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Publicidade enganosa: da relação de consumo da cerveja sem álcool

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Regulamentação

A regulamentação da publicidade é uma forma de intervenção do Estado na iniciativa privada. Como assentado, defronte a investimentos vultosos, torna-se presa fácil o consumidor desatento, sobretudo agindo sob o manto do principio da boa-fé, induzido a participar de uma relação de consumo pautada previamente no desequilíbrio entre os contraentes.

Dessa forma, é vulnerável o polo relativo ao consumidor e é nesse sentido que foi necessária a atuação do Direito com o fim de equilibrar esse tipo de relação. Todavia, o primeiro Código brasileiro originado para regulamentar a publicidade foi fruto do ativismo de profissionais liberais.

O Código Brasileiro de Auto-regulamentação Publicitária foi criado em 1978 como forma de reagir a intenção do Governo de censurar a publicidade. Foi escrito por profissionais da propaganda para garantir a liberdade de expressão e norteou como principio a responsabilidade perante o consumidor.

Apenas para informar, existe uma instituição que se vale da efetiva aplicação do Código referido, o CONAR (Conselho Nacional de Auto- regulamentação publicitária). É uma sociedade civil fundada em 1980 por agências, anunciantes e veículos de comunicação com atribuição de defender o Código Brasileiro de Auto-regulamentação Publicitária.

Estabelece no seu estatuto social os objetivos sociais da Sociedade, dentre os quais se destaca o inciso IV, do art. 5º, localizado no capítulo II (Dos objetivos sociais), que reza:

Divulgar os princípios e normas do Código Brasileiro de Auto- Regulamentação Publicitária, visando a esclarecer a opinião pública sobre a sua atuação regulamentadora de normas éticas aplicáveis à publicidade comercial, assim entendida como toda a atividade destinada a estimular o consumo de bens e serviços, bem com o promover instituições, conceitos e idéias.

No Brasil, o Estado interviu na publicidade para resguardar o interesse público. Assim, foi criado pela Lei 8.078/90 o Código de Defesa do Consumidor. Bittar (2003, IX) na apresentação de seu livro aduz que

Nos termos da determinação constitucional, a expedição do CDC responde a antiga exigência da economia de mercado, que se ressentia de instrumental adequado para contrabalancear os desequilíbrios entre as grandes concentrações empresariais e os consumidores em geral, na aquisição e na fruição de bens e de serviços para satisfação de necessidades humanas primárias.

Diga-se que foi um marco para o Direito no Brasil, tendo em conta o respaldo finalmente dado a pretensão de uma proteção ao consumidor. Dessa feita, guiou pelo equilíbrio entre as partes, a restrição a publicidade nociva, entre outros. Aliás, em relação à vulnerabilidade do consumidor frente às empresas, o art. 4º do CDC além de reconhecer sua posição mais fraca, impôs ao Estado a necessidade de proteger este sujeito de direitos. Com relação a este artigo, Benjamin (2009, p. 58) discorre com propriedade ao afirmar que

a igualdade procurada aqui é a material e não só a formal. Daí o papel preponderante da lei sobre a vontade das partes, que acaba por impor uma maior boa-fé nas relações de mercado (art. 4 o, III) e conduz o ordenamento jurídico a controlar mais efetivamente o equilíbrio da relação de consumo, como o princípio do art. 4 o, III, impõe.

Em relação à publicidade, o Código de Defesa do Consumidor não traz conceito explícito. No entanto, consoante às explanações de Pasqualotto (1997, p. 24):

Do ponto de vista das relações de consumo e à vista do CDC, certamente integram o conceito de publicidade toda informação (art. 30) veiculada por qualquer forma ou meio de comunicação (arts. 30 e 36), por qualquer fornecedor (art. 3º: qualquer pessoa, física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, inclusive entre entes despersonalizados), sobre quaisquer produtos ou serviços (art. 3º, §§ 1º e 2º).


Publicidade enganosa e a relação com a cerveja sem álcool

Como foi dito alhures, a publicidade foi objeto de preocupação do legislador na elaboração do CDC. Como escopo, o Código revelou a proteção aos consumidores mais vulneráveis a persuasão dita enganosa.

Tocante à publicidade, reservou o referido texto legal o art. 37 para tratar incisivamente do assunto e, por ele, tem-se a publicidade enganosa e a abusiva, transcritas abaixo:

Art. 37. É proibida toda publicidade enganosa ou abusiva.

§ 1° É enganosa qualquer modalidade de informação ou comunicação de caráter publicitário, inteira ou parcialmente falsa, ou, por qualquer outro modo, mesmo por omissão, capaz de induzir em erro o consumidor a respeito da natureza, características, qualidade, quantidade, propriedades, origem, preço e quaisquer outros dados sobre produtos e serviços.

§ 2° É abusiva, dentre outras a publicidade discriminatória de qualquer natureza, a que incite à violência, explore o medo ou a superstição, se aproveite da deficiência de julgamento e experiência da criança, desrespeita valores ambientais, ou que seja capaz de induzir o consumidor a se comportar de forma prejudicial ou perigosa à sua saúde ou segurança.

