4. O dever legal do policial de impedir a fuga do preso
Os trabalhos realizados nas Cadeias Públicas e nas Penitenciárias, no âmbito interno, são realizados por servidores públicos do sistema prisional (agentes prisionais, diretores, médicos, dentistas, enfermeiros, psicólogos, vigilantes contratados junto a empresas de segurança privada).
Por sua vez, a segurança externa nas Cadeias e Penitenciárias estaduais é, geralmente, exercida por guarnições das Polícias Militares com a dupla função de impedir a fuga dos presos e neutralizar possíveis invasões externas, que objetivem resgatar condenados integrantes de organizações criminosas ou eliminar reclusos líderes de facções rivais.
Assim atuando, a Polícia Militar exerce sua competência de preservar a ordem pública, evitando que condenados perigosos se evadam e retornem ao convívio social, voltando a violentar a sociedade.
No exercício desse mister, o policial deve ter toda a estrutura necessária para garantir a segurança do estabelecimento e utilizar os meios legais, necessários e adequados para impedir a evasão/invasão.
Como o objetivo do presente estudo é a fuga do preso, focar-se-á somente esse tópico, deixando a questão das invasões para outro momento.
As ordens e as normas relativas ao policiamento preceituam que o policial deve evitar a fuga dos presos. E, para isso, utilizar-se de todos os meios possíveis.
Em Santa Catarina, a Diretriz de Procedimento Permanente nº. 020/CMDOG/89 estabelece os deveres do policial militar empregado no policiamento nas Cadeias Públicas e Penitenciárias. Entre esses deveres estão:
15) SÃO RESPONSABILIDADES DA GUARDA EXTERNA DE ESTABELECIMENTOS PENAIS:
a) Exercer completa vigilância e fiscalização para que presos não tentem fuga pelas janelas, muros ou outra qualquer rota de fuga;
[...]
17) DEVERES DOS POLICIAIS MILITARES COMPONENTES DA GUARDA:
a) Exercer completa vigilância e fiscalização para que os presos não tentem fuga; [...]
h) Como se vê, o componente da guarda não pode ficar inativo na ocorrência de fuga de preso;
i) Por dever funcional ele deve obstar a fuga de presos por todos os meios possíveis; (GRIFO NOSSO)
A referida Diretriz é norma administrativa pública que decorre de norma legal prevista no art. 144, § 5º, da Constituição da República (preservação da ordem pública), art. 107, I, "a", da Constituição do Estado de Santa Catarina (exercer a polícia ostensiva relacionada com a preservação da ordem e da segurança pública) e art. 2º, X, da Lei Estadual 6.217/83 (manter a segurança externa dos estabelecimentos penais do Estado).
Dessa forma, repita-se, é dever legal do policial impedir a fuga do preso. E quem age no cumprimento do dever não pratica ato ilícito, uma vez que a lei não contém contradições.
Para evitar a fuga do preso, o policial deverá usar de todos os meios necessários, como acionar os alarmes, conter os detentos, cercá-los, chamar reforços, usar a força necessária em caso de violência ou resistência e, em última hipótese, atirar nos fugitivos. Essa última medida, somente de modo subsidiário quando não houver outro meio não-letal.
5. Fuga na penitenciária: o policial pode atirar no preso que foge?
Como já se delimitou, não se cogita aqui da circunstância do policial atirar no preso que foge mediante violência à pessoa, pois, nesse caso, estará claramente evidenciada a legítima defesa própria ou de terceiros e o estrito cumprimento do dever legal, conforme o caso concreto e desde que executada nos limites legais.
A discussão ora tratada, cuida do condenado que se evade sem empregar violência alguma. Ele só foge. Afinal, poderia o policial atirar para impedir a fuga? O Estado tem esse direito?
Existem dois entendimentos.
A corrente que nega a legalidade do ato de atirar no preso que foge, defende que no Brasil não há pena de morte em tempos de paz, assim, o policial não pode matá-lo pela simples fuga; atirar seria desproporcional, pois o preso não estaria exercendo agressão alguma; deve-se buscar um meio não-letal para impedir a fuga e, em último caso, o policial deve deixar fugir e não atirar.
