1 INTRODUÇÃO
O debate sobre a prescrição e a decadência dos tributos sujeitos a lançamento por homologação declarados inconstitucionais, e o respectivo direito à compensação que o acompanha, permanece como um dos temas mais controvertidos do direito tributário.
A indefinição jurisprudencial e doutrinária sobre a matéria fomentam a insegurança e a incerteza das relações jurídicas tributárias, fazendo com que cada vez menos contribuintes exercam o direito constitucional de acesso ao Judiciário (art.5º, inciso XXXV, da Constituição da República de 1988) com receio de serem surpreendidos por alterações jurisprudenciais que limitem o seu direito de reaver o que indevidamente pagaram.
Tudo isto à luz de um limitado debate sobre o significado das respectivas normas do Código Tributário Nacional (CTN), nutrido pelo posicionamento do próprio Supremo Tribunal Federal sobre a matéria, no sentido de que a celeuma sobre prescrição e a decadência inclui-se em âmbito essencialmente infraconstitucional, conforme comprova a decisão adiante:
Aliás, é lição antiga de direito que ao STJ compete interpretar a legislação infraconstitucional. (…)Alega a embargante não ter sido apreciada, na decisão recorrida, questão relativa à compensação do indébito tributário, ao prazo prescricional, à correção monetária e aos juros. Sem razão a embargante. Não há como dar provimento ao recurso extraordinário quanto à possibilidade de compensação de créditos decorrentes de quantias pagas indevidamente, ao prazo prescricional, à correção monetária e aos juros. É que o Tribunal tem enfatizado o caráter nitidamente infraconstitucional das questões concernentes à admissibilidade de compensação de quantias pagas indevidamente com outros tributos, à incidência de juros e à correção monetária (e à taxa consequentemente aplicável – SELIC), como se vê nos seguintes precedentes: (...) (RE-AgR-ED nº 468.408-0. 2ª T. Relator: Ministro Cezar Peluso. DJ 12.02.2008)
Nesse sentido, não é dificil perceber um perigoso afastamento do debate do campo constitucional. A nocividade se faz presente à medida que o fechamento argumentativo nesse âmbito se equipara à desconsideração da força normativa da Constituição e, principalmente, dos direitos fundamentais que a compõem. Certeiras as considerações de Sarmento a esse respeito:
Neste quadro, no Brasil, onde nosso ordenamento se alicerça sobre uma Constituição fundada sobre princípios e valores humanitários, como a dignidade da pessoa humana e o Estado Democrático de Direito, e que com conta com um capítulo tão generoso de direitos fundamentais, desencadear a força normativa da lei fundamental e projetá-la sobre todos os setores da vida humana e do ordenamento jurídico torna-se essencial, para quem se preocupe com a promoção da justiça substantiva. (SARMENTO, 2006, p.55)
Sensível a essa tendência, este artigo busca retomar a importância da aplicação da Constituição às questões de prescrição e decadência, visando a lançar uma perspectiva que atribui adequada importância aos direitos fundamentais, que tanta importância tem para uma justa política fiscal.
Para tanto, necessário ultrapassar o debate acerca do desvelamento do sentido da norma (regra) através de exercícios de aplicação, executadas por métodos de correção hermenêuticos e feitos monologicamente por juízes hércules.
Imperioso, portanto, demonstrar a superação do debate "infraconstitucionalizado" e, concomitantemente, (re) estabelecer a importância de uma leitura constitucionalizada do direito tributário, no qual os direitos fundamentais compõem a argumentação central do julgador em busca de um sentido procedimentalmente adequado do ponto de vista da justiça fiscal. Essa proposta, por um lado, só pode ser viável se for possível uma descrição do paradigma jurídico experimentado no Brasil, capaz de explicar como questões envolvendo a prescrição e a decadência podem assumir um discurso constitucionalizado da matéria. Eis o que será tratado a seguir.
2 PARADIGMAS JURÍDICOS
A noção de paradigma jurídico [01] possibilita ao jurista compreender as premissas utilizadas pelos operadores do Direito quando da sua aplicação. Ela delineia, na concepção de Habermas:
um modelo de sociedade contemporânea para explicar como direitos e princípios constitucionais devem ser concebidos e implementados para que cumpram naquele dado contexto as funções normativamente atribuídas a eles. (OLIVEIRA, 2001, p.54)
Aplicada ao direito tributário, a ideia de paradigma permite identificar que não houve uma desvinculação deste ramo do Direito a um arquétipo positivista, que insiste em compreender o Direito como um modelo de regras (basicamente infraconstitucionais) a ser decidido por meio de métodos hermenêuticos de subsunção universalista-liberal, marcado essencialmente pelo esforço solipsista do juiz em desvelar o "sentido da lei". Essa lógica, que inverte totalmente a aplicação do Direito - substituindo a Constituição pela lei - fica evidenciada no esforço do ministro João Otávio de Noronha ao justificar a razão pela qual ele deveria reconsiderar seu posicionamento sobre a aplicação do termo inicial da contagem do prazo prescricional da data da publicação do Senado Federal para a tese dos "cinco mais cinco":
Volto a insistir: vim de uma área com viés nitidamente privado para outra com pendor nitidamente público, razão pela qual tenho de me atualizar constantemente, rever meus pensamentos. Agora, no que tange à prescrição, gostaria de lembrar que muitos sustentam que o prazo prescricional deve ser contado da declaração da inconstitucionalidade. Enganam-se. Na realidade, faz-se necessário, para resolver a questão em nível científico – o que me parece fundamental –, reportarmo-nos ao conceito de prescrição. No sistema jurídico brasileiro, que se espelhou no sistema jurídico germânico, é sabido que prescrição não é a morte do Direito, mas, sim, a extinção da pretensão, ou seja, o falecimento da pretensão ante a inércia do credor, que, por isso, sucumbe em face da oposição da exceção. (STJ. ERESP 435.835. Rel. Min. Francisco Peçanha Martins. Dj. 04.06.2007)
Sob esse paradigma, portanto, a Constituição passou a ser entendida como meio secundário de aplicação, invocada apenas na resolução de questões lacunosas e omissões legislativas.
Essa concepção, todavia, vem cedendo espaço para uma nova principiologia constitucional que se descortina para os operadores do Direito, resultante dos ventos do neoconstitucionalismo trazidos pela teoria concretista de Hesse, Häberle e Müller; do procedimentalismo, de Habermas e Günther; do direito como integridade de Ronald Dworkin; e do substancialismo de Alexy, que passaram a influenciar todo o universo jurídico. [02]
Decorre, então, que o fenômeno da constitucionalização também deve ser estendido ao direito tributário, impondo-lhe uma nova forma de compreender o Direito, a exemplo do que vem ocorrendo em outros ramos. Binenbojm, sobre a figura da constitucionalização do direito administrativo, identifica com precisão o fenômeno:
O que se quer evidenciar é que, com a elevação do significado da Constituição e com o consenso, quase universal, não só de sua superioridade formal, como também de sua ascendência axiológica sobre todo o ordenamento jurídico, há uma importantíssima modificação no direito administrativo: a lei é substituída pela Constituição como a principal fonte desta disciplina jurídica. (2006, p. 130)
Essa aplicação imediata da Constituição é essencial para a compreensão de que a legislação ordinária perdeu sua força, em face da observância de uma lógica pautada no constitucionalismo e, essencialmente, nos direitos fundamentais.
Aplicada ao tema versado neste artigo, tem-se que a questão da prescrição e da decadência, sobretudo nos tributos sujeitos a lançamento por homologação julgados inconstitucionais – que é o objeto deste estudo – tem cunho constitucional e como tal deve ser tratada.
