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O novo estupro na ótica constitucional

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15/12/2009 às 00:00
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5.A ação Penal no crime de estupro

A nova Lei, em substituição à ação penal privada (art. 225, caput, CP), instituiu como regra a ação penal pública condicionada à representação. A ação será pública incondicionada apenas se a vítima for menor de 18 anos ou pessoa vulnerável (art. 225, parágrafo único, CP).

De plano, verifica-se que a regra geral pouco mudou. Tanto a norma anterior quanto a atual exigem providências da vítima para a investigação e o processo. Antes, mediante queixa; agora, representação. A inércia das vítimas maiores de 18 anos e não "vulneráveis" redundará na impunidade dos crimes.

Essa disposição é constitucional? Vejamos.

5.1.A ação penal em sua origem: a discriminação do feminino

A ação penal privada é própria dos crimes considerados insignificantes ou daqueles em que a publicidade ou o escândalo (strepitus judicii) possam afetar a honra das pessoas e a dignidade das famílias, causando mal maior que a impunidade do próprio criminoso (TOURINHO FILHO, 1997)

O legislador de 1940 instituiu a ação penal privada como regra nos chamados crimes contra os costumes, de forma que somente as vítimas podiam denunciar o criminoso e pedir sua punição. Segundo juristas, a "boa intenção" do legislador era a de proteger a intimidade das vítimas, para evitar escândalos.

Essa opção era coerente com o sistema então implantado. A violência sexual era considerada ofensa aos costumes, e não à pessoa ou à sua dignidade. A Lei visava preservar a tradição, os costumes sexuais, independente do grau de violência e dos danos sofridos pelas vítimas.

Nessa sociedade, ao marido era permitido estuprar suas esposas, em nome do debito conjugal. Se fosse estuprada por terceiro, a mulher sequer podia oferecer queixa sem a autorização marital, porque era considerada INCAPAZ, conforme art. 35 do Código de Processo Penal (só revogado em 1997!). Portanto, a ação penal privada não visava proteger a intimidade das vítimas, mas a de seus familiares, principalmente maridos, pais, etc.

Por isso, o estupro praticado por terceiro era considerado uma desonra, uma vergonha, mas à vítima e a seus familiares e não ao estuprador. Este não tinha que se envergonhar de seu ato, pois sempre se reconheceu ao masculino o direito de desejar violentamente uma mulher, principalmente porque "com certeza, ela deu motivos". Era conhecido o bordão: "mulher direita não é estuprada". A promotora de Justiça Danielle Martins SILVA (2009) esclarece:

As relações de gênero são, primordialmente, relações de poder, sendo certo que na seara da sexualidade feminina se manifesta de forma mais contundente o controle e o poder masculino.

O estupro reflete, de forma violenta, uma face deste poder: a vítima não dispõe de seu próprio corpo, porquanto um de seus papéis na divisão sexual de trabalho constituída sob a lógica androcentrista, que é assimilada e reproduzida pelo senso comum – inclusive do estuprador –, é o de disponibilizar seu corpo para a satisfação sexual do homem.

Por isso a tradição patriarcal, durante muito tempo, consentiu em um certo padrão de violência contra as mulheres. Ao homem era designado o papel "ativo" na relação social (ocupação dos espaços públicos de poder) e sexual, ao tempo em que à mulher era designada a ocupação do espaço privado, doméstico, sendo certo que a sexualidade feminina restringia-se à passividade e reprodução.

5.1.1. Estupra, mas casa!

Como se não bastasse, a norma penal incentivava o estuprador a se casar com a vítima, livrando-a da solteirice. Isso porque a "desonrada", que oficialmente tinha perdido a virgindade com o estupro, não conseguiria arrumar um casamento.

Assim, para "o bem" da vítima (de novo a "boa intenção" do legislador), seu casamento com o agressor extinguia a punibilidade, nos termos do inc. VII do art. 107 do Código Penal. Era o sistema da "escravidão sexual", como nomeou com propriedade a ministra Ellen Gracie (vide item 3).