A respeito do tema, colhem-se decisões do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
Como a legislação brasileira proíbe a pena de morte, não existe, em consequência, a profissão de carrasco. Atirar numa pessoa em fuga, como ocorreu no caso em tela, contraria o conceito de estrito cumprimento do dever legal, não só porque o agente não cumpria nenhuma ordem superior, mas, principalmente, porque a medida utilizada pelo acusado foi excessiva, desnecessária, incompatível com a realidade daquele momento. (RJTJERGS 148/116)". (MIRABETE, 2005b, p. 229).
[...] No mérito, inquestionável e induvidosa a autoria do delito imputado ao apelante.Policial militar que, de serviço em estabelecimento penitenciário, faz uso de seu revólver para reduzir a resistência consistente na fuga de detento não age ao abrigo da excludente de ilicitude (estrito cumprimento do dever legal).
Sentença condenatória mantida, à unanimidade.
(TRIBUNAL MILITAR DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Criminal n° 3.516/03, Rel. Juiz Cel. Sergio Antonio Berni de Brum, j. em 17/03/2004).
Por outro lado, os que entendem ser legal a conduta do policial de atirar no preso que foge, defendem desde que não haja, no momento, outro meio de impedir a fuga do preso, pode o policial, após advertir o detento para não fugir e este não acatar a ordem, atirar no preso, estando amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal. O preso não tem o direito de fugir e o interesse da sociedade em ter garantida a sua segurança da ação de criminosos deve se sobrepor ao interesse do condenado em evadir-se. Essa é uma medida extrema, em defesa da sociedade, que só se aplica ultima ratio.
Nesse sentido, já decidiu o Egrégio Tribunal de Justiça do Paraná:
"Agem no estrito cumprimento do dever legal os soldados que, alertados pelo cabo de dia quanto à fuga de presos e não atendidos na ordem de que parassem, fazem disparos, porém um dos disparos atinge letalmente um dos fugitivos (RT 473/368)".
(Mirabete, 2005b, p. 227).
Reformando sentença condenatória, a Corte de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, em acórdão unânime, recentemente decidiu:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO – HOMICÍDIO CONSUMADO E HOMICÍDIO TENTADO – DESCLASSIFICAÇÃO PARA LESÃO CORPORAL SEGUIDA DE MORTE E LESÃO CORPORAL – PRETENDIDA ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – POLICIAIS MILITARES QUE ATIRARAM CONTRA DETENTOS EM FUGA – EXCESSO NÃO CONFIGURADO – EXCLUDENTE DE ILICITUDE – ABSOLVIÇÃO SUMÁRIA – RECURSOS PROVIDOS – UNÂNIME.
Age no estrito cumprimento de dever legal o policial que atira contra detento em fuga, valendo-se dos meios necessários, sem excesso, dele não se podendo exigir outra conduta, porquanto esse é o munus que o Estado lhe confere, autorizando-o, inclusive, a portar arma de fogo, devidamente municiada.
(TJDF. RSE n.° 1999.08.1.002582-2, Rel.: Des. LECIR MANOEL DA LUZ, j. em 08/09/2005).
No mesmo sentido:
Recurso de ofício. Absolvição sumária. Estrito cumprimento do dever legal.
A absolvição sumária aplicada ao policial militar que, para obstar fuga e na iminência de ser agredido, atira e mata, não deve ser cassada. Absolvição mantida.
(TJRO. Rec. de Oficio nº. 20000019990016790, Rel.: Des. Antonio Cândido, j. em 16/09/1999).
RESPONSABILIDADE CIVIL. MORTE DE PRESO QUE TENTAVA SE EVADIR. TEORIA DO RISCO ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DE DEVER LEGAL. CULPA DA VÍTIMA.
Circunstância em que apenado é morto por tiro desferido por autoridade policial quando buscava evadir-se de presídio. Dever do Estado em fazer cumprir sua função de promover a segurança de seus cidadãos. Suprime-se a relação de causa e efeito entre o agir e o dano pela culpa exclusiva da vítima. Legítimo exercício de dever legal do agente estatal que busca impedir a tentativa de fuga, atirando em apenado que já se evadia e ignora tiro de advertência. Apelo improvido. Decisão unânime."