Por todo o exposto, forçoso registrar que a tese defendida aqui está balizada na primazia dos direitos fundamentais, na ideia de supremacia da Constituição e dos seus respectivos princípios. Por esse raciocínio, salvo melhor juízo, restará demonstrado que a constante mitigação do prazo da repetição de indébito da categoria de tributos que cuida este artigo, implica em ofensa incontornável ao texto constitucional e aos seus princípios.
3 PRESCRIÇÀO, DECADËNCIA NOS
Uma retrospectiva do cenário da jurisprudência em relação à prescrição tributária aponta para um retrocesso no tocante à noção de uma cidadania fiscal garantista que, se acaso não for avaliada com o devido zelo, certamente acarretará consequências gravosas.
Antes de avaliar o impacto dessa transição regressiva, vale conhecer o sentido técnico das expressões examinadas que levam, na prática, muita confusão e desacertos.
A decadência e a prescrição distinguem-se conceitualmente, sendo a primeira definida como o término de um direito em função da desídia de seu titular e, a segunda, como a extinção da pretensão deste em buscar a tutela jurisdicional que lhe assegure o exercício desse direito.
Sob outro viés, também é possível diferenciar os institutos em comento sob o aspecto temporal, precisamente pelo momento de ocorrência de um e de outro, já que:
(…) a verificação dos institutos da decadência e da prescrição dá-se sempre ao se levar em conta a figura do lançamento tributário (formaliza a obrigação tributária, declarando o acontecimento do fato jurídico e aplicando a consequência da regra-matriz de incidência, sendo o modo de se constituir o vínculo, dentro do qual aparecerá o crédito tributário). Antes que o lançamento ocorra, só podemos cogitar a decadência, e, depois de realizado, apenas terá sentido pensar em prazo prescricional.(BRAGHETTA, 2007, p.11)
A decadência analisada sob o enfoque do direito tributário pode ser entendida, basicamente, como a perda do direito da Fazenda de reaver o que efetivamente pagou, mas aplica-se também ao contribuinte que recolheu tributos indevidamente e que, por essa razão, pretende se ver ressarcido.
O art. 168, combinado com o artigo 165, inciso I e III do CTN, estabelecem que o direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso de prazo de 5 (cinco) anos, contados ou da data do pagamento indevido, ou da reforma, anulação, revogação ou rescisão de decisão condenatória.
Como se nota, a legislação silenciou a respeito da compensação dos tributos sujeitos a lançamento por homologação que tenham sido declarados inconstitucionais e, sobre esse respeito repousa o exame sobre o conturbado entendimento dado pelos tribunais à matéria.
Antes de analisar o cerne dessa altercação, importante aclarar um equívoco frequentemente cometido por parcela dos operadores que, para identificar o prazo correto que tem o contribuinte de pleitear o que indevidamente pagou, equiparam compensação à restituição, prática essa altamente funesta aos contribuintes como se verá.
4 DIREITO À COMPENSAÇÃO
A equiparação do direito à compensação do indébito tributário com o direito à restituição, diga-se logo integralmente inapropriada, tem levado a entendimentos distorcidos dos institutos e da aplicação do Código Tributário Nacional, no tocante à devolução dos valores indevidamente recolhidos. Essa equiparação desconsidera as características e peculiaridades de cada um dos institutos, igualando-os pelos seus efeitos.
Compete, pois, diferenciá-los:
Traduzindo: enquanto o direito à autocompensação, nos termos como autorizado pelo art. 74 da Lei nº9.430/96, pode ser exercitado unilateralmente pelo sujeito passivo, independentemente da propositura de qualquer ação ou de prévio requerimento e aceitação da Fazenda Pública, até mesmo contra a sua vontade, desde que respeitadas as imposições legais; o direito à restituição do indébito, em posição diametricalmente oposta, proclama pela imprescindibilidade de prévio requerimento dentro de um interstício temporal limítrofe de cinco anos (caput), a contar das hipóteses catalogadas nos incisos I e II do art.168, do CTN. (TAVARES, 2006, p.88)
Essas distinções ensejam consequências práticas importantes e não apenas teóricas, como já adiantado. A primeira conclusão importante que se pode extrair é que, estampado na forma aqui mencionada, o direito à compensação é enquadrado como direito potestativo, isto é, independe de contestação. Assumindo essa condição, não se submete aos mesmos prazos decadenciais da restituição, mesmo porque não há dispositivo legal que regulamente a matéria.
Não é demais relembrar que o artigo 168 do CTN trata das hipóteses de restituição e não de compensação, verbis:
Art. 168. O direito de pleitear a restituição extingue-se com o decurso do prazo de 5 (cinco) anos, contados:
I - nas hipótese dos incisos I e II do artigo 165, da data da extinção do crédito tributário;
II - na hipótese do inciso III do artigo 165, da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa ou passar em julgado a decisão judicial que tenha reformado, anulado, revogado ou rescindido a decisão condenatória.
Nesse sentido, a única conclusão lógica é de que o direito à compensação não encontra prazo decadencial, conforme acentua a doutrina, verbis:
Sendo o direito de compensar o indébito tributário um direito potestativo, forçoso concluir que não está sujeito à prescrição, a razão é simples, não é necessário uma ação judicial para garantir o gozo da compensação, uma vez que seu detentor não depende da vontade do fisco para usufruir o direito no seu todo. Resta examinar o problema sobre o enfoque da decadência. (...) O direito à compensação do indébito tributário nasce sem essa limitação originária de tempo para ser exercido. O art. 168 do CTN trata apenas do direito de pleitear a restituição, não podendo ser aplicado ao direito de compensar, que, por isso, não está sujeito ao prazo decadencial nele previsto.(MACHADO, 1999, p. 420).
Não significa, todavia, que direitos potestativos estejam imunes à elaboração de prazo decadencial. Na situação específica versada aqui, esse prazo não existe, de sorte que a:
(...) morte desse direito [à compensação] fica a mercê da prévia existência de uma regra jurídica específica (expressa), inadmitindo-se, por conseguinte, a aplicação analógica de prazo prescricional particularmente afeto à restituição do indébito tributário (CTN, art.168), pois, repita-se, regra restitutiva de direito não pode encampar integração analógica ou interpretação extensiva (ampliativa)."(TAVARES, 2006, p.93).
Interpretações em sentido contrário são apenas maneiras de contornar e atentar contra o direito à legalidade, previsto no inciso II, do art.5º da Constituição de 1988, em franca violação ao princípio da segurança jurídica. Atenta, numa ótica particularizada, contra o inciso LIV, também do art.5º da Constituição da República, como burla ao direito do due process of law. Eis o posicionamento da doutrina:
Assim como ao Estado é vedada a cobrança de tributo sem lei válida que o estabeleça, também não lhe compete permanecer na posse ilegítima de valores que lhes foi coercitiva e indevidamente entregues, sob pena de reflexa violação ao princípio constitucional do due process of law; que resguarda o patrimônio jurídico e econômico dos contribuintes pátrios ao estabelecer que "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal."(TAVARES, 2006, p. 32)
Assim, não procede a limitação temporal imposta ao direito à compensação do indébito tributário aos tributos sujeitos a lançamento por homologação julgados inconstitucionais.
A questão, entretanto, está longe de ser resolvida, mesmo pela aplicação imediata da Constituição (direito ao devido processo legal e postulado da legalidade), como apresentado. A falta de consenso dos juizes e tribunais sobre o tema se reflete também no Superior Tribunal de Justiça, que acentuou (e agravou) a inaplicabilidade da Constituição a essas questões.
