Resumo
: Contrato administrativo. Folha de pagamento. Licitação. Pregão. Dispensa.1. Introdução
Nos últimos anos, Estados, Municípios e até mesmo órgãos da Administração Pública Federal têm firmado contratos com instituições financeiras, visando à efetivação de sua folha de pagamento. Tais operações têm sido ordinariamente chamadas de "alienação da folha de pagamento", não obstante sejam em geral instrumentalizadas por meio de contratos administrativos de prestação de serviços, antecedidos de procedimento licitatório.
Assim, nesses contratos é em regra prevista exclusividade para que todos os servidores ativos e inativos recebam por meio da contratada a sua remuneração. Em troca dessa exclusividade, as instituições financeiras pagam valores à Administração, seja in pecunia, seja in natura, com bens determinados ou sob a forma da construção de bens imóveis, por exemplo.
Diante desse fenômeno, destina-se o presente estudo a analisar a sua natureza jurídica, bem como as principais questões atinentes a ele, tais como a viabilidade jurídica de serem contratadas instituições financeiras privadas, a modalidade de licitação aplicável e a possibilidade de dispensa de licitação no caso de instituições públicas.
2. Da natureza jurídica do bem em questão e a possibilidade de sua negociação
Para bem situar a questão, impõe-se definir qual a natureza jurídica da operação de "alienação da folha de pagamento", de modo a que se possa definir qual o instrumento jurídico mais adequado para seu tratamento.
A primeira hipótese que se levanta é a possibilidade de se dar tratamento de "bem" ao direito que têm as entidades públicas de contratar instituições financeiras, visto que dele decorre valor econômico. Essa questão foi tratada pelo Plenário do TCU [01], o qual concluiu que tal "poder" de contratar, por gerar receitas, é um ativo especial intangível para o ente público, tendo assim exposto seu entendimento:
Assim, conclui-se que o direito de o ente público contratar instituições financeiras para prestar serviços financeiros necessários à consecução de suas atividades de auto-administração e implementação de ações governamentais pode ser considerado um ativo especial intangível e, nesta condição, pode ser ofertada sua exploração econômico-financeira ao mercado, por meio de licitação.
Quanto à classificação de tal "bem", o mesmo acórdão refere que, "do ponto de vista meramente jurídico, parece não haver óbice em considerar a folha de pagamento da Previdência Social como um bem público de uso especial de natureza móvel e incorpórea". Tais referências, em que pese adequadas ao objeto em questão, merecem ressalvas no tocante ao que represente efetivamente o "bem jurídico" em análise.
Observe-se, em primeiro lugar, que o ato de realizar o pagