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Repensando o cooperativismo de trabalho

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O Resumo:

O atual modelo de trabalho formal subordinado, a despeito de sua importância histórica e de seu inegável valor para a regulação das relações econômico-sociais, não pode nunca ser visto como a única forma válida de geração de trabalho e renda.

Nessa esteira, verifica-se que o trabalho prestado em ambiente cooperativo, por força mesmo da solidariedade que marca a cooperação, representa um novo paradigma para as relações de trabalho, de caráter associativo e não lucrativo, profundamente harmônico, com a árdua missão de emancipação do ser humano.

Assim, para efeito de análise da validade do trabalho prestado por meio de cooperativas, não é correta a sua mera submissão ao binômio autonomia-subordinação, próprio do modelo formal subordinado de trabalho, sob pena de se olvidar que se trata, efetivamente, de um novo paradigma no universo do trabalho.

É sob essa ótica e com essa mentalidade que se deve interpretar o parágrafo único do art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho, acrescido pela Lei nº 8.949/94, sendo essenciais, para esse efeito, as noções de existência formal e material das cooperativas de trabalho.

Palavras-chave:TRABALHO; ATUAL MODELO FORMAL SUBORDINADO DE TRABALHO; COOPERATIVISMO; COOPERATIVA DE TRABALHO; NOVO PARADIGMA PARA AS RELAÇÕES DE TRABALHO; PARÁGRAFO ÚNICO DO ART. 442 DA CONSOLIDAÇÃO DAS LEIS DO TRABALHO, ACRESCIDO PELA LEI Nº 8.949/94; EXISTÊNCIA FORMAL E MATERIAL DAS COOPERATIVAS


Por força dos históricos desajustes nas relações de trabalho, iniciados com a revolução industrial (Inglaterra da segunda metade do século XVIII), conhecida pelos notórios abusos do capital sobre o trabalho, todas as sociedades capitalistas assistiram à criação de uma teia de normas jurídicas de inspiração tutelar, com o objetivo de equilibrar forças entre patrões e trabalhadores: foi o surgimento do Direito do Trabalho.

A complexidade desse emaranhado de normas cresceu com o passar do tempo, consolidando um modelo formal subordinado de trabalho que, atualmente, deita raízes profundas nas sociedades modernas. No Brasil, basta um exame superficial da Constituição de 1988 e da Consolidação das Leis do Trabalho – aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1943 – para se perceber a consagração desse modelo.

Passados quase dois séculos da edição da primeira lei trabalhista no mundo (Inglaterra, 1819), surgiram – e surgem, insistentemente – formas alternativas de trabalho, consequência da desatualização – ainda que parcial – das rígidas normas trabalhistas, abaladas em seus alicerces pela grande complexidade das relações sócio-econômicas modernas, marcadas pela revolução tecnológica e pela demolição das barreiras nacionais.

Não obstante, o conhecimento do novo nunca é puro e isento, como sonhavam os cientistas positivistas de outrora, mas, como não poderia deixar de ser, impregnado de compreensões prévias e juízos preconcebidos.

De fato, essas formas alternativas de trabalho sempre foram muito mal vistas pelos agentes públicos ligados à esfera do Direito do Trabalho, profundamente influenciados pelo paradigma do trabalho formal subordinado, não sendo raro se tachar toda e qualquer forma alternativa de trabalho como mecanismo de "flexibilização" das normas trabalhistas, de certa forma um eufemismo para a burla, o engodo, a fraude.

E a conclusão será sempre essa, se essas formas alternativas de trabalho forem examinadas exclusivamente à luz e por meio da lente – preconceituosa e pré-compreensiva – do atual modelo de trabalho formal subordinado, sempre atrelado ao binômio autonomia-subordinação, definidor da incidência de suas duras normas jurídicas.

A questão que se coloca é: será que o atual modelo de trabalho formal subordinado, marcadamente individualista e egoísta, é o único e eterno paradigma válido para as relações de trabalho? O ambiente político, econômico e social que gestou e pariu o atual modelo formal subordinado de trabalho ainda persiste?