4.2 DA CONTAGEM INICIAL PARA O EXERCÍCIO DO DIREITO DE COMPENSAR: UMA ANÁLISE DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL
O Superior Tribunal de Justiça vinha adotando o entendimento de que o termo inicial da prescrição da cobrança ou da compensação do crédito de tributos recolhidos indevidamente por declaração de inconstitucionalidade, contava-se a partir da decisão do Supremo Tribunal Federal. [03] Se esta fosse tomada em sede de controle concentrado, seus efeitos operar-se-iam erga omnes e seriam contados da publicação do acórdão, mas, de outro lado, se tomada no controle difuso, como é o caso, os efeitos iriam operar efeitos inter partes da data da publicação do acórdão ou erga omnes se veiculada resolução do Senado Federal.
Sem qualquer mudança aparente que justificasse o entendimento da Corte, esta abruptamente alterou a lógica de julgamento, passando a aplicar a tese dos "cinco mais cinco", isto é, cinco anos de prescrição mais cinco anos de decadência para se reaver o que indevidamente pagou.
Essa orientação, entretanto, foi inadvertidamente alterada quando do emblemático julgamento, em 24 de março de 2004, do EREsp 435.835/SC, de relatoria do Ministro José Delgado, no qual ficou consagrado novamente o entendimento de que, em se tratando de tributos sujeitos a lançamento por homologação, o prazo prescricional nas ações de repetição de indébito ou compensação tributária, iniciar-se-ia decorridos cinco anos, contados a partir do fato gerador, acrescidos, quando a homologação fosse tácita, de mais um quinquênio, computados a partir do termo final do prazo atribuído à Fazenda Pública para aferir o valor devido referente à exação - tese dos "cinco mais cinco". [04]
A modificação estranhou até mesmo os membros do STJ, conforme expressou o ministro Francisco Peçanha Martins no EREsp 435.835/SC, in verbis:
Aplicada a tese da contagem do prazo de cinco anos a partir do decurso do prazo da homologação do tributo, sucedendo a declaração posterior da inconstitucionalidade da lei, fato novo juridicamente relevantíssimo, pois invalida, torna inexistente a homologação, não é possível entender como prescrito o direito de ação ao término do qüinqüídio posterior. O prazo prescricional para efeito do ajuizamento da ação deverá ser contado a partir da declaração da inconstitucionalidade, se em sede de ADIN, ou da Resolução do Senado, se em controle difuso, por isso que nula a exação fiscal.
No mesmo sentido o min. Franciulli Netto destacou a necessidade de manutenção dos julgados dos tribunais até que fato superveniente enseje a modificação dos precedentes firmados pela Corte. Um trecho do decisum explica o fundamento:
Entendo que, com todo o respeito dos que entendem o contrário, queiram ou não, já havia uma tomada de posição desta Seção e de ambas as turmas no sentido de que, quando o controle é concentrado, o termo a quo do prazo prescricional é a data do trânsito em julgado e, quando o controle é difuso, é da data da resolução do Senado Federal. Ora, com todos esses julgados que arrolarei no meu voto, firmamos essa posição. Voltar, sem nenhum fato novo importante, à jurisprudência anterior, data venia, é um retrocesso e realmente não se justifica, tanto assim que manterei meu ponto de vista. Só estou disposto a acompanhar a maioria nos casos em que não há publicação da resolução do Senado. Nos outros casos, esses dois marcos estão sendo até elogiados por inúmeros advogados. Não teria nem como fundamentar agora em sentido contrário, razão pela qual peço vênia ao Sr. Ministro Francisco Falcão, que, aliás, está mudando a sua posição hoje, conforme os inúmeros julgados da lavra de S. Exa. que apontei, e também mil vênias ao Sr. Ministro José Delgado, embora deva, a bem da verdade, dizer que S. Exa sempre votou no cinco mais cinco e não tinha chegado a aderir a essa tese.
