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Furto qualificado privilegiado.

O Supremo Tribunal Federal indica uma mudança na sua jurisprudência

27/12/2009 às 00:00
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O STF tem surpreendido a comunidade jurídica com a revisão de uma série de posições que, aparentemente, já haviam sido pacificadas ao longo da sua construção jurisprudencial. Esse "reformismo jurisprudencial" trouxe ao direito penal um novo capítulo: o reconhecimento da figura híbrida do furto qualificado privilegiado.

A doutrina sempre se mostrou crítica em relação à posição dos tribunais superiores, que não admitiam a conjugação de uma causa especial de diminuição de pena, de qualquer natureza, com as modalidades qualificadas previstas no § 4º do art. 155 do CP. Nesse sentido, Cezar Roberto Bitencourt apontava que:

Reina profunda desinteligência sobre a possibilidade de o privilégio contido no § 2º incidir em qualquer das figuras qualificadas previstas no § 4º do mesmo artigo. Razões as mais variadas são invocadas para fundamentar esse entendimento, mas nenhuma apresenta fundamento cientificamente (BITENCOURT, 2005. Pg. 24).

O que se percebia é que a jurisprudência majoritária negava a possibilidade, como demonstra a seguinte ementa da lavra do Superior Tribunal de Justiça:

O pensamento dominante preconizado no seio desta Corte Superior contraria a pretensão heróica e se assemelha aos fundamentos do acórdão vergastado, uma vez que a incidência do privilégio não pode ter, indiferentemente, o mesmo efeito na forma qualificada do que tem na forma básica, pois a existência da qualificadora inibe a sua aplicação, mesmo se primário o réu e de pequeno valor a coisa ou, ainda, ausente o prejuízo. Assim, em que pesem os argumentos da defesa, não há como reconhecer o furto qualificado-privilegiado (REsp. 664272/SP; Recurso Especial 2004/0068153-1, Relator Ministro José Arnaldo da Fonseca, 5ª Turma, publicado no D J em 18/4/2005, p. 379).

Rogério Sanches Cunha, interpretando o pensamento dos tribunais superiores, também preceituava:

Diverge a doutrina sobre a possibilidade de se aplicar o privilégio ao crime de furto qualificado. O posicionamento do STF e do STJ é no sentido de ser ela incompatível, vez que além da gravidade do crime qualificado, a posição topográfica do privilégio indica a intenção do legislador de vê-lo aplicado somente ao furto simples e noturno (RT 608/446, 609/354 e 617/336). (SANCHES, 2008, pg. 122).

Esse posicionamento dos tribunais superiores era incompreensível, na medida em que no homicídio já é pacífica a construção da figura híbrida qualificada e privilegiada, ao mesmo tempo – ou seja, uma qualificadora de natureza objetiva se concilia, ao mesmo tempo, com um privilégio de natureza subjetiva. Nesse sentido, Rogério Greco aduzia que o reconhecimento do homicídio qualificado privilegiado se dá por questões de política criminal (GRECO, 2008, pg. 193). Por exemplo, configura-se como uma hipótese de homicídio qualificado privilegiado um crime cometido mediante emboscada (qualificadora de natureza objetiva) contra o agente que tenha estuprado a filha do sujeito ativo do crime (motivo de relevante valor moral – minorante de natureza subjetiva).

Tomando como base os posicionamentos do STJ e do STF, Capez reconhece a figura do homicídio qualificado privilegiado, mas faz a ressalva de que ser inadmissível a coexistência de circunstâncias subjetivas. Assim, são incompatíveis, o motivo de relevante valor moral e o motivo fútil (CAPEZ, 2004, pg. 41).

De forma pioneira, Damásio de Jesus defendia a possibilidade da existência do furto qualificado privilegiado nos mesmos moldes da figura do homicídio qualificado privilegiado:

No furto, entretanto, não há inconciliabilidade entre o privilégio e as qualificadoras. Enquanto motivo torpe e motivo e motivo de relevante valor moral se repelem, a primariedade do agente e o pequeno valor da coisa, pela sua natureza, não excluem o fato qualificado pelo concurso de agentes, pelo salto de um muro ou pela agilidade do autor. A situação dos parágrafos não nos impressiona. Tudo para nós está na essência das circunstâncias que constituem os tipos qualificado e privilegiado. (DE JESUS, 2009, pg. 324).