As incansáveis e variadas reações à ortodoxia das normas trabalhistas e a velocidade e universalidade das relações sociais sugerem a negativa.

E a questão não pode ser tratada como se fosse um duelo entre o bem o mal, aquele identificado pelos defensores do atual modelo de trabalho formal subordinado, historicamente consagrado pela tutela promovida em favor dos trabalhadores, e este – o mal – personificado naqueles que defendem outras formas de relação de trabalho.

É nesse contexto e sob essa inspiração que se deve examinar o trabalho prestado por meio de cooperativas.

O cooperativismo é uma doutrina que, fundada nos valores da solidariedade, igualdade, democracia, equidade, auto-ajuda e auto-responsabilidade, visa emancipar o homem, em seus múltiplos aspectos econômicos, sociais e culturais, em um ambiente de sublimação da ação e do fazer sobre a inação, o capital, o ter.

Dentro do sistema capitalista, o cooperativismo, hasteando a bela bandeira da solidariedade, atua, enquanto contracultura, como uma força de resistência que, apegada a valores humanitários e esperançosa de dias melhores, trava verdadeira guerra de guerrilha na defesa de um ideário que soa, diante do individualismo exacerbado que marca nossos dias, como mera utopia.

Contudo, afastando a sua aparente feição utópica, o cooperativismo, para se tornar realidade no mundo moderno, lança mão, operacionalmente, da cooperativa, enquanto ente personalizado, capaz de direitos e deveres na ordem civil.

Com efeito, a cooperativa, verdadeira célula de solidariedade inserida na "sociedade do ter", é uma entidade surgida da união de pessoas interessadas na cooperação, existindo para o exclusivo fim de prestar serviços a essa coletividade.

Essa prestação de serviços, do ponto de vista técnico, se dá pela viabilização e potencialização do exercício de uma atividade econômica de obtenção ou colocação de bens ou serviços no mercado.

A ideia é simples: pessoas com interesses em comum se unem para obter melhores posições no mercado, seja na colocação, seja na obtenção de bens ou serviços, beneficiando-se da sinergia resultante de sua ação coordenada – em uma frase: "a união faz a força" –, que possibilita o afastamento de intermediários, o acesso a mercados inalcançáveis individualmente, o incremento do poder de barganha, etc.

A cooperativa, personificação dessa coletividade, atua como sua longa manus no mercado, adquirindo ou colocando os bens ou serviços de interesse dos associados.

Os gastos decorrentes dessa atuação no mercado são suportados pelos cooperados, na medida da utilização, por cada um, dos benefícios da cooperação, sendo certo se falar que a cooperativa atua a preço de custo (qualquer valor por ela percebido em excesso é devolvido aos cooperados, por meio de mecanismo de retorno das sobras).

Atuando a preço de custo, a cooperativa não tem lucro (compreendido como a remuneração do capital empregado em atividade econômica), recebendo dos cooperados apenas o destinado à manutenção de suas atividades e repassando a eles, na proporção das atividades levadas a efeito na cooperação, a integralidade dos benefícios decorrentes de sua atuação no mercado, sendo irrelevante, para efeito de gozo das vantagens resultantes da ação cooperativa, o grau de participação dos cooperados no capital social.

Os cooperados, por sua vez, não têm lucro, mas o justo preço dos bens e serviços, que, em virtude da cooperação, restam isentos dos custos dos parasitários agentes intermediários (obviamente, a cooperação enseja vantagens econômicas, mas que, ressalta-se, não se confundem com o lucro, ponto essencial do capitalismo).

Tudo isso decorre dos princípios cooperativistas da dupla qualidade – os cooperados são, ao mesmo tempo, donos da cooperativa e usuários de seus serviços – e da identidade de interesses – os interesses da cooperativa identificam-se com os interesses dos cooperados, resumindo-se na sua emancipação econômica, social e cultural.

