RESUMO
O presente trabalho objetiva tecer breves considerações sobre as principais implicações da Lei Complementar nº 123/2006 nas licitações envolvendo microempresas e empresas de pequeno porte, especialmente no que tange ao tratamento diferenciado e favorecido conquistado por esse importante nicho da economia nacional. Acerca do tratamento diferenciado e favorecido, serão estudados seus destinatários, a natureza jurídica desse tratamento, quais são as aquisições públicas abrangidas por tal tratamento, bem como a forma de se comprovar a condição de microempresa ou de empresa de pequeno porte. Também serão abordados os benefícios legais concedidos às microempresas e empresas de pequeno porte relativamente às licitações (necessidade de comprovação da regularidade fiscal apenas para fins de contratação, direito de preferência em caso de empate ficto e apresentação de nova proposta, licitações privativas exclusivamente para microempresas e empresas de pequeno porte, subcontratação obrigatória de microempresa ou empresa de pequeno porte, com empenho destinado diretamente à subcontratada, regime de cotas em licitações para objeto divisível), a cédula de crédito microempresarial, e, por fim, a constitucionalidade ou inconstitucionalidade desse tratamento diferenciado e favorecido estabelecido em favor das microempresas e empresas de pequeno porte no que tange à sua participação nas contratações públicas de bens, serviços e obras.
Palavras-chave: microempresa, empresa de pequeno porte, Lei Complementar nº 123/2006, licitação.
1 INTRODUÇÃO
Sabendo da importância que as microempresas e as empresas de pequeno porte têm para a economia nacional, o legislador constituinte originário, em 1988, ou seja, há quase 21 (vinte e um) anos, já determinava que a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios deveriam dispensar às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei (art. 179 da Constituição Federal).
Por meio da Emenda Constitucional nº 6/1995, o legislador constituinte derivado introduziu o inciso IX ao artigo 170 da Carta Magna, inserindo o tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País como um dos princípios gerais da atividade econômica.
Nesse mesmo rumo, por meio da Emenda Constitucional nº 42/2003, o legislador constituinte derivado modificou a Constituição Federal para, em seu art. 146, inciso III, alínea "d", prever que caberia à lei complementar estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
Oriunda do Projeto de Lei Complementar nº 123/2004, originário da Câmara dos Deputados, que já havia sido votado naquela Casa no dia 05/09/2006 e que foi recebido pelo Senado Federal como o Projeto de Lei Complementar nº 100/2006, tendo sido lá aprovado no dia 08/11/2006 [01], somente no final do ano de 2006 é que foi sancionada e publicada a Lei Complementar 123/2006, mais conhecida como "Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte", cujas normas consubstanciam efetivo tratamento diferenciado e favorecido para as empresas assim enquadradas, que, em 2002, conforme estudo elaborado pelo Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (SEBRAE), responderam, em conjunto, por 99,2% do número total de empresas formais, por 57,2% dos empregos totais e por 26,0% da massa salarial [02].
Como bem sintetizou o mestre José Anacleto Abduch Santos, a Lei Complementar 123/2006 trouxe regras de tratamento diferenciado e favorecido em relação a três aspectos distintos: (I) aspectos tributários; (II) aspectos trabalhistas e previdenciários; e (III) aspectos relativos a acesso a crédito e ao mercado, inclusive quanto a preferência nas aquisições públicas [03].
Dentre tais aspectos, será objeto do presente trabalho especificamente os previstos na Seção Única do Capítulo V da Lei Complementar 123/2006, que cuidam da preferência nas aquisições de bens e serviços pelo Poder Público, pois não há dúvidas de que o Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte trouxe relevantes alterações nas licitações envolvendo microempresas e empresas de pequeno porte.
Como é sabido, os principais diplomas legais que regem as licitações são a Lei 8.666/93 (Lei geral das licitações) e a Lei 10.520/2002 (Lei do Pregão). Com o ingresso da Lei Complementar 123/2006 no ordenamento jurídico brasileiro, foram criadas as normas gerais do tratamento favorecido, diferenciado e simplificado instituído em favor das microempresas e empresas de pequeno porte nas contratações públicas de bens, serviços e obras.
O tema assume grande importância mormente quando se visualiza o considerável aumento da participação de microempresas e empresas de pequeno porte nos procedimentos licitatórios, o que, segundo adverte o articulista Leonardo Ayres Santiago, certamente demandará do gestor que esteja melhor preparado para aplicar o tratamento diferenciado e favorecido recentemente conferido pelo legislador infraconstitucional [04].
Nesse sentido, de acordo com informações veiculadas pelo Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão em março de 2007 [05], o volume de contratações públicas com microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito federal em 2006 foi no valor de R$ 2,2 bilhões de reais [06].
Não bastasse o grande número de microempresas e empresas de pequeno porte brasileiras e o volume de recursos financeiros movimentados nas contratações públicas, revela-nos o professor José Anacleto Abduch Santos que grande parte das licitações se decide entre as propostas de valor de até 10% superiores à menor daquelas apresentadas na disputa licitatória. Segundo ele, a conjugação desses dois fatores (grande quantidade de microempresas e empresas de pequeno porte, aliada ao elevado número de licitações cuja disputa ocorre na margem de diferença de 10% entre as propostas), indica a relevância do tratamento diferenciado e favorecido estabelecido na Lei Complementar 123/2006 e o potencial impacto deste tratamento no resultado das licitações na economia nacional [07].
Urge destacar, ainda, que a Lei Complementar 123/2006, em que pese estar vigendo no ordenamento jurídico pátrio há menos de 3 (três) anos, já sofreu três alterações.
Conforme alerta o doutor Diógenes Gasparini, a primeira mudança ocorreu por força da Lei Complementar 127/07, cujas prescrições não modificaram, em nada, a disciplina licitatória das microempresas e empresas de pequeno porte, pois visaram a outros aspectos do regime diversificado e favorecido dessas entidades, e a segunda alteração foi determinada pela Lei 11.488/2007, que instituiu o Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infra-estrutura – REIDI, tendo esse diploma legal equiparado as cooperativas às empresas de pequeno porte para fins licitatórios, modificando, conseqüentemente, a Lei Complementar 123/2006 [08]. A terceira modificação foi trazida pela Lei Complementar 128/08, que também não influenciou diretamente as normas licitatórias objeto do presente estudo.
Feitas essas considerações, esse trabalho almeja dar sua singela – sem qualquer pretensão de ser exaustiva – contribuição com a discussão jurídica acerca do tema, e encontra-se dividido em capítulos, nos quais serão abordados, nessa ordem, os seguintes assuntos:
(i) quem são os destinatários das normas da LC 123/2006, qual é a natureza jurídica do tratamento diferenciado e favorecido previsto nessa lei complementar e quais são as aquisições públicas abrangidas pelo tratamento diferenciado e favorecido em comento;
(ii) comprovação da condição de microempresa ou de empresa de pequeno porte: quem pode ser considerada microempresa ou empresa de pequeno porte e qual é a forma e o momento de fazer tal prova;
(iii) benefícios legais concedidos às microempresas e empresas de pequeno porte: necessidade de comprovação da regularidade fiscal apenas para fins de contratação, direito de preferência em caso de empate ficto e apresentação de nova proposta, tratamento diferenciado e simplificado para as microempresas e empresas de pequeno porte como forma de promoção do desenvolvimento econômico e social no âmbito municipal e regional (licitações privativas exclusivamente para microempresas e empresas de pequeno porte, subcontratação obrigatória de microempresa ou empresa de pequeno porte, com empenho destinado diretamente à subcontratada, regime de cotas em licitações para objeto divisível) e a cédula de crédito microempresarial; e, finalmente,
(iv) a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do tratamento diferenciado e favorecido estabelecido em favor das microempresas e empresas de pequeno porte no que tange à sua participação nas contratações públicas de bens, serviços e obras.
2 A LICITAÇÃO E
Em conformidade com magistério da lavra do professor Diógenes Gasparini, as empresas beneficiadas no que respeita ao processo licitatório são as microempresas, as empresas de pequeno porte e as cooperativas. Nenhuma outra empresa será beneficiada por esse regime licitatório diferenciado [12].
O conceito de microempresa e de empresa de pequeno porte é resumido pela doutora Cristiana Fortini [13]:
Os conceitos de microempresa e de empresa de pequeno porte foram concedidos pelo legislador. A microempresa é a "sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrado no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil das Pessoas Jurídicas", com receita máxima anual limitada a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais), enquanto a empresa de pequeno porte, usualmente chamada de pequena empresa, diferencia-se da microempresa em face dos valores auferidos, que partem de R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e alcançam, no máximo, R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).
No que diz respeito às cooperativas, a afiada pena de Maria Sylvia Zanella di Pietro [14] assim discorre:
O mesmo benefício previsto na Lei Complementar 123/2006 foi estendido às sociedades cooperativas que tenham auferido, no ano-calendário anterior, receita bruta até o limite definido no inciso II do caput do artigo 3º da referida lei complementar, nela incluídos os atos cooperados e não cooperados. O limite ali referido corresponde ao da receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais).
Portanto, são destinatários do tratamento diferenciado e favorecido previsto na Lei Complementar 123/2006, do ponto de vista dos contratados, as microempresas, as empresas de pequeno porte e as cooperativas.
Já, do ponto de vista da contratante, Diógenes Gasparini esclarece que [15]:
O Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, no que respeita à licitação, submete aos seus termos e condições todas as entidades obrigadas a licitar, mencionadas, substancialmente, no parágrafo único do art. 1º da Lei federal das Licitações e Contratos da Administração Pública. O mesmo, embora de outro modo, está dito no art. 1º desse estatuto. Com efeito, aí se disse que essa lei complementar estabelece normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas, empresas de pequeno porte e, acrescentamos, às cooperativas no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Em sendo assim, é fácil ver, que de suas regras não há como fugir os que estão obrigados a licitar. Além das aí compreendidas, devem prestigiar essas empresas, assegurando-lhes os favores licitatórios instituídos por esse Estatuto, as entidades do Sistema S, as empresas privadas beneficiadas com transferências voluntárias federais, os consórcios públicos qualquer que seja sua espécie, os conselhos de fiscalização profissional, as Organizações Sociais – OS e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público – OSCIP, quando obrigadas a licitar por força do contrato de gestão ou do termo de parceria. Assim também será com as empresas públicas e sociedades de economia mista, uma vez adaptados seus estatutos nos termos do §2º do art. 77, também dessa lei complementar federal. Como esse prazo já transcorreu, cremos que essas empresas, no que couber, deverão em suas licitações prestigiar as microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas, sob pena de frustrarem a finalidade da Lei Complementar federal nº 123/06, ainda que seus estatutos não estejam devidamente adaptados.
Em apertada síntese, pode-se então dizer que, sob a ótica do contratante, são destinatárias das normas que impõem tratamento diferenciado e favorecido a Administração Pública, nela incluída as empresas públicas e as sociedades de economia mista, e as entidades particulares que celebrem contratos utilizando recursos públicos na execução de convênios, termos de parceria e contratos de gestão.
2.2 Natureza Jurídica do Tratamento Diferenciado e Favorecido Previsto na LC 123/2006
De acordo com o entendimento do professor José Anacleto Abduch Santos, o tratamento diferenciado e favorecido previsto no Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte, sempre que a licitante estiver enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte, não é mera faculdade ou decisão discricionária da Administração Pública, mas sim dever legal, norma agendi [16]. Em virtude das alterações sofridas pela LC 123/2006, entende-se que tal tratamento também deve ser obrigatoriamente dispensado às cooperativas [17].
Sendo assim, por força do disposto no art. 40 da Lei 8.666/93, é inafastável a obrigação da Administração Pública de incluir nos instrumentos convocatórios da licitação (lei interna do certame) tudo o que for necessário para dar efetividade ao tratamento diferenciado e favorecido previsto na Lei Complementar 123/2006 em favor das microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas, sob pena de invalidade [18].
Contudo, insta enaltecer que, caso o instrumento convocatório seja omisso em relação ao tratamento diferenciado e favorecido, isso não significa que os benefícios previstos na LC 123/2006 deixarão de ser aplicados, pois as normas do Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte que instituem o tratamento diferenciado e favorecido, com exceção dos arts. 46 a 49, são, conforme ensina Marçal Justen Filho, auto-aplicáveis. Segundo tal professor, "não há cabimento em exigir que a pequena empresa requeira a incidência do regime em questão" [19].