Essa norma, só revogada em 2005, complementava o conselho de Paulo Maluf (estupra, mas não mata!), revigorando-o: estupra, mas casa!

5.1.2. Um peso, duas medidas

Pelo Código Penal de 1940, o estupro é o único crime cometido com violência ou grave ameaça a depender de autorização das vítimas.

De fato, são de ação pública incondicionada os crimes de dano qualificado pela violência, grave ameaça ou com emprego de substância inflamável ou explosiva (art. 163, parágrafo único, incs. I e II, CP); contra o patrimônio, praticado com violência ou grave ameaça (art. art. 183, inc. I, CP) ou, ainda, de exercício arbitrário das próprias razões, com emprego de violência (art. 345, parágrafo único, CP). Em nenhum destes casos as vítimas podem renunciar ao processo (LIMA, 2009).

Curioso que, apesar do espírito liberal-individualista do direito penal brasileiro, em que o patrimônio é mais importante do que a pessoa, repudiou-se a violência ou grave ameaça.

Em sentido contrário, aceitou o legislador a prática de violência e grave ameaça, desde que direcionada ao estupro.

Assim, se o sujeito danificasse o veículo de uma pessoa, seria processado obrigatoriamente pelo Ministério Público. Se, ao invés de amassar o carro, estuprasse sua dona, ficaria impune, caso a vítima não encontrasse forças para acioná-lo. Tudo a pretexto de proteger a intimidade da vítima(?!), evitando escândalos.

5.2. A reação do STF em nome da proteção eficiente

5.2.1. A Súmula 608 e a dignidade sexual

Inconformado com o sistema omisso do Código Penal, o Supremo Tribunal Federal editou, em 17/10/1984, a Súmula 608, forjada para estabelecer investigação e processo obrigatório quando o estupro for praticado com violência real. Confira-se:

No crime de estupro, praticado mediante violência real, a ação penal é pública incondicionada.

Interpretou-se que o crime de estupro (de ação privada) é constituído por elementos ou circunstâncias descritas como crimes autônomos, que se processam mediante ação pública. Estes alteram a natureza jurídica da ação penal, tornando-a pública incondicionada, em razão da regra dos crimes complexos (art. 101 do Código Penal).

De fato, compõem o crime de estupro, por exemplo, o constrangimento ilegal, a ameaça, a lesão corporal ou as vias de fato, que são infrações penais autônomas (previstas, respectivamente, nos arts. 146, 147, 129 do Código Penal e art. 21 da Lei de Contravenções Penais) e de ação penal pública incondicionada (com exceção do crime de ameaça, que depende de representação).

Essa interpretação sofreu duras críticas, pois muitos alegavam que o crime de estupro não é, tecnicamente, complexo e, portanto, depende de ação penal privada (Jesus, 1998).

Sem entrar no mérito dessa discussão, temos que o STF buscou (forçou?) uma saída legal para atingir objetivo flagrantemente constitucional, qual seja, a dignidade sexual. Essa opção ficou clara nas palavras do ministro Cunha Peixoto, num dos julgados que motivaram a edição da Súmula:

A natureza do delito em questão coloca em primeiro plano o interesse social, mesmo porque a violência é um mal que afeta a sociedade como um todo (STF, RE 92102, julgado em 27/6/1980).

Os acontecimentos posteriores reforçaram essa interpretação constitucional, de forma a se aplicar, implicitamente, a proibição de proteção deficiente. Vejamos.