(...) não aceito tais críticas, porque, se a tese da inconstitucionalidade está equivocada, também a do "cinco mais cinco" não é uma tese a merecer encômios e rasgados elogios. Vamos sair de uma tese que pode ser até discutível, admito, para voltar a outra que também o é. Entretanto, é importante frisar que precisamos ver também o lado do contribuinte. Sempre há a prescrição qüinqüenal, o lustro prescricional, que é coisa batida e ressabida. Se o Poder Público recebe uma quantia, seja ela qual for, de uma obrigação tida como desamparada pela Constituição, não faz mais do que a obrigação em devolvê-la, ainda que com juros e correção monetária, pois recebeu algo que não lhe era devido. Assim, peço vênia para manter meu voto, não só hoje como posteriormente, e em outras decisões ficarei vencido, porque não estou absolutamente convencido de que este é o momento oportuno para mudarmos de posição. Tenho sempre lembrado aquela velha frase de Victor Nunes Leal, que ganhou foros de autenticidade: "Pior do que engessar a jurisprudência é mudá-la constantemente". (Grifos nossos) [05]
Na decisão do eminente min. Franciulli Netto percebe-se um alinhamento com a tese de que o direito tributário não pode mais permancer alheio às questões constitucionais. Dito de outra forma, a aludida decisão alinha-se claramente à primazia dos postulados constitucionais na aplicação do caso concreto, ao descrever, consciente ou inconscientemente, as premissas estruturais do princípio da vedação do retrocesso social, cuja razão de existir baliza-se na promoção da segurança e na estabilidade das relações jurídicas. Nas palavras de Luis Roberto Barroso, verbis:
Por este princípio, que não é expresso, mas decorre do sistema jurídicoconstitucional, entende-se que se uma lei, ao regulamentar um mandamento constitucional, instituir determinado direito, ele se incorpora ao patrimônio jurídico da cidadania e não pode ser absolutamente suprimido.(2001, p.158)
Esse postulado, portanto, funciona como verdadeiro limitador dos legisladores, da Administração Pública e dos Tribunais, que não deixarão de observar a necessidade de se conservar os progressos feitos no campo de uma cidadania fiscal e de justiça social. O escólio de Ingo Wolfgang Sarlet sobre tal postulado esclarece os argumentos despendidos anteriormente, verbis:
A partir do exposto, verifica-se que a proibição de retrocesso, mesmo na acepção mais estrita aqui enfocada, também resulta diretamente do princípio da maximização da eficácia de (todas) as normas de direitos fundamentais. Por via de conseqüência, o art.5º, parágrafo 1º, da nossa Constituição, impõe a proteção efetiva dos direitos fundamentais não apenas contra a atuação do poder de reforma constitucional (em combinação com o art.60, que dispõe a respeito dos limites formais e materiais às emendas constitucionais), mas também contra o legislador ordinário e os demais órgãos estatais (já que medidas administrativas e decisões jurisdicionais também podem atentar contra a segurança jurídica e a proteção de confiança), que, portanto, além de estarem incumbidos de um dever permanente de desenvolvimento e concretização eficiente dos direitos fundamentais (inclusive e, no âmbito da temática versada, de modo particular os direitos sociais) não pode – em qualquer hipótese – suprimir pura e simplesmente ou restringir de modo a invadir o núcleo essencial do direito fundamental ou atentar, de outro modo, contra as exigências de proporcionalidade. (2004, p.420)
A aplicação desse princípio, portanto, considera que nova alteração sub-reptícia do entendimento da Corte em relação à contagem do prazo prescricional, reduzindo de 10 (dez) para 5 (cinco) anos significa ofensa direta ao princípio da vedação do retrocesso social.
Esse raciocínio, por mais óbvio que pareça, não merece ser compreendido como uma tentativa de petrificação ou fossilização das decisões judiciais. Se a premissa de que os direitos fundamentais possuem um conteúdo essencial for adequada para uma leitura procedimentalmente apropriada do Direito brasileiro, não será menos coerente dizer que modificações inapropriadamente justificadas implicam em ofensa a esses direitos. Nem magistrados, advogados ou legisladores estão autorizados a contrariar os ditames constitucionais, sob pena de, assim procedendo, fazer letra morta do núcleo essencial dos direitos fundamentais.