No mesmo sentido, Jair Eduardo Santana proclama que, para os casos de julgamento de proposta e habilitação, a auto-aplicabilidade da norma é patente [20].
De qualquer forma, os beneficiários do tratamento diferenciado e favorecido podem impugnar o instrumento convocatório em caso de omissão ou infração às normas gerais previstas na LC 123/2006, observando, em todo o caso, o procedimento estabelecido no art. 41 da Lei 8.666/93, ou socorrer-se do Poder Judiciário, de acordo com o que explica José Anacleto Abduch Santos [21].
O que não pode ocorrer é o afastamento dos benefícios previstos na LC 123/2006 por mera inércia ou desinteresse da Administração Pública na participação das microempresas e empresas de pequeno porte quando da elaboração do instrumento convocatório do certame.
Como se pode ver, se para a Administração Pública a LC 123/2006 criou dever jurídico, também criou direito subjetivo público para as microempresas, empresas de pequeno porte e cooperativas licitantes de receber o tratamento diferenciado e favorecido em todos os processos licitatórios, bastando para tal a prova dessa condição [22].
Em sendo direito subjetivo público, é passível de renúncia, tanto tácita (pela não manifestação da condição de microempresa ou empresa de pequeno porte na forma e prazo previstos no instrumento convocatório, por exemplo) quanto expressa (documento assinado pela microempresa ou empresa de pequeno porte dispensando a Administração Pública de lhe conferir tratamento diferenciado e privilegiado, verba gratia) [23].
Obviamente, a renúncia deve ser espontânea, isto é, a Administração Pública não pode impor a renúncia ao tratamento diferenciado e favorecido como condição para que as microempresas e empresas de pequeno porte participem do certame [24].
2.3 As Aquisições Públicas Abrangidas pelo Tratamento Diferenciado e Favorecido da LC 123/2006
As aquisições públicas de bens e serviços previstas no art. 1º, inciso III, da LC 123/2006 [25], equivalem às compras, definidas no art. 6º da Lei 8.666/93 como toda a aquisição remunerada de bens para fornecimento de uma só vez ou parceladamente, e à contratação de serviços, tendo estes também sido definidos nesse mesmo dispositivo legal como toda atividade destinada a obter determinada utilidade de interesse para a Administração, tais como: demolição, conserto, instalação, montagem, operação, conservação, reparação, adaptação, manutenção, transporte, locação de bens, publicidade, seguro ou trabalhos técnico-profissionais.
José Anacleto Abduch Santos observa que estão excluídas, todavia, do tratamento diferenciado e favorecido as alienações e as concessões de serviços públicos. Segundo ele, a LC 123/2006 veicula preferência nas aquisições públicas, o que não abrange as alienações e as concessões de serviços públicos [26].
Prossegue ele aduzindo que, sob o aspecto financeiro, podem se diferenciar os contratos públicos em contratos de receita (aqueles nos quais a relação contratual produz ganhos para o Poder Público contratante) e em contratos de despesa (aqueles nos quais a execução contratual implica dispêndio de recursos públicos) [27].
Nesse aspecto, a LC 123/2006 prevê duas hipóteses de tratamento beneficiado: o direito de preferência, e o direito de provar a regularidade fiscal apenas para fins de assinatura do contrato [28].
A LC 123/2006 estabelece que será exercido o direito de preferência pela apresentação de proposta de menor preço pela microempresa ou empresa de pequeno porte que esteja em situação de empate com outra não enquadrada que apresentou a menor proposta. Para ele, tal direito de preferência não tem aplicação em relação aos contratos de receita, porque esta espécie de contrato não envolve aquisição pública e porque o critério de julgamento nunca será o de menor preço, mas o de maior lance ou oferta. Os certames voltados para contratos de receita se realizam mediante processo licitatório do tipo maior oferta ou lance, daí a impossibilidade jurídica e material de efetivar o desempate pela apresentação de proposta de menor preço. Conclui ele aduzindo que "não tem aplicação, pois, o direito de preferência no tocante a licitações destinadas à celebração de contratos de receita, como locações, alienações, concessões de uso e concessão de serviços públicos" [29].
Já, no que tange à regularidade fiscal postergada, o mestre entende que é possível se interpretar a norma para favorecer as microempresas e empresas de pequeno porte, aplicando-se o benefício legal também nos contratos de receita [30].