A publicidade enganosa é aquela em que o consumidor interpreta uma informação erroneamente por não restar correta ou clara. Assim, o consumidor é ludibriado por uma informação inexata ou obscura que, de seu turno, possibilita uma escolha que não ocorreria, caso a mensagem fosse mais objetiva.

Trazendo as exposições ao tema principal do trabalho, que é o enfoque sobre as implicações jurídicas das cervejas "sem álcool" em virtude da lei seca, não há de se olvidar a incidência do CDC nas relações de consumo entre pessoas comuns e as empresas fabricantes deste produto.

Diga-se que o Código de Defesa do Consumidor visa à proteção dos mais desavisados e sujeitos à publicidade enganosa, qualificada como a situação em que tendo o consumidor melhores informações sobre o produto tem a opção de enjeitá-lo.

Nessa questão, indaga-se: O consumidor compraria cerveja "sem álcool" sabendo claramente que ela possui quantidade de álcool e que poderia incriminá-lo em um dos dispositivos da nova lei seca?

Primeiramente, frisa-se que é perfeitamente possível que o consumo de uma quantidade razoável de cerveja "sem teor alcoólico" possa submeter o sujeito ao rigor da lei, como já explanado anteriormente.

Além disso, veja-se que é visível a ostentação no rótulo da informação "sem álcool". De outra sorte, pouco se vislumbra no pequeno espaço destinado, acostada ao mesmo rótulo, com letras minúsculas, para a informação da real concentração alcoólica da cerveja. Isso fere totalmente os princípios do Código de Defesa do Consumidor, sendo medida de justiça o posicionamento acerca da aplicação das penalidades quanto à publicidade enganosa, sendo certo que o consumidor é induzido a consumir um produto, tendo sua principal característica apresentada o vazio alcoólico em seu conteúdo.

Com relação a isto, assevera-se que não há necessidade de lesão ao consumidor para incidir o CDC. Para tanto, basta a aferição da potencialidade lesiva da propaganda. Trata-se de critérios objetivos, sem espaço para elementos subjetivos, como a boa-fé e a má-fé.

Então, diante da nova lei que reformou alguns artigos do Código de Trânsito Brasileiro, conforme assentada nos itens anteriores, é eivada de engano a publicidade veiculada pelas cervejarias dirigidas a esse tipo específico de produto.

Repise-se: o que se afirma é que o consumidor, inibido pelas restrições da lei e a forte fiscalização da polícia, o que é medida certa para conter os acidentes de trânsito, depara-se com um produto que destina uma expressão "sem álcool" em detrimento da real informação que elucidaria melhor a relação consumerista.

É uma situação jurídica nova, resultado dos efeitos gerados pela lei seca. E mais importante: o Estado deve agir preventivamente a fim de resguardar essa situação antes que ocorram sucessivas lesões a população.

Veja-se: o consumidor é levado a consumir a bebida. Há um forte investimento em publicidade para que a primeira imagem a surgir na mente do brasileiro seja a "suposta" ausência de álcool. Dessa feita, tendo na realidade um percentual mínimo de álcool, em média 0,5%, torna-se incontroverso argumentar que há infringência dos artigos do CDC.

Oportuno observar que:

o conceito de enganosidade envolve expressamente a omissão da informação essencial, por via transversa, o dever do fornecedor veicular mensagem honesta, a permitir que o consumidor realize o ato de consumo conscientemente. (NUNES, 2005, p. 142)

E não é importante considerar se as empresas se ativeram ao novo regramento dado pela lei, uma vez que é exigível que uma sociedade comercial com alcance nacional esteja prevenida para salvaguardar os seus objetivos comerciais, sem afrontar os direitos garantidos pelo CDC.

Neste momento, faz-se necessário elucidar sobre a potencialidade de lesão das cervejas "sem álcool". É certo que a possibilidade de dano ao consumidor relativo ao caso tratado é mínima, pois a concentração de álcool neste produto é baixa. Porém, existe, embora em valores ínfimos. É neste contexto que são dois os motivos principais deste trabalho científico, quais sejam: primeiramente, como cada organismo reage de modo singular em relação aos efeitos da bebida e se há possibilidade de dano conforme a quantidade ingerida, é indispensável a atuação do Direito a fim de oferecer uma solução jurídica. Em segundo, as empresas em quase sua totalidade não dispõem, de forma clara, a informação da quantidade de álcool no rótulo do produto, o que resulta em contrariedade ao disposto no Código de Defesa do Consumidor.

Ao se deparar com o produto, o consumidor deve identificá-lo sob dois aspectos: o imediato (no momento da exposição) e o de fácil compreensão (sem esforço ou capitação técnica). Sem esses dois aspectos, não se pode falar em informação clara de uma publicidade, norteada no CDC pelo art. 9º e 36. Para Alvim (1995, p. 83):

A adequação e a ostensividade da informação deverão ter como parâmetro a sua própria função, que é evitar o dano ao consumidor, e devem ser suficientemente completas, incorporadas ao produto, explícitas, claras e concisas, primando o fornecedor pela prudência ao orientar as informações que acompanham o produto de acordo com sua periculosidade e a qualificação (social e cultural) dos possíveis utentes.