Perez Luño ensina que:
Por ello, la protección de contenido esencial debe entenderse como um garantía institucional (institucionalizados) por la Constitución y em función de los cuales, precisamente, se reconocem los derechos y libertades fundamentales. En suma, la wesensgehaltgarantie se refiere a la obligación del legislador de salvaguardar la institución, definida por el conjunto de la normativa constitucional y las condiciones historico-sociales que formam el contexto de los derechos y libertades. (LUÑO, 2005, p. 318).
Acredita-se, com base nesses ensinamentos, que afrontar um comando constitucional, matando-o sutilmente com escorreita precisão hermenêutica, é literalmente atentar contra toda a história constitucional já alcançada.
5. CONCLUSÃO
O desenvolvimento da filosofia constitucional vem influenciando nitidamente o direito tributário nacional. Bastante positivo, esse fenômeno obriga o intérprete a proceder de maneira responsável e comprometida com a exaustividade argumentativa, pois o deslinde de questões que antes eram resolvidas à luz de métodos de intepretaçao mecânicos e matematicamente imperfeitos para os fins que se destinam, hoje passaram a merecer o convencimento de todos os envolvidos.
Mais do que isso, essa nova forma de compreender o Direito sugere a introdução dos princípios em questões que, originária e tradicionalmente, estavam limitadas ao apagado debate infraconstitucional.
Assim, pois, ocorreu com a questão da contagem do termo inicial da prescrição e da decadência nas ações declaratórias que visavam à recuperação de tributos sujeitos a lançamento por homologação.
Analisando parcialmente a transição de entendimento do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, mal se percebia o retrocesso social promovido nos inúmeros processos que eram levados a julgamento.
De outro lado, ao ser transposto para a claridade da principiologia constitucional, restou visível a violação ao postulado da vedação do retrocesso social, que rejeita a ideia de que conquistas alcançadas no campo da cidadania fiscal possam ser sumariamente extraídas do ordenamento sem um cuidadoso e aprofundado exame sobre a questão.
Para concluir, diante do que se examinou, tem-se que menos importante do que se definir com exatidão milimétrica o sentido científico de prescrição e decadência, resta ao operador do direito o dever de levar as questões de cunho constitucional para dentro do debate, pois, ao fazê-lo, estará prestando uma lídima homenagem à força normativa da Constituição e, com isso, reafirmando o compromisso democrático esculpido nesse texto.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a efetividade de suas normas: Limites e possibilidades da constituição brasileira. 5. ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p.158.
BRAGHETTA, Daniela de Andrade. Decadência e prescrição em direito tributário – concepções introdutórias. In: CARVALHO, Aurora Tomazini de. (org.). Decadência e prescrição em direito tributário. São Paulo: MP Editora, 2007, p.11.
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos Humanos, Estado de Direito e Constituição. Madrid. Tecnos.2005.
MACHADO, Hugo de Brito. O direito à repetição do indébito tributário. In: MACHADO, Hugo de Brito (coord.). Repetição do Indébito e Compensação no Direito Tributário. São Paulo. Dialética. 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre. Livraria do Advogado. 2004..
SARMENTO, Daniel. Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris Editora. 2006.
TAVARES, Alexandre Macedo. Compensação do Indébito Tributário. São Paulo. Dialética. 2006.
Notas
- Sobre o sentido de paradigma conferir: OLIVEIRA, Marcelo Cattoni. Direito Constitucional. Belo Horizonte. Del Rey. 2001.
- Apesar de existir verdadeiros abismos teóricos entre os autores citados, todos defendem a aplicação da Constituição como verdadeiro ponto de partida para a jornada hermenêutica.
- Recurso Especial nº 137.367/RS, rel. Min. Garcia Vieira.
- Trecho do REsp 509897/DF – Rel. Min. Denise Arruda. 1ª Turma. DJ 14.02.2006.
- EREsp 435.835/SC.