Especificamente em relação ao cooperativismo de trabalho, a solidariedade que marca a cooperação forja um novo modelo para as relações trabalhistas, de caráter associativo e não lucrativo, profundamente diverso do atual paradigma de trabalho formal subordinado, marcado pelo individualismo, pelo egoísmo e pela rigidez de suas normas jurídicas.

Enquanto o modelo formal subordinado de trabalho, harmônico com a mais-valia marxista, permite a exploração capitalista do trabalho alheio, o cooperativismo, fortalecido pela união solidária, viabiliza e potencializa o trabalho dos cooperados, possibilitando a obtenção de vantagens econômicas de caráter não lucrativo, o que revela sua importância na difícil tarefa de emancipação do ser humano.

Sob o aspecto operacional, a cooperativa de trabalho possibilita, aos seus integrantes, por conta mesmo da união, a colocação de seu trabalho no mercado em condições economicamente favoráveis, mais benéficas que as decorrentes da atuação isolada de cada um.

Para tanto, a cooperativa recebe, dos cooperados, apenas o destinado ao seu custeio, afastada, portanto, a figura do lucro; o restante é repassado aos cooperados, na medida da atuação de cada um nos negócios cooperativos, não havendo, aqui também, lucro, mas sim a justa remuneração dos serviços prestados.

É de se destacar que a cooperativa de trabalho, além desse serviço central, de colocação do trabalho dos cooperados no mercado, presta a eles outros serviços, de caráter secundário, mas de grande importância, tais como cursos de formação e especialização, auxílios assistenciais, etc.

Assim, o trabalho prestado em forma cooperativa não pode nunca se submeter ou ser confundido com o atual modelo formal subordinado de trabalho, atrelado ao rígido binômio autonomia-subordinação, cuidando-se, efetivamente, de um novo paradigma para as relações de trabalho.

A propósito, cf. a Declaração Mundial sobre as Cooperativas de Trabalho aprovada pela Assembléia Geral da CICOPA – Organização Internacional de Cooperativas de Produção Industrial, Artesanal e de Serviços em 06 de setembro de 2003, com redação final aprovada por seu Comitê Executivo em 17 de fevereiro de 2004:

Em particular, é necessário que os Estados reconheçam em suas legislações que o cooperativismo de trabalho associado está condicionado por relações trabalhistas e industriais distintas do trabalho dependente assalariado e do auto emprego ou trabalho individual independente, e aceitem que as cooperativas de trabalho associado apliquem normas e regulamentos correspondentes.

Como ressalta Walter Tesch:

O cooperativismo de trabalho diante deste quadro representa um modelo alternativo de relações com o trabalho visando justamente construir um tipo diferente de relação do trabalho com o mercado, fazendo da cooperativa seu instrumento jurídico de viabilização eficiente do trabalho no mercado, eliminando a intermediação. Isto permite a distribuição de maior renda ao trabalho, uma vez que o excedente que era apropriado pela intermediação é redistribuído entre os cooperados associados que executam efetivamente o trabalho.

(Perspectivas das relações de trabalho no século 21: o espaço das cooperativas de trabalho. Disponível em: <http://www.projetoe.org.br/tv/prog05/html/ar_05_03.html>. Acesso em: 29 nov. 2008).

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É sob essa ótica que deve ser compreendido o cooperativismo de trabalho, bem como é sob esse background que se deve interpretar o parágrafo único do art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho, acrescido pela Lei nº 8.949/94, que determina que "Qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa, não existe vínculo empregatício entre ela e seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela."

De fato, não há, entre a cooperativa e os seus associados, nem entre estes e os tomadores de serviços daquela, relação de emprego, elemento central do atual modelo formal subordinado de trabalho, pois se cuida de um novo paradigma para as relações trabalhistas: o trabalho associativo, solidário, prestado em ambiente não lucrativo.

Essa interpretação tem respaldo constitucional, na medida em que a Constituição de 1988 erige, como fundamentos da República Federativa do Brasil, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, incisos II, III e IV), bem como estabelece, como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, inciso I), sendo certo que a mesma Constituição que garante direitos trabalhistas próprios da relação formal subordinada de trabalho estabelece que "A lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo" (§ 2º de seu art. 174).

Contudo, uma advertência: para que não haja vínculo de emprego, o trabalho – seja qual for – deve ser prestado em um ambiente verdadeiramente cooperativo.

Este o ponto central, que impede a conhecida e nefasta exploração de trabalhadores levada e efeito por meio de pseudocooperativas de trabalho.

Basta, aqui, a compreensão do que efetivamente seja uma cooperativa de trabalho.

Para tanto, lançamos mão das noções de existência formal e material das cooperativas, por nós tratadas em artigo intitulado "Repensando o Cooperativismo", no qual fizemos, em co-autoria com Flávio Valle, aprofundado exame estático e dinâmico da cooperação:

Nessa ordem de idéias, cooperativa formalmente existente é aquela que, arquivando seus atos constitutivos no registro próprio, se constituiu de acordo com a Lei n.º 5.764/71, observadas as complementações e derrogações parciais promovidas pelo Código Civil de 2002.

Por sua vez, cooperativa materialmente existente é aquela que, respeitando, em suas ações, o regime jurídico instituído pela Lei n.º 5.764/71 e parcialmente complementado e derrogado pelo Código Civil de 2002, propicia aos cooperados, em um exame lato, maiores benefícios que aqueles que eles potencialmente experimentariam caso não cooperassem, atuando isoladamente no mercado.

(MANNRICH, Nelson (coord.). Revista de Direito do Trabalho. V. 116. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, págs. 64/76)

Maurício Godinho Delgado sentiu isso muito bem ao afirmar:

De fato, o que justifica a existência das cooperativas – e as vantagens que essa figura recebe da ordem jurídica – é a circunstância de que ela potencia o trabalho ou, simplesmente, as atividades humanas ou das organizações cooperadas. A cooperativa permite que o cooperado obtenha uma retribuição pessoal em virtude de sua atividade superior àquilo que obteria caso não estivesse associado. A retribuição pessoal de cada cooperado é, necessariamente (ainda que em potencial), superior àquela alcançada caso atuando isoladamente

(Introdução ao Direito do Trabalho. 2.º ed. (rev., atual., reelaborada). São Paulo: LTr, 1999, pág. 270).

Assim, sendo a cooperativa formal e materialmente existente, vale dizer, obedecendo ao regime jurídico próprio – em relação à sua constituição e funcionamento – e ensejando reais vantagens para os cooperados (rectius: possibilitando a eles, globalmente, maiores benefícios do que os que experimentariam caso não cooperassem, atuando isoladamente no mercado), não há que se falar em relação de emprego, quer entre a cooperativa e os seus associados, quer entre estes e os tomadores de serviços daquela, tudo a teor do já mencionado parágrafo único do art. 442 da Consolidação das Leis do Trabalho, devendo-se destacar que a existência formal implica em presunção relativa de existência material.

Cuida-se, como se vê, de uma proposta interpretativa que, sem implicar em prejuízo aos trabalhadores, e em harmonia com o plano constitucional, implica no reconhecimento de um modelo alternativo – um novo paradigma – de geração de trabalho e renda, o cooperativo, sem que com isso haja desvio do fim perseguido por todo aquele que se dedica ao exame e regulação das relações de trabalho: a emancipação do ser humano.

Enfim, basta que deixemos de lado, por um instante e na medida do possível, nossos preconceitos e pré-compreensões, espalhadas na penumbra do subconsciente, para que possamos enxergar, como mais clareza, o novo, dando a ele o valor merecido.

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Sobre o autor
Gustavo Henrique Moreira do Valle

Juiz de direito do poder judiciário do Estado de Minas Gerais

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

VALLE, Gustavo Henrique Moreira. Repensando o cooperativismo de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2368, 25 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14088. Acesso em: 29 mar. 2024.

Mais informações

Texto publicado na Revista IOB Trabalhista e Previdenciária, n. 237, Síntese, mar. 2009.

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