A informação do produto para o consumidor deve ser clara e precisa e quando a "publicidade não quer assumir a sua qualidade é atividade que, de uma forma ou de outra, tenta enganar o consumidor. E o engano, mesmo o inocente, é repudiado pelo Código de Defesa do Consumidor.". (GRINOVER, 2007, p. 281)

Logo, sendo enganosa qualquer modalidade de informação, de caráter publicitário, capaz de induzir em erro o consumidor, significando a potencialidade lesiva da mensagem veiculada, é forçoso concluir pela incidência do CDC a fim de tutelar os direitos dos consumidores, relevados a parte frágil da relação contratual.

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Conclusão

O que se pretende com o labor despendido no presente trabalho é alertar para o risco que passa despercebido pela sociedade. Frisa-se que a cerveja "sem álcool" é um produto que trouxe uma alternativa para o consumidor privado ao consumo da cerveja "com álcool".

Enfim, o que se busca é o enquadramento das empresas que fabricam tal produto à nova realidade imposta pelo Estado, conciliando os objetivos econômicos com os direitos dos consumidores.


Notas

1Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_NOTICIA=10320>. Acesso em: 15 mai. 2009.

2 - O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/estadaodehoje/20080808/not_imp219804,0.php>. Acesso em: 13 dez. 2008.

3 – Disponível em: <http://www.cisa.org.br/UserFiles/File/cartilha_alcool.pdf>. Acesso em: 12 dez. 2008.

4 – Disponível em: <http://www.cisa.org./categoria.html?FhldCategoria=4a2029b6b81f33f763ab1312478577a6&ret=&>. Acesso em: 09 nov. 2008.

5 - Leyton V, Greve JMD’A, Carvalho DG, Muñoz DR. Perfil epidemiológico das vítimas fatais por acidente de trânsito e a relação com o uso do álcool. Saúde, Ética & Justiça, São Paulo. 2005;10(1/2):12-8. Disponível em:

<http://www.fm.usp.br/iof/revista_2005/03_perfil_epi>. Acesso em: 12 jul. 2008.

6 - O Globo. Disponível em:

<http://oglobo.globo.com/sp/mat/2008/07/31/acidentes_de_transito_matam_mais_do_que_homicidios_em_sao_paulo-547501370.asp>. Acesso em: 22 fev. 2009

7 - A maioria dos dados e informações foram coletados no website da CISA (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool), uma ONG sem fins lucrativos que visa a obtenção de informações sobre o binômio saúde e álcool por meio de publicações nacionais ou internacionais. <www.cisa.org.br>.

8 - O custo anual dos acidentes de trânsito nas rodovias brasileiras alcançou a trágica cifra de R$ 22 bilhões de reais, correspondente a 1,2% do PIB brasileiro. Dados de 2005. <http://apache.camara.gov.br/portal/arquivos/Camara/internet/publicacoes/estnottec/tema14/2007_2199.pdf>. Acesso em: 11 dez. 2008.

9 – Agência Brasil. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2008/11/21/materia.2008-11-21.4414609373/view>. Acesso em: 24 abril 2009.

10 - Disponível em: <http://portal.saude.gov.br/portal/aplicacoes/noticias/default.cfm?pg=dspDetalheNoticia&id_area=124&CO_NOTICIA=10192>. Acesso em: 23 jul. 2009.

11 - No site da CISA, estão disponíveis duas tabelas, sendo uma destinada às mulheres e a outra aos homens, nas quais apresentam valores aproximados de alcoolemia em gramas de etanol por litro de sangue (g/l). <www.cisa.org.br>.

12 - Associação PRO TESTE Consumidores. Disponível em:

<http://www.proteste.org.br/map/src/468621.htm>. Acesso em: 15 jan. 2009.

13 - ICAP – Internation Council on Alcohol Polices. Disponível em: <http://www.icap.org/PolicyIssues/DrinkingandDriving/BACTable/tabid/199/Default.aspx>. Acesso em: 10 set. 2008.


Referências BIBLIOGRÁFICAS

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MARCONDES FILHO, Ciro. Quem manipula quem?. São Paulo: Editora Vozes, 1986.

MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sergio Cruz - Curso de Processo Civil. 7.ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. v.2.

NUNES Junior, Vidal Serrano. Código de Defesa do Consumidor Interpretado. Yolanda Alves Pinto Serrano 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1997. v.10.

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Sobre os autores
Lucas Gabriel Molina dos Santos

Bacharelando do curso de Direito pela Universidade Estadual de Maringá

Antônio Lorenzoni Neto

Advogado. Professor em Direito Ambiental pela Universidade Estadual de Maringá. Mestre em Direito Ambiental pela Universidade Estadual de Maringá.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Lucas Gabriel Molina ; LORENZONI NETO, Antônio. Publicidade enganosa: da relação de consumo da cerveja sem álcool. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2364, 21 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14052. Acesso em: 11 mai. 2024.

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