Crucial premissa é a finitude do espaço habitável pela humanidade. Apesar de possível a colonização de outros planetas, é improvável que façamos isso nos próximos cinqüenta ou cem anos de forma definitiva. Portanto, cedo ou tarde a civilização da qual participamos deverá aplicar mecanismos de contenção das necessidades e ou otimização dos processos produtivos como fator indispensável à sobrevivência. Nossa inação oportunizará a incidência das leis naturais para restabelecimento de um equilíbrio no complexo sistema do qual faz parte a vida humana.
A sociedade contemporânea, como organização, necessita de recursos ("input") que, submetidos a cargas de energia e capital, geram produtos essenciais à nossa sobrevivência, ao lado de subprodutos muitas vezes perniciosos ("output"). O desmatamento é um exemplo. A racionalização dessas relações efeito-causa é imprescindível à subsistência da espécie humana na Terra.
Não existem indicadores suficientemente seguros de que o capitalismo terá um fim na história próxima. Assim, suas bases filosóficas devem ser levadas em consideração na construção de qualquer juízo prospectivo. Nossa Constituição Federal adota a liberdade de estabelecimento e concorrência (art. 170, incisos IV e parágrafo), de modo a que a proposição de soluções deve partir desse axioma positivado [01].
Feita essa observação, propomos (por ora) a investigação da atuação dos órgãos de poder já constituídos e atuantes. É possível, focando o Poder Judiciário brasileiro, extrairmos um panorama razoavelmente seguro da situação das engrenagens do sistema "input"/"output", já que é aquele o solucionador por excelência das controvérsias concretamente surgidas na sociedade de consumo. E é nessa senda que pretendemos investigar uma lógica jurisprudencial do Supremo Tribunal Federal – STF no controle concentrado de constitucionalidade de um dispositivo legal em particular, editado em 2001.
História pressupõe conflito intergeneracional: devido à finitude dos "inputs", sua utilização sem sustentabilidade hoje acarretará redução de disponibilidades (ou até sua completa extinção) às futuras gerações. O potencial genético humano – entendido aqui como os seres ainda não nascidos – tem reconhecida a garantia de vida digna em níveis superiores ou, no mínimo, iguais à civilização coetânea. É o chamado "efeito ‘cliquet’" [02]. Essa ordem de idéias foi positivada em nossa Constituição Republicana no art. 225 [03].
Um dos exemplos proeminentes desse conflito está documentado nos autos da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) nº 3.540/DF, relator Min. Celso de Mello, na qual o Procurador Geral da República - PGR - questionou, perante o STF, a validade das alterações proporcionadas no Código Florestal (Lei nº 4.771/65) pela Medida Provisória nº 2.166-67/2001. Vejamo-las:
A supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica e locacional ao empreendimento proposto.Art.4º
§1ºA supressão de que trata o caput deste artigo dependerá de autorização do órgão ambiental estadual competente, com anuência prévia, quando couber, do órgão federal ou municipal de meio ambiente, ressalvado o disposto no § 2º deste artigo.
§2ºA supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana dependerá de autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico.
§3ºO órgão ambiental competente poderá autorizar a supressão eventual e de baixo impacto ambiental, assim definido em regulamento, da vegetação em área de preservação permanente.
§4ºO órgão ambiental competente indicará, previamente à emissão da autorização para a supressão de vegetação em área de preservação permanente, as medidas mitigadoras e compensatórias que deverão ser adotadas pelo empreendedor.
§5ºA supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, ou de dunas e mangues, de que tratam, respectivamente, as alíneas "c" e "f" do art. 2º deste Código, somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública.
§6ºNa implantação de reservatório artificial é obrigatória a desapropriação ou aquisição, pelo empreendedor, das áreas de preservação permanente criadas no seu entorno, cujos parâmetros e regime de uso serão definidos por resolução do CONAMA.
§7ºÉ permitido o acesso de pessoas e animais às áreas de preservação permanente, para obtenção de água, desde que não exija a supressão e não comprometa a regeneração e a manutenção a longo prazo da vegetação nativa.