(TJRS. Apelação Cível nº. 70003216835, Rel.: Des. Jorge Alberto Schreiner Pestana, j. em 01/08/2002).
Razão assiste a essa segunda corrente.
Desde que não exista outro meio de impedir a fuga do preso, age no estrito cumprimento do dever legal o policial que atira no preso que foge, para impedir a evasão. Seria totalmente incoerente atribuir ao policial a obrigação de fazer a segurança do estabelecimento penal e retirar os meios necessários para impedir eventuais evasões dos condenados. A lei atribuiria o dever e, ao mesmo tempo, retiraria a franquia que a sociedade lhe concede. Dar-se-ia a obrigação de evitar a doença, mas se retiraria a vacina.
Segundo a primeira corrente, a única coisa que os agentes estatais poderiam fazer para evitar as fugas seria "perseguir os fugitivos, detendo-os apenas com o desforço físico necessário à sua imobilização". Por tal entendimento, o agente da lei tem o dever legal de expor sua própria vida em detrimento do sacrifício da vida do fugitivo.
Evidente se mostra a incoerência: o policial que é o defensor da sociedade, pode morrer; o condenado não.
No Recurso em Sentido Estrito nº. 1999.08.1.002582-2, do TJDFT, acima citado, extrai-se, do corpo do Acórdão, parecer da Procuradoria de Justiça que dirime qualquer dúvida:
Tenho para mim que o estado brasileiro, em seus diversos níveis, comporta-se de forma confusa no enfrentamento de tal problema.
Isso porque a lei penal prevê que indivíduos que rompem o pacto social e praticam crimes sejam encarcerados, não só como punição, como também pela necessidade, e por questões de segurança, de manter-se afastados aqueles elementos considerados perigosos ao convívio social.
As discussões sobre a necessidade das penas de prisão têm se desenvolvido no sentido de que só devem ser mandados para os presídios aqueles indivíduos que representem perigo para a sociedade.
Todavia, e aí reside questão de rara complexidade, alguns seguimentos do pensamento jurídico, liberaris por excelência, entendem que os presidiários, independentemente de sua periculosidade, têm o direito de fugir e de, até mesmo, destruir o patrimônio público na busca da fuga, sem que isso constitua qualquer ilícito penal, quiçá administrativo.
Segundo esses, a única coisa que os agentes estatais poderiam fazer para evitar as fugas seria ‘perseguir os fugitivos, detendo-os apenas com o desforço físico necessário à sua imobilização’. Segundo tal entendimento, o agente da lei tem o dever legal de expor sua própria vida em detrimento do sacrifício da vida do fugitivo.
[...].
Entendem os partidários de tal corrente liberal, que não se pode, em tais casos, alegar as excludentes de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular de direito.
É certo que as excludentes de ilicitude do estrito cumprimento do dever legal e do exercício regular de direito, não constituem, evidentemente, nenhum alvará que permita os agentes públicos sacrificarem, indiscriminadamente, a vida daqueles que estão submetidos ao sistema prisional.
Todavia, não se pode aceitar o outro extremo, ou seja, de que aqueles que estão submetidos ao sistema prisional, por decisões judiciais, possam dele evadir-se sem que isto constitua ilícito penal e que estejam os agentes estatais impedidos de agir com o objetivo de fazer valer a vontade do estado, consubstanciada numa decisão judicial.
Como ensinou Nelson Hungria:
"Nenhum direito subjetivo individual, ainda que de caráter privatístico, pode gravitar fora da órbita do interesse social. Se o direito civil, por exemplo, disciplinando esta ou aquela facultas agendi, autoriza, para assegurar-lhe o pleno exercício, a prática de um fato que, em outras condições, constituiria crime, tem-se de entender que assim dispõe, não apenas por amor ao direito individual em si, mas também no interesse da ordem jurídica em geral.
