Muito se tem debatido acerca de uma questão essencialmente ligada à vivência democrática e que envolve a liberdade religiosa frente à laicidade do Estado. Teria o Poder Público o direito de interferir em questões normativas ou prescritivas da fé, coibindo práticas consideradas abusivas e até mesmo criminosas, mesmo que a Constituição garanta a liberdade de crença e a separação Estado - Igreja? Não há resposta fácil para essa pergunta, o que não significa que não deva ser buscada.
Em artigo recentemente publicado em uma revista jurídica, a autora [01], referindo-se à posição adotada pelo presidente da França, Nicolas Sarkozy, com relação ao uso da burca pelas mulheres muçulmanas, defendeu uma restrição praticamente absoluta à interferência do Estado em questões de doutrinas e práticas religiosas, invocando, com base no direito constitucional, a não ingerência estatal nas normas internas das igrejas e em suas doutrinas teológicas, por mais absurdas que possam parecer. Segundo a articulista, "aceitar tese em sentido contrário equivale a dizer que as doutrinas da fé, para serem legítimas, precisam adequar-se à Constituição, o que transfere ao Estado a inaceitável condição de censor das crenças."
Aparentemente, essa posição é irretocável, pelo menos no que se refere ao Brasil, pois tem base constitucional. De fato, não cabe ao Estado normalizar procedimentos ou práticas religiosas, nem adotar uma religião ou uma identificação simbólica que a ela se vincule. Sob esse prisma, a perpetuação dos crucifixos e demais símbolos religiosos em prédios públicos é totalmente inaceitável.
Há, contudo, um aspecto sobre o qual os políticos, os estudiosos do Direito e das demais ciências humanas e sociais deveriam se debruçar com mais profundidade. Até que ponto podem ser aceitas e toleradas tradições religiosas que conflitam com o ordenamento jurídico de um país? Refiro-me, em especial, à comemoração muçulmana xiita que ocorre anualmente no dia da Ashura (o décimo dia), em memória do martírio e morte de Husayn ibn Ali, neto do profeta Maomé, fundador do islamismo. Esse fato ocorreu em 10 de outubro de 680 da nossa era, ou seja, há cerca de 1.330 anos, mas, mesmo assim, os xiitas o lamentam como se tivesse ocorrido ontem.
Nesse dia, dezenas de milhares de muçulmanos xiitas em diversos países, não só nas regiões arábica, mediterrânea e asiática, mas também na Europa e nas Américas, se auto flagelam em homenagem ao martírio de seu vetusto líder. Mas não é só isto: crianças também são flageladas (somente meninos), por meio de cortes em suas cabeças, até que copiosos filetes de sangue lhes escorram pelas faces aterrorizadas. Imagens dessa insanidade coletiva são mostradas anualmente em todas as televisões do mundo e correm soltas pela internete, para o nosso horror.
Até que ponto os governos dos países civilizados devem compactuar com esta e com outras práticas semelhantes, que, mesmo tendo natureza religiosa, são criminosas? Em nosso país não seria difícil capitulá-las em vários artigos do Código Penal e do Estatuto do Adolescente e da Criança. Além disso, essas "tradições religiosas" ferem tratados internacionais de proteção aos direitos das crianças, dos quais a maioria dos países civilizados é signatária, entre eles o Brasil.
A cláusula de separação entre o Estado e as confissões religiosas não pode servir de escudo para proteger práticas criminosas, quaisquer que sejam suas motivações. Agredir, ferir, maltratar e humilhar crianças indefesas é crime e, como tal, deve ser punido. Não se trata de hostilizar a fé, mas sim de garantir a proteção constitucional dos direitos das crianças (e, por que também não dizer, das mulheres, menosprezadas e muitas vezes maltratadas pelas grandes religiões monoteístas).
Quando há um conflito entre normas de igual valor constitucional, umas não derrogam as outras; ao contrário, todas continuam válidas no ordenamento jurídico, cabendo aos intérpretes da lei, em especial o Poder Judiciário, aplicar os princípios igualmente constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade para aferir, no caso concreto, qual das normas há de prevalecer sobre as demais.
Assim, havendo confronto entre o princípio da liberdade de crença e o da proteção aos direitos humanos, em especial os das crianças, há de sempre prevalecer o segundo, em homenagem ao princípio maior da dignidade humana, que no direito positivo brasileiro está petrificado no primeiro artigo da nossa Carta Magna, em seu inciso III, como que a nos mostrar um caminho, um guia seguro, logo na abertura do texto maior, que deve nortear a aplicação de todos os demais princípios, valores e comandos constitucionais.
Em que pese a respeitabilidade dos juristas e dos outros estudiosos que defendem a separação absoluta e a não intervenção do Estado em assuntos religiosos, não vejo como possa prosperar, no mundo civilizado ao qual pertencemos, ou pretendemos pertencer, a idéia de que se possam tolerar práticas criminosas medievais em nome da fé. Nada justifica o martírio e o sofrimento de inocentes, e o Estado deve coibi-los com todo o rigor.
Notas
01 Maria Cláudia Bucchianeri Pinheiro, Consulex Ano XIII, Nº 309, página 41