A argumentação expendida pelo PGR fora no sentido de que a supressão e ou redução de espaços especialmente protegidas só poderia ser feita por meio de lei em sentido formal, ou seja, aquela editada pelo parlamento, nos exatos termos do art. 225, §1º, inciso III da Constituição Federal [04]. Vamos reproduzi-lo:
Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: (...) III – definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção§1º
Em obséquio à validade da Medida Provisória, diversos Estados da federação adentraram o feito na qualidade de "amici curiae" [05]: Minas Gerais, São Paulo, Espírito Santo, Bahia, Mato Grosso do Sul e Amazonas. Ao lado, também ingressaram defendendo tese contrária à postulação do Ministério Público Federal a Confederação Nacional da Indústria - CNI - e o Instituto Brasileiro de Mineração - IBRAM.
Vê-se, de antemão, a força dos interesses contrários à interpretação que mais preservaria o meio ambiente (no caso a do PGR): entes da federação interessados na ampliação do seu parque industrial e produtivo, bem como entidades intimamente ligadas ao desenvolvimento econômico. Interessante notar a inexistência de qualquer organização disposta a defender a inconstitucionalidade da MP [06], muito embora pareça-nos razoável a interpretação dada pelo autor da demanda abstrata. A decisão do STF seguirá essa lógica indiciária...
O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, prerrogativa de terceira geração, traz um ônus ao Estado e à própria sociedade de defendê-lo e preservá-lo em prol da presente e das futuras gerações, consagrando assim outro princípio: o da solidariedade intergeneracional.
Diversos instrumentos internacionais têm buscado concretizar mais e mais essas idéias, responsabilizando os Estados soberanos naquela esfera [07].
Não obstante, é tentadora a busca pelo desenvolvimento econômico da nação sem grandes preocupações com o meio ambiente, especialmente tratando-se de país "em desenvolvimento" como se autodenomina o Brasil. Esse conflito (desenvolvimento acelerado x proteção ao meio ambiente) se fundamenta e se consolida, respectivamente, nos princípios capitalistas e no discurso do ‘crescer e dividir’.
No caso da ADIN 3.540/DF, após um minucioso detalhamento acerca dos direitos e garantias fundamentais de primeira, segunda, terceira e quarta gerações, o relator do feito trouxe os seguintes argumentos aptos a manter a eficácia da MP:
a) A sua aplicação nos últimos quatro anos não resultou o efeito lesivo temido pelo PGR; (b) outorgar ao Parlamento a competência de autorizar a supressão da vegetação retiraria do Executivo uma prerrogativa que lhe é própria; (c) atividades usuais de pequeno impacto (§3º do art. 4º) seriam vedadas; (d) a suspensão do §4º impediria o condicionamento de alterações ambientais à realização de medidas mitigadoras dos seus impactos; (e) impedimento ao acesso de pessoas e animais em áreas de preservação permanente para obtenção de água; (f) uma coisa é a supressão de espaços territoriais especialmente protegidos, outra bem diferente seria a supressão da vegetação existente nesses locais; (g) declarar a inconstitucionalidade da MP é praticamente impulsionar a realização de "lobbies" junto ao Congresso Nacional, Assembléias Legislativas ou a Câmara de Vereadores, conforme o ente federativo responsável pela área protegida.
A nosso juízo, tais argumentos caem por terra, um a um, se levarmos em consideração o seguinte: (a’) quatro anos é um período insuficiente para avaliação dos impactos ambientais, aliás, sequer representa uma geração de pessoas diferentes, contrariando nitidamente o princípio da solidariedade intergeneracional; (b’) a Constituição Federal definiu, soberanamente, a consulta ao Parlamento como forma de reduzir a argúcia e a tentação do desenvolvimentismo. A MP nº 2.166-67/2001 enfrenta essa lógica, mormente se considerarmos a fonte emissora do texto: exclusivamente o Executivo [08]; (c’) não são vedadas as atividades de pequeno impacto, aliás, não foi a MP que as previu originariamente. Caberá à lei em sentido formal estabelecer conceitos jurídicos indeterminados aptos a congregar, pelo princípio da proporcionalidade, regras vedatórias à predação e normas autorizativas de uso; (d’) a própria Carta Republicana obrigou a mitigação dos impactos ambientais [09], não havendo absolutamente nada de novo no texto questionado da MP nº 2.166-67/2001; (e’) idem c’; (f’) a proibição de supressão ou redução, por meio de atos administrativos, de espaços territoriais especialmente protegidos sairá esvaziada caso a essência dessas definições espaciais (a vegetação, no caso) possa ser suprimida por império do Executivo. O que se protege em uma área de preservação permanente, por exemplo, não é o território em si, mas o que nele se contém; (g’) os ‘lobbies’ sempre existirão. Sem entrar no mérito pertinente à moralidade dessa atuação, ficarão eles facilitados caso o ente decisório for individual (um administrador público).
De todo modo, a tese vencedora não consagrou nossas idéias, demonstrando que, da tensão entre o imperativo do desenvolvimento nacional e a preservação da integridade do meio ambiente, aquele tem mais respaldo para sair vitorioso (veja a quantidade de agentes ingressantes na ADIN que defendem o primeiro). O mecanismo de controle instaurado no âmbito do STF dá concretude às forças envolvidas nesse processo dialógico, no qual a sociedade (genericamente) espera uma decisão privilegiadora do desenvolvimentismo, tendo em vista a ausência de visão dos futuros detentores do direito ao meio ambiente saudável.
Essa lógica, aparentemente inquebrantável, que friso ser defendida pela grande maioria da cidadania, levar-nos-á ao colapso daqui a algumas gerações. Basta supormos o efeito da perenização do argumento consistente no "direito de poluir" baseado na poluição pretérita. Como afirmou José Roberto Marques [10], "Há uma completa interpenetração entre a atividade econômica eo meio ambiente. Assim, as atividades econômicas – e desenvolvimento por elas representado – pressupõem respeito ao meio ambiente". Esperamos uma reviravolta na posição da Suprema Corte quando do julgamento final da questão.
Notas
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É o que disse o Min. Eros Grau
como relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.512: "A ordem
econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema, o sistema
capitalista, no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa
circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só
intervirá na economia em situações excepcionais. Muito ao contrário".
- A expressão é utilizada por alpinistas e define um movimento que permite apenas subir, não sendo possível – por segurança – retroceder no percurso.
- "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações".
- A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 16 de julho de 1934, pela primeira vez deixa de consagrar a plenitude da garantia do direito de propriedade presente nas Cartas anteriores para prescrever que ela não poderá ser exercida "contra o interesse social ou collectivo, na forma que a lei determinar" (art. 113, 17).
- Termo latino, traduzido literalmente como amigos da corte, que se refere à pessoa ou entidade que não é parte de um caso e se voluntaria em oferecer informações num ponto da lei ou outros aspectos para ajudar a corte a decidir (fonte: Wikipédia, acesso em 07/09/2009).
- Em 20/11/2007 foram admitidos, também, como amigos da corte os estados de Goiás e Pará. Desde março de 2008 os autos encontram-se no gabinete do Ministro relator (fonte: site do STF, acesso em 22/12/2009).
- Podemos citar alguns documentos: Convenção das Nações Unidas sobre Direito do Mar (Jamaica, 1982); Declaração sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo, 1972); Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, Agenda 21, Princípios para a Administração Sustentável das Florestas, Convenção da Biodiversidade (Rio de Janeiro, 1992); Convenção sobre Mudança do Clima Convenção de Viena para Proteção da Camada de Ozônio (Áustria, 1985); Protocolo de Kyoto (Japão, 1997).
- Art. 2º As medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação desta emenda [11/09/2001] continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional (Emenda Constitucional nº 32/2001). É o caso, justamente, da MP nº 2.166-67/2001, até hoje intocada pelo Congresso Nacional.
- Art. 225, §1º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei.
- José Roberto Marques, Meio Ambiente Urbano, Rio de Janeiro, Forense, 2005, p. 100.