Tal dispositivo, portanto, não pode deixar de repercutir sobre o direito penal. A explícita ressalva, como princípio genérico do direito penal, no sentido de que um fato definido in abstracto como crime passa a ser lícito quando represente o exercício de um direito ou o cumprimento de um dever legal, pode parecer uma super-fluidade; mas, não é assim. Para dirimir quaisquer dúvidas que acaso pudessem ser suscitadas, significa, uma advertência ao juiz, para que tenha em conta todas as regras de direito, mesmo extrapenais, que, no caso vertente, podem ter por efeito a excepcional legitimidade do fato incriminado.
Mais ainda se justifica essa ressalva expressa, quando sua fórmula sirva também para frisar que a licitude excepcional do fato está rigorosamente condicionada aos limites traçados ao exercício do direito ou ao cumprimento do dever legal. É o que faz o nosso Código, que, no art. 23, inciso III, somente reconhece a inexistência de crime quando o agente pratica o fato ‘em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito’." (HUNGRIA, 1958, p. 309).
Necessário salientar que se considerarmos crime a conduta do policial que atira no preso que foge, ficará o soldado entre a cruz e a espada, pois se não impedir a evasão, poderá vir a ser processado por crime de facilitação de fuga (art. 351, do CP), além de responder administrativamente sob os rigores do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, que não raras vezes se mostra mais severo que a legislação penal comum, recheada de benefícios advindos da política de direito penal mínimo. Sobre esse argumento, cabe citar trecho do acórdão da Apelação Criminal nº. 2001.01.1.046092-5, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, de relatoria do Desembargador Edson A. Smaniotto:
"Colocada nestes termos a questão, temos que os agentes públicos encarregados da guarda dos presídios possuem normas de caráter administrativo, em especial os militares, que lhes permitem, ou melhor, que lhes impõem, o uso de armas com o objetivo de evitar fugas daqueles que estão encarcerados por decisão do próprio estado. Portanto, estão presos por ordem legal de autoridade competente.
(...).
Nesta linha de raciocínio, não se pode admitir é que o estado aja de forma desleal com seus agentes, ou seja, o estado executivo, no caso a PMDF, que determina a seus agentes que atirem em presos fugitivos, sem que detenha controle sobre a conseqüência dos fatos, na medida em que a avaliação da conduta está submetida a outro ente estatal, no caso o Ministério Público e o julgamento ao Poder Judiciário.
Em suma, o soldado se vê entre a ‘cruz e a espada’, pois sua omissão (não atirar) será interpretada, no âmbito da PMDF, como desobediência, sujeita às sanções disciplinares cabíveis, nos estritos termos da obediência hierárquica devida e dos planos de segurança estabelecidos para os presídios, com sérias conseqüências para a carreira militar.
Há que se considerar, todavia, que a Polícia Militar, o Ministério Público e o Poder Judiciário são entes do Estado Brasileiro, não se podendo transferir ao elo mais fraco da corrente, no caso os soldados/réus, as responsabilidades e as conseqüências das divergências interpretativas dos textos legais.
O que se espera de tais entes estatais é um mínimo de entendimento que permita dar segurança à sociedade, que não quer ver presos fugindo, e aos agentes estatais encarregados da segurança dos presídios, que não querem responder a processos criminais, com sérios comprometimentos para suas carreiras e vida pessoal."
O policial que atira no preso que foge estará agindo em defesa da sociedade, que não pode ficar à mercê da violência cometida pelos criminosos.
Pelo princípio da supremacia do interesse público sobre o particular, a lei dá à Administração Pública os poderes de desapropriar, de requisitar, de intervir, de policiar, de punir, tendo em vista atender o interesse geral, que não pode ceder diante do interesse individual. Logo, a autoridade não pode renunciar ao exercício das competências que lhe são outorgadas por lei, não pode deixar de exercer o poder de polícia para coibir o exercício dos direitos individuais em conflito com o bem estar coletivo (MEIRELLES, 2007, p. 103). Cada vez que a autoridade pública se omite no exercício de seus poderes, é o interesse público que está sendo prejudicado (DI PIETRO, 2007, p. 61).
Portanto, a segurança pública, que é um direito social (art. 6º, da CRFB), do qual decorre o interesse coletivo da sociedade de permanecer segura, é superior ao interesse individual do preso em evadir-se, devendo o policial atirar para impedir a fuga do preso, caso não disponha de outro meio não-letal no momento.