5.2.2. Estupro com violência física (lesão "leve" ou vias de fato)

A Súmula foi aplicada notadamente aos casos de estupro praticado com agressão física, pois esta sempre implicará lesão corporal "leve" ou vias de fato. Ambas as infrações são de ação pública incondicionada, portanto o crime de estupro também deve sê-lo, em razão da Súmula 608. Confira-se:

TJSP "Tratando-se de crime sexual praticado mediante violência real, causadora de vias de fato ou de lesões corporais de natureza leve, a ação penal é pública incondicionada, legitimando o Ministério Público a promovê-la." [05]

Mais recentemente, o próprio STF interpretou que a Súmula 608 abrange qualquer violência física, não apenas a lesão corporal "leve":

STF - HABEAS-CORPUS. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. ILEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO. ESTUPRO. TENTATIVA. VIOLÊNCIA REAL CARACTERIZADA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA 608-STF. 1. Estupro. Tentativa. Caracteriza-se a violência real não apenas nas situações em que se verificam lesões corporais, mas sempre que é empregada força física contra a vítima, cerceando-lhe a liberdade de agir, segundo a sua vontade. 2. Demonstrado o uso de força física para contrapor-se à resistência da vítima, resta evidenciado o emprego de violência real. Hipótese de ação pública incondicionada. Súmula 608-STF. Atuação legítima do Parquet na condição de dominus litis. Ordem indeferida. [06]

Por outro lado, alguns alegavam que a Súmula só era apropriada aos casos de violência física (lesão corporal ou vias de fato), excluindo-se a violência moral (grave ameaça). Porém, a jurisprudência deu uma guinada nesse entendimento. Definitivamente, a questão migrou da esfera legal para a constitucional. Vejamos.

5.2.3. Estupro com violência moral (grave ameaça)

É patente que a violência real, como previsto na Súmula, engloba tanto a violência física quanto a moral. Ora, violência real é apenas o oposto de violência ficta ou presumida, antigamente prevista no art. 224 do Código Penal (vítima menor de 14 anos, alienada ou impossibilitada de oferecer resistência). A Súmula, portanto, abarcou o estupro cometido com grave ameaça.

Porém, muitos julgados afastaram a Súmula no estupro cometido com grave ameaça. Julgavam que o crime de ameaça se procede mediante representação. Assim, quando esta integrasse o núcleo do estupro, não teria sentido dispensar a autorização da vítima. Quando muito, dever-se-ia exigir representação, para se aplicar a regra dos crimes complexos.

Apesar disso, boa parte de nossa jurisprudência aplicou a Súmula, ora desconsiderando a regra dos crimes complexos, ora "emplacando" o constrangimento, núcleo do tipo de estupro, como responsável pela incondicionalidade. Confira-se:

TJSP

"O Ministério Público é parte legítima para promover a ação penal no crime de estupro, tratando-se de atentado sexual concomitante ou subsequente ao roubo, pois, paralisadas as vítimas pelo medo e impossibilidade de qualquer resistência, caracteriza-se o crime cometido mediante violência, cuja persecução se faz por ação pública incondicionada. Por outro lado, o crime de constrangimento ilegal, que é de ação pública, compõe, com fato constitutivo, o crime complexo de estupro, fazendo prevalecer sobre a regra excepcional do caput do art. 225 do CP a regra geral do art. 101, que determina ser sempre pública a ação penal quando entre na composição de um crime complexo fato que, isoladamente, constitui crime de ação pública." [07]

TJRJ

"O Ministério Público tem legitimidade para oferecer denúncia pela prática de estupro, por ser crime complexo, de ação penal pública incondicionada (inclui em seu bojo o constrangimento ilegal, caracterizado pelo fim da posse sexual)." [08]

TJSP

"No plano dos crimes sexuais, o procedimento súbito do agente, que surpreende a vítima e impede sua defesa, configura violência real. E, pela presença desta, sem dúvida, de ação penal pública incondicionada o caso, conforme a Súmula 608 do STF, subsidiariamente aplicável, em nome de analogia, por envolver matéria de natureza processual." [09]

Nesse trilhar, o STF consagrou a obrigatoriedade da persecução penal em nosso sistema constitucional, mesmo contra disposição expressa do Código Penal. Vejamos:

STF

- Habeas Corpus. Rapto seguido de estupro. 2. Absolvição em primeiro grau, com base no art. 386, VI, do CPP. 3. Com a devolução integral ao segundo grau da espécie, em face do recurso amplo, e não parcial, do MP, nada impede o acolhimento dos termos da denúncia, pelos crimes de rapto e estupro, com análise da prova dos autos. 4. Configurada a violência real, inclusive pelo uso de arma de fogo, torna-se, no caso, inequívoca a legitimidade ativa do MP para proceder tal como ocorreu, sendo certo, ainda, que a vítima representou, perante a autoridade policial. Habeas Corpus indeferido. [10]

5.2.4. Reviravolta constitucional

Os julgados do STF que motivaram a Súmula 608, inobstante visarem à dignidade sexual, buscaram uma análise estritamente legal da questão, em razão da teoria dos crimes complexos.

Com a aplicação da Súmula ao estupro praticado mediante grave ameaça, caiu por terra a interpretação legal, como vimos no item anterior.

No entanto, a edição da Lei 9.099/95 deu novo fôlego aos que não concordavam com a Súmula 608.

É que o art. 88 daquela Lei passou a exigir representação para o crime de lesão corporal leve. Por analogia, a contravenção de vias de fato também passou a ser de ação penal condicionada. Portanto, o crime de estupro praticado mediante violência física deveria seguir o destino de seus crimes constituintes. Pelas regras do crime complexo, a ação penal voltaria a depender de autorização das vítimas (representação ou queixa). Destruiu-se a Súmula 608... Será?

Chamado a dirimir a questão, o STF não se conformou com esse entendimento. Ao julgar o HC 82.206, manteve integralmente a Súmula 608. Confira-se:

O advento da Lei 9.099/95 não alterou a Súmula STF 608 que continua em vigor. O estupro com violência real é processado em ação pública incondicionada. Não importa se a violência é de natureza leve ou grave. 2. O Ministério Público ofereceu a denúncia após a representação da vítima. Não há que se falar em retratação tácita da representação. 3. Nem é necessária representação específica para o delito de estupro, quando se trata de delito de estupro com violência real. 4. No caso, inexiste decadência do direito de queixa por não se tratar de ação penal privada. 5. A jurisprudência do Tribunal pacificou-se no entendimento de que os crimes de estupro e atentado violento ao pudor caracterizam-se como hediondos. Precedentes. Inviável a progressão do regime. HABEAS conhecido e indeferido. [11]

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Dessa forma, ficou claro que não é a complexidade do crime de estupro que gera a obrigatoriedade de punição, mas a própria gravidade do fato, sua repugnância social e sua hediondez. Para garantir a dignidade sexual, o STF optou por interpretação francamente constitucional. Na prática, revogou tanto o Código Penal (na parte em que previa ação privada) quanto o art. 88 da Lei 9099/95. Foram ambos considerados, implicitamente, inconstitucionais. No ponto, aproximou-se de um dos julgados históricos que motivaram a Súmula, verbis:

A natureza do delito em questão coloca em primeiro plano o interesse social, mesmo porque a violência é um mal que afeta a sociedade como um todo (Voto do ministro Cunha Peixoto no RE 92102, julgado em 27/6/1980).

Acatando essa orientação, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) passou a reconhecer que o estupro com grave ameaça é de ação pública incondicionada:

STJ

- Habeas corpus. Estupro. Violência real. Conformar-se, em ordem a legitimar o uso da ação penal pública (STF, súmula 608), quando a liberdade de locomoção da vítima é tolhida em virtude do emprego de arma de fogo, mesmo que não ocorra a deflagração de tiros ou disparos. Ordem denegada. [12]

STJ - PENAL. RECURSO ESPECIAL. ESTUPRO. VIOLÊNCIA REAL. AÇÃO PENAL. SÚMULA Nº 608-STF. I - Na linha de precedentes desta Corte, a expressão violência real alcança a denominada violência moral (no caso, grave ameaça com emprego de arma), estando, aí, tão só excluída a violência presumida. Além do mais, o art. 101 do CP, na dicção predominante, alcança o estupro como crime complexo em sentido amplo. II - Legitimidade do Parquet para a propositura da ação penal. Recurso provido. [13]

Trilhando esse caminho, a jurisprudência mais autorizada pacificou o entendimento constitucional:

TJDF

"Apelação criminal. Estupro tentado. Grave ameaça. Ação penal. Regime prisional. 1. A tentativa de estupro mediante ameaça exercida com uma faca é crime complexo em sentido amplo, integrado por fato (constrangimento ilegal) que, de per si, constitui crime sujeito a ação penal pública incondicionada, o que atrai a incidência do CP 101 que prevalece sobre o CP 225, caput. 1.1. Consoante a jurisprudência do STJ, a expressão violência real (STF 608) abrange a física e a moral, excluída tão só a presumida." [14]

TJSC

"Ainda considerando que o crime de estupro e, em conseqüência, os de atentado violento ao pudor e o rapto violento, é crime complexo, no sentido amplo, aplicar-se-ia o art. 101 do CP, com fundamento não mais no art. 129, mas no art. 146 do mesmo Estatuto, que prevê o crime de constrangimento ilegal. Como os crimes contra os costumes referidos têm como elementos constitutivos o constrangimento ilegal, pois na verdade não passam de espécies mais graves do referido ilícito, devem ser eles apurados mediante ação penal pública incondicionada quando praticados com violência ou grave ameaça, bem como quando o agente reduziu, por qualquer meio, a capacidade de resistência da vítima. Parece-nos a solução mais adequada à situação criada com o advento da Lei nº 9.099/95, quando se aceita a aplicação do art. 101 do CP nas hipóteses de crime complexo em seu sentido mais amplo (Julio Fabbrinie Mirabete)." [15]

Definitivamente, a Constituição exige apuração obrigatória de todo crime de estupro!

5.3. A inconstitucionalidade do novo art. 225, caput, do Código Penal

A nova Lei renegou a antiga expressão crime contra os costumes e, bebendo nas águas constitucionais, o renomeou como ofensa à dignidade sexual.

Contraditoriamente, porém, estabeleceu que o estupro praticado contra maiores de 18 anos e pessoas não vulneráveis é de ação penal condicionada à representação. Assim, tentou-se restaurar o sistema implantado em 1940, para exigir a autorização das vítimas, desta feita, mediante representação.

O novo art. 225, caput, é flagrantemente inconstitucional, pois protege insuficientemente as vítimas, afastando-se da jurisprudência constitucional já consagrada no país, como vimos no item anterior.

Ora, o crime referido é hediondo, mesmo em sua forma simples, como previu a nova Lei (art. 1º, V, Lei 8072/90), reforçando sua reprovabilidade social. Não se concebe que crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia e, equiparados pela Constituição à tortura e ao terrorismo (art. 5º, XLIII), dependam de autorização das vítimas para punição.

Num país em que pessoas são violentadas apenas por usarem roupas curtas, o retrocesso legal privilegia a tendência de se culpar as vítimas, intimidando-as. Pretendem reforçar a (falsa)cumplicidade delas por consentir; se não consentiu, cedeu; se não, gostou. As justificativas são as mesmas utilizadas para o quase-estupro coletivo da estudante Geisy, na UNIBAN, em outubro/2009: "Ela provocou! Ela quis! Ela é perigosa!".

É fato que, se uma mulher é ameaçada de estupro por um homem armado, e resolve, racionalmente, ceder, a fim de preservar o bem maior, ou seja, a vida, sua atitude atuará contra ela perante o Direito Brasileiro (SAFFIOTI, 2008). A vítima do sexo masculino também sofrerá semelhante constrangimento, por ter sido "usado" como uma mulher. Nas palavras de Daniel WELZER-LANG:

É verdade que na socialização masculina, para ser um homem, é necessário não ser associado a uma mulher. O feminino se torna até o pólo de rejeição central, o inimigo interior que deve ser combatido sob pena de ser também assimilado a uma mulher e ser (mal) tratado como tal (...) É assim que na prisão um segmento particular de jovens homens, localizados ou designados como homossexuais (homens ditos afeminados, travestis...), homens que se recusam a lutar, ou também os que estupraram as mulheres, dominadas, são tratados como mulheres, violentados sexualmente pelos chefões do tráfico, roubados. Freqüentemente, eles são apenas colocados na posição da "empregada" e devem assumir o serviço daqueles que os controlam, particularmente o trabalho doméstico (limpeza da célula, da roupa...) e os serviços sexuais.

Nesse contexto, a velha retórica de que a representação garante a intimidade das vítimas não se coaduna com os novos tempos. Ora, estamos a tratar de bens jurídicos indisponíveis, de interesses de ordem pública superiores. Citamos as sempre ponderadas palavras do desembargador Mário Machado, ao declarar inconstitucional a anterior redação do art. 225, caput (previa a queixa):

Ora, o antigo atentado violento ao pudor com presunção de violência pela idade da vítima, atual estupro de vulnerável, tendo como ofendida criança ou adolescente, envolve sempre ataque repulsivo a bens jurídicos indisponíveis e de elevadíssimo valor social, não sendo possível, pelo menos a partir do advento da Constituição Federal de 1988, subordinar sua punibilidade à vontade da vítima ou de seus representantes legais. Eventual strepitus judicii, razão do legislador de 1940 para fundar a opção pela ação privada, não se pode sobrepor aos interesses de ordem pública superiores, eleitos pelos constituintes de 1988. [16]

De fato, vítima com vergonha é questão de gênero! É fruto da cultura machista que naturaliza o abuso sexual como uma necessidade masculina. A prestação de serviços sexuais a eles seria uma obrigação pelo parentesco (incesto), vínculo empregatício, profissão (prostituição) e até pelo casamento.

Ora, quem deve ter vergonha é o agressor, e por seu crime ser punido! Nosso sistema constitucional não se conforma com a vítima envergonhada, calada no seu canto, para o bel-prazer do estuprador, sorridente, saciado, pronto para continuar a satisfazer seus instintos aberrantes, com a mesma vítima (violência doméstica) ou com outras.

Não se protege a intimidade das vítimas deixando o agressor impune. Elas já foram violadas, abusadas, sua intimidade destruída durante os atos aberrantes! O Estado não garantiu sua privacidade e dignidade. Devolver o problema pra elas é diminuir a repugnância social a esses crimes e superproteger os estupradores.

O novo art. 225, caput, protege a intimidade, sim, mas apenas a do estuprador! É inconstitucional por proteger insuficientemente os direitos fundamentais do ser humano.

5.3.1. Estupro qualificado pela lesão grave ou morte

Para impedir a proteção insuficiente, a Procuradoria-Geral da República (PGR) busca no STF a inconstitucionalidade parcial do art. 225 (ADI 4301). Pede-se que o crime de estupro do qual resulte lesão grave ou morte se submeta a ação pena pública incondicionada.

É recomendável que a PGR adite o pedido para se declarar inconstitucional todo o caput do art. 225, independentemente da gravidade do resultado, nos termos da Súmula 608.

Com aditamento ou não, espera-se que o STF, seguindo sua tradição humanística, declare mais uma vez que o estupro, em qualquer de suas formas, é de ação penal pública incondicionada, conforme já sacramentado naquela Corte Constitucional.


6.Conclusão

Ante o exposto, conclui-se que:

1.O novo crime de estupro não alterou a solução jurídica anterior nas hipóteses de pluralidade de ações sexuais violentas contra a vítima no mesmo contexto fático. Entendimento contrário é inconstitucional, por ofensa ao princípio da proporcionalidade (proibição de proteção insuficiente).

2.A ação penal do novo crime de estupro é pública incondicionada, independentemente da idade ou vulnerabilidade das vítimas, nos termos da Sumula 608 do STF e da jurisprudência posterior, que acolheu, implicitamente, o princípio da proibição de proteção insuficiente. Dessa forma, o art. 225, caput, do CPP, é completamente inconstitucional.


Referências

BARBAGALO, Fernando Brandini. A nova figura do estupro. Brasília: Direito e Justiça, Correio Braziliense, 14/9/2009.

BARROS, Suzana de Toledo. O princípio da proporcionalidade e o controle de constitucionalidade das leis restritivas de direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2003, p. 50.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: Edições Almedina, 2003, p. 273.

FEITOZA, Denilson. Direito Processual Penal, Teoria, Crítica e Práxis. Niterói: Impetus, 2009, p. 135.

JESUS, Damásio E. de. Direito Penal, 3º volume, parte especial. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 146.

LIMA, Fausto Rodrigues de. A Renúncia das Vítimas e os Fatores de Risco à Violência Doméstica: da Construção à Aplicação do Art. 16 da Lei Maria da Penha. In: LIMA, Fausto Rodrigues de e SANTOS, Claudiene. Violência Doméstica – Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 83.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 320 e 323.

PIMENTEL, Sílvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou cortesia? Abordagem sociojurídica de gênero. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 22.

SAFFIOTI, Heleieth I.B. A ontogênese do gênero. In: STEVENS, Cristina Maria Teixeira e SWAIN, Tânia Navarro. A construção dos corpos – Perspectivas Feministas. Florianópolis: Ed. Mulheres, 2008, p. 162.

SILVA, Danielle Martins. A Vitimização Feminina no Crime de Estupro: o viés Sexual da Violência de Gênero. In: LIMA, Fausto Rodrigues de; SANTOS, Claudiene. Violência Doméstica – Vulnerabilidades e Desafios na Intervenção Criminal e Multidisciplinar. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 64.

SILVA JÚNIOR, Edison Miguel. Concurso material de estupros na Lei n.º 12.015/09. Disponível em www.jusnavigandi.com.br, acessado em novembro/2009.

STRECK, Lênio Luiz. O princípio da proibição de proteção deficiente (untermassverbot) e o cabimento de mandado de segurança em matéria criminal: superando o ideário liberal-individualista-clássico. Disponível em http://leniostreck.com.br/, acessado em 22/11/2009.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, volume 1. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 75.

WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ref/v9n2/8635.pdf, acessado em outubro/2009.


Notas

  1. PIMENTEL, Sílvia; SCHRITZMEYER, Ana Lúcia P.; PANDJIARJIAN, Valéria. Estupro: crime ou cortesia?
  2. TJDF, Acórdão: 385960, Julgamento: 24/08/2009, Órgão Julgador: Câmara Criminal Relator: RENATO SCUSSEL
  3. STF, RE 418376/MS, 9/2/2006, Rel. Marco Aurélio
  4. Apud FEITOZA, p. 137 a 139.
  5. TJSP, RT 727/466
  6. STF, HC 81848/PE, Relator Maurício Corrêa, 30/4/2002
  7. TJSP, RT 657/271, julgado 17/10/1989
  8. TJRJ, RT 604/423
  9. TJSP – AC – Rel. Dirceu de Mello – RT 662/263, 21/3/1990
  10. STF, HC 71016/RJ Relator: Min. NÉRI DA SILVEIRA j. 20/09/1994
  11. STF, HC 82206Rel. Nelson Jobim, 8/10/2002.
  12. STJ, HC 27383/PE, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, unânime, DJ. 25/08/2003
  13. STJ, RESP 479679/PR, Rel. Min. Felix Fischer, 5ª Turma, unânime, DJ. 15/09/2003
  14. TJDF, Acórdão: 291538, Julgamento: 29/11/2007, Relator: FERNANDO HABIBE
  15. TJSC, JCAT 79/688-9
  16. TJDF, Acórdão 373139, julgamento: 20/8/2009, Rel. Mário Machado
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Sobre o autor
Fausto Rodrigues de Lima

promotor de Justiça do Distrito Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fausto Rodrigues. O novo estupro na ótica constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2358, 15 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14020. Acesso em: 22 dez. 2024.

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