ainda não existiam estudos diferenciando prevenção de precaução. Uma década depois o princípio ingressou no cenário internacional no contexto a declaração ministerial adotada na segunda Conferência Internacional para a proteção do Mar do Norte (1987). A redação do princípio da precaução expresso no texto da Conferência supracitada indicou a necessidade da adoção de uma abordagem cautelar para proteger o mar do Norte dos efeitos potencialmente prejudiciais das substâncias mais perigosas. Esta abordagem segundo o texto legal internacional acima mencionado pode implicar a adoção de medidas para controlar as emissões dessas substâncias ainda antes de estar formalmente estabelecido um nexo de causalidade de natureza científica. [12]
O princípio da precaução assumiu uma abrangência global na Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento.
Segundo a declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992, em seu Princípio 15:
De modo a proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deve ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com as suas necessidades. Quando houver ameaça de danos sérios ou irreversíveis, a ausência de absoluta certeza científica não deve ser utilizada como razão para postergar medidas eficazes e economicamente viáveis par prevenir a degradação ambiental.
Desde então, o princípio da precaução tem sido aplicado em diversos tratados internacionais multilaterais.
Em 28 de Janeiro de 2000, na Conferência das Partes à Convenção sobre a Diversidade Biológica, foi adotado o Protocolo sobre Biossegurança relativo à transferência, manipulação e utilização seguras de organismos modificados vivos resultantes da biotecnologia moderna. O texto do protocolo traz como objetivo principal a precaução:
Artigo 1º: De acordo com a abordagem de precaução contida no Princípio 15 da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, o objetivo do presente Protocolo é de contribuir para assegurar um nível adequado de proteção no campo da transferência, da manipulação e do uso seguros dos organismos vivos modificados resultantes da biotecnologia moderna que possam ter efeitos adversos na conservação e no uso sustentável da diversidade biológica, levando em conta os riscos para a saúde humana, e enfocando especificamente os movimentos transfronteiriços.
Os textos normativos acima confirmam a essência do princípio da precaução apresentado por Antunes "A dúvida sobre a natureza nociva de uma substância não deve ser interpretada como se não houvesse risco."
Na dívida sobre os riscos de uma determinada ação para o meio ambiente, segundo Maria Alexandra de Souza Aragão (2002, p.19), podem existir em três circunstâncias que justificam a aplicação do princípio da precaução:
a) quando ainda não se verificaram quaisquer danos decorrentes de uma determinada atividade, mas se receia, apesar da falta de provas científicas, que possam vir a ocorrer;
b) quando havendo já danos provocados ao ambiente, não há provas científicas sobre qual a causa que está na origem dos danos;
c) ou ainda quando apesar de existirem danos provocados ao meio ambiente, não há provas científicas sobre o nexo de causalidade ente uma causa possível e os danos verificados.
O princípio da precaução é o princípio jurídico ambiental apto a lidar com situações nas quais o meio ambiente possa vir a sofrer graves impactos causados por novos produtos e tecnologias que ainda não possuam uma acumulação histórica de informações que assegurem, claramente, em relação ao conhecimento de um determinado tempo, quais as conseqüências que poderão advir de sua liberação no ambiente (Antunes, 2006, p.33.).
Diversas são as formas de definir o princípio da precaução, entretanto, algumas características são comuns na bibliografia especializada: a ação deve ser antecipada diante da incerteza científica e da suspeita de danos sérios e irreversíveis. Nesse sentido Artigas (2001, p.7) propõe o debate sobre uma possível equação do princípio da precaução: "Incerteza Científica + suspeita de dano = ação de precaução (preventiva e antecipatória). A incerteza é gerada pelo desconhecimento, pela indeterminação (inexistência de informação e de parâmetros para definir o potencial de dano). O risco de dano, por sua vez deve ser potencialmente sério (em alcance geográfico e/ou períodos de tempo), irreversível e/ou acumulativo. (Artigas, 2006, p.14)
O princípio da precaução é justificado pela necessidade de tomada de decisão antecipada, mesmo se opondo a forte pressão por crescimento econômico e pelo desenvolvimento da ciência e tecnologia com vistas ao mercado.
Como resumo das principais repercussões da aplicação do princípio da precaução na nanotecnologia podemos afirmar que a sua aplicação: a) como a própria expressão sugere deve a ser antecipatória; b) deve ser imposta quando existir incerteza científica de danos graves e irreversíveis; c) tal incerteza não inverte o ônus da prova, não exonera de responsabilidade os responsáveis atividades potencialmente danosas, pelo contrário transfere a estes a obrigações de comprovar o potencial de risco de seus produtos; c) por fim, o princípio da precaução impõe transparência e amplo acesso as informações com vistas a proporcionar a participação da sociedade na tomada de decisão.
Vale ressaltar, que a observância do princípio da precaução pelo Poder Público não tem por finalidade imobilizar o progresso da humanidade, da ciência, ou da economia. Conforme Machado (2003, p.56) "não se trata da precaução que tudo impede ou que em tudo vê catástrofe ou males. O princípio da precaução visa à durabilidade da sadia qualidade de vida das gerações humanas e à continuidade da natureza existente no planeta".
O princípio da precaução é essencialmente voltado para o futuro, seja próximo ou longínquo, e amplia a aplicação de dois conceitos conhecido pelo sistema jurídico: a prudência e a responsabilidade.
A prudência diante da incerteza pode ser invocada como argumento para evitar possíveis danos irreversíveis projetados abstratamente, mesmo sem uma possível comparação com eventos já ocorridos, ou mesmo diante da ausência de parâmetros para demonstrar cientificamente a amplitude dos danos possíveis e as relações de causa e efeito. Isso para o direito representa uma mudança de paradigma, pois o principio da precaução pode ser aplicado quando não existe prova do dano possível, mas ao mesmo não exista prova contrária. Nesses casos, para Aragão (2002, p.19) podemos falar de uma espécie de "in dúbio pro ambiente", ou como observa Machado "em dúbio pró sanitas et natura" (Machado, 1994, p.37).
A responsabilidade que fundamenta a aplicação do principio da precaução está voltada para uma amplitude temporal até então desconsiderada pelo direito, os direitos das gerações futuras vinculados aos deveres da geração presente. Essa nova arquitetura dos valores do Direito pode ser observada no Princípio da equidade intergeracional defendido por Edith Brow Weiss.
A eqüidade intergeracional apresentada como um dos axiomas do desenvolvimento sustentável e do Direito Ambiental surge num contexto de justiça entre as gerações, onde bens que integram o meio ambiente devem, satisfazer as necessidade comuns da humanidade, considerando a totalidade dos habitantes da presente geração (relação intratemporal) respeitando o direito ao acesso da futuras gerações e reconhecendo o legado das gerações anteriores (relação intertemporal). (1999. p. 54-55)
No Brasil, o direito ao direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, essencial à sadia qualidade de vida é reconhecido pelo artigo 225 da Constituição Federal de 1988.
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
O reconhecimento o direito de viver num meio ambiente ecologicamente equilibrado parte do entendimento de que este é uma extensão do direito à vida, o direito à sadia qualidade de vida, um dos requisitos indispensáveis a existência digna do ser humano. Segundo Derani (1997. p. 255). a "existência digna, em termos de meio ambiente, é aquela obtida quando os fatores ambientais contribuem para o bem-estar físico e psíquico do ser humano."
O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado está explicito na constituição federal de 1988:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Tal direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado impõe ao poder público, conforme a leitura dos incisos II, IV e V [13] do artigo supracitado, uma série de obrigações quanto à avaliação e fiscalização de processos e produtos que possam compor riscos ao ambiente e ao seres humanos.
Entende-se que o princípio da precaução traz consigo profunda relação com o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, de origem constitucional por força do artigo 1º, III da Constituição Federal Brasileira de 1988.
A análise dos impactos ambientais da nanotecnologia encontram-se em uma "zona cinzenta" de indefinição, não se sabe e não existe conhecimento científico suficiente para afirmar qual o risco, quais os impactos. Levando em conta o aspecto da preocupação com os destinatários finais da pesquisa nanotecnológica fica evidente que a liberação de produtos que ocasionem possam ocasionar problemas à saúde humana deve ser analizada sob o prisma do princípio da precaução como uma forma de proteção da dignidade da pessoa humana enquanto princípio constitucional fundamental.
A definição do conteúdo e critérios de aplicação do princípio da precaução gera polêmica na sociedade porque interfere diretamente nos modos de produção de bens e serviços que compõem o mercado global. O debate divide opiniões. De um lado, diversos estudiosos do tema, entre eles operadores do direito e integrantes de organizações da sociedade civil organizadas militam para a realização desse princípio como um "mega princípio" do Direito Ambiental, que não deve esperar mais para ser aplicado. De outro, representantes dos mais diversos setores econômicos buscam afastar a aplicação estrita do princípio e diminuir ao máximo sua efetividade.
Segundo Ulrich Beck (1996, p.202) vivemos uma Modernização Reflexiva num contexto de passagem da sociedade industrial para uma emergente sociedade de risco, pois os perigos da sociedade industrial tornam-se tema preponderantes nos debates e conflitos públicos, políticos e privados.
Contudo essa passagem é incompleta, pois no processo de Modernização Reflexiva, na sociedade de risco, em parte "la sociedad decide y actúa según el modelo de la vieja sociedad industrial, por outro lado las organizaciones de interés, el sistema de derecho, la política conviven com novos debates y conflictos" (BECK1996, p.202) decorrente da percepção dos riscos. A posição passiva da comunidade diante de riscos muitas vezes não percebidos, inclusive pela ciência da lugar a uma sociedade que passa a questionar e avaliar as mudanças e os efeitos trazidos pelas inovações da tecno-ciência. A sociedade torna-se autocrítica quando ocorre a passagem da crítica apenas refletida entre pequenos grupos para fazer parte das discussões no nível do senso comum. 1999, p.79) A reflexividade, que caracteriza a sociedade de risco, decorre justamente do conhecimento da sociedade sobre os seus aspectos estruturais, os riscos e os conflitos que possui. Não é novidade que quanto maior o conhecimento a sociedade desenvolve sobre o meio ambiente e sobre si mesma maior a chance de identificação de novos riscos. No entanto, surgem situações que o desconhecimento sobre determinado fato ou tecnologia pode levar as pessoas a adotarem posições extremadas. Muitos entendem que a resistência aos organismos geneticamente modificados é fruto do desconhecimento da população sobre essa nova tecnologia.
Por outro lado, não se justifica que a sociedade opte por agir de forma negligente diante dos riscos, esperando além da comprovação científica da real existência e extensão de um risco e de quais as suas possíveis conseqüências.
O conceito de risco segundo Beck (1999, p.135) se caracteriza um estágio peculiar e intermediário entre segurança e destruição. O como percebido na sociedade atual o risco vem para preencher o espaço que existe entre a ilusão de certeza trazida pela ciência e o cenário apocalíptico apresentado diante do desconhecido. A segurança e a certeza herdadas das promessas da modernidade são confrontadas como uma série de situações de incerteza e insegurança trazidas pelas diversas situações de risco ecológico, econômico e social. A tradicional postura de aversão aos perigos das sociedade pré-industriais, é substituída pela necessidade de correr riscos para gerar desenvolvimento econômico da modernidade e pela necessidade de conhecer, refletir e controlar tais riscos da modernidade reflexiva.
Na sociedade atual o conceito de risco inverte a relação entre o passado, presente e futuro. (1999, p.137). Conforme Beck (1999, p.137) o passado perde seu poder para determinar o presente. O seu lugar como fundamento da ação do presente com base na análise das causas e conseqüências anteriores como explicação das causas da experiência atual , agora substituído pela reflexão sobre futuro, que se trata de algo não existente, construído e fictício. A sociedade passa a discutir e argumentar sobre fatos sem precedentes históricos, algo que não ocorreu, mas que pode vir a acontecer caso não seja alterada a direção das ações no presente.
O princípio da precaução no Direito Ambiental reflete essa necessidade. Muitos serão os casos em que a incerteza quanto ao futuro não podem ser respondidas pelo precedente, por experiências anteriores ou com normas legais que refletem a reação da sociedade diante de fatos que geraram a necessidade de regulação.
Mesmo propondo um alteração da racionalidade jurídica para a projeção de danos futuros, como o poderá o Direito decidir segundo os riscos, se na atual sociedade os riscos observados apenas pelo aspecto técnico tendem a tomar dimensão como risco econômico, risco político, risco cultural...? Os riscos são difusos na dimensão temporal e especial não apenas para a saúde da população e para o meio ambiente, mas trazem conseqüências sistêmicas e imprevisíveis na economia local e global, no comércio mundial, nas relações políticas também observadas nos âmbitos local e global.
Os riscos podem gerar decisões apropriadas na proteção do meio ambiente, bem como podem ser utilizados como retórica para ações de proteção de marcado, imposição de barreiras no comércio internacional. A própria utilização do princípio da precaução pelo poder público, ou mesmo a sua omissão geram outros riscos, pois decorrem da ação humana e não trazem certeza quanto a seus resultados.
Nesse sentido, o princípio da precaução passa também pelo exame de sua legitimidade. As políticas ambientais não dependem apenas de decisões pautadas em dados ou alternativas propostas pela ciência. A gestão do meio ambiente passa necessariamente por decisões políticas. O Direito serve para equilibrar interesses, para afirmar limites da atuação do Estado e dos atores econômicos. Serve para fundamentar a resolução de conflitos ambientais com base em princípios e normas que estruturam o Estado democrático de Direito. Tais políticas ambientais, estruturadas por normas, devem estar pautadas, interesse geral da sociedade, na transparência e publicidade dos atos do poder público e possibilitar a participação e o comprometimento dos múltiplos atores sociais.
A discussão sobre o princípio da precaução deve nortear qualquer tentativa de elaboração de normas específicas ou genéricas sobre a nanotecnologia. É um princípio importante para inverter a lógica atual, que segundo (Beck 1999, p.60) não obedece à progressão, primeiro, análise de riscos em laboratório e depois aplicação. Os testes, em geral, vêm após a aplicação e a produção precede a pesquisa dos riscos.
Não há respostas fáceis para as questões jurídicas e éticas que envolvem a nanotecnologia. A sociedade nunca terá todas as informações que ela necessita para tomar decisões sem alguma incerteza (Lin, 2007, p.408). Todavia, conforme o princípio da precaução também não devem ser postergados os esforços no sentido de estabelecer estudos sobre os impactos da nanotecnologia, para ter um melhor resultado no desenvolvimento das informações sobre o potencial de risco desejadas para a tomada de decisão. Além disso, deve-se fazer com que as informações decorrentes do estudo dos riscos tenham ampla divulgação e estejam disponíveis para a sociedade, para que os atores envolvidos diretamente nas decisões sobre a limitação da nanotecnologia e a sociedade civil em geral tenham as melhores condições para responder aos desafios imprevistos que impõem essa nova onda de desenvolvimento tecnológico.