Sensível ao reclamo doutrinário, o Supremo Tribunal Federal, ao iniciar o julgamento do

HC 98265/MS, tendo como relator o Ministro Carlos Britto, 25.8.2009 , ao que parece, tende a mudar o seu posicionamento sobre o tema, haja vista que o voto do relator, no que foi acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Cármen Lúcia, reconhece o posicionamento pacífico do tribunal quanto à conciliação entre o homicídio objetivamente qualificado e, ao mesmo tempo, subjetivamente privilegiado, nos termos expostos acima. Ainda, o que é mais importante, o julgado aduz que a mesma regra deve ser aplicada ao furto, em hipótese na qual o rompimento de obstáculo (qualificadora de natureza objetiva) esteja conjugado à primariedade do réu e ao pequeno valor da coisa (privilégios de natureza subjetiva). Nas palavras do ilustre Ministro Relator:

... a jurisprudência do STF é assente no sentido da conciliação entre homicídio objetivamente qualificado e, ao mesmo tempo, subjetivamente privilegiado. Dessa forma, salientou que, tratando-se de circunstância qualificadora de caráter objetivo (meios e modos de execução do crime), seria possível o reconhecimento do privilégio, o qual é sempre de natureza subjetiva.

Mais a frente, ele preceitua que:

Entendeu o relator que essa mesma regra deveria ser aplicada na presente situação, haja vista que a qualificadora do rompimento de obstáculo (natureza nitidamente objetiva) em nada se mostraria incompatível com o fato de ser o acusado primário e a coisa de pequeno valor.

Reconheceu, assim, a possibilidade de incidência do privilégio do § 2º do art. 155 do CP, cassando, no ponto, a sentença penal condenatória. Ademais, considerando a análise das circunstâncias judiciais (CP, art. 59) realizada pelo juízo monocrático, a qual revelara a desnecessidade de uma maior reprovação, reduziu a pena em 1/3, para torná-la definitiva em 8 (oito) meses de reclusão, o que implicaria a ocorrência da prescrição da pretensão punitiva em caráter retroativo, tendo em conta a ausência de recurso da acusação, bem como a menoridade do paciente (menor de 21 anos na data do fato). Assim, o prazo prescricional de 1 ano já teria transcorrido entre a data do recebimento da denúncia e a data da publicação da sentença penal condenatória. Em suma, concedeu a ordem para reconhecer a incidência do privilégio do § 2º do art. 155 do CP, inobstante a qualificadora, e assim julgar extinta a punibilidade do paciente pela prescrição retroativa. Após, pediu vista dos autos o Min. Marco Aurélio (Grifo nosso). (HC 98265/MS, rel. Min. Carlos Britto, 25.8.2009)

Merece aplauso a decisão, pois não há nenhuma razão lógica ou científica para a não incidência da conciliação do privilégio com a qualificadora de natureza subjetiva. Há muito tempo a ciência jurídica toma como um dos seus cânones a idéia de que onde há a mesma razão, há o mesmo direito.

Ademais, todo o sistema jurídico deve ser interpretado e estruturado de forma harmônica, intercomunicando-se, e isso só ocorrerá se o jurista conjugar diversas normas, por mais contraditórias que possam parecer, para adequá-las ao modelo de política criminal adotado pelo nosso sistema. Nesse sentido, se temos um modelo de política criminal liberal, assentado no garantismo penal de Luigi Ferrajoli, e compreendido a partir de uma visão constitucional penal, o que a Corte Suprema fez foi reafirmar as bases desse modelo.

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Por fim, acreditamos que o não reconhecimento da força do raciocínio apresentada pelo Ilustre Ministro relator constituir-se-á em uma postura antidemocrática, que Ricardo Dip chama de "síndrome de Alice", pois irá transformar o direito penal num "mundo de fantasia", com um "direito penal de fantasia" (DIP, 2002 pg. 217), onde o discurso (leia-se: a construção dogmática) aponta no sentido do reconhecimento de uma ordem jurídica pluralista, democrática, baseado na retribuição e na ressocialização, mas que na prática, em virtude da nossa própria cultura e da política criminal reclamada por setores da nossa sociedade, se mostra um direito penal pragmático, legalista, regulamentador e burocrático. É preciso reconhecer que o direito penal não será a solução para todos os dilemas da condição humana, mas nem por isso devemos torná-lo um instrumento descompromissado com os princípios e objetivos instituídos na carta constitucional.


Referências Bibliográficas:

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, vol. 3, 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva 2005.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, vol. 2. São Paulo: Editora Saraiva 2007.

DE JESUS, Damásio Evangelista. Direito penal vol. 2. São Paulo: Editora Saraiva 2009.

DIP, Ricardo. Crime e castigo – reflexões politicamente incorretas. Campinas: Millenium, 2002.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal parte especial, Vol. 2. Niterói: Editora Impetus, 2008.

SANCHES, Rogério Sanches. Direito penal vol. 3, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008.

STF - HC 98265/MS, rel. Min. Carlos Britto, 25.8.2009

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Sobre o autor
Karlos Alves Barbosa

Advogado, Mestre em Direito Público, Professor universitário da Esamc uberlandia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Karlos Alves. Furto qualificado privilegiado.: O Supremo Tribunal Federal indica uma mudança na sua jurisprudência. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 14, n. 2370, 27 dez. 2009. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14091. Acesso em: 5 nov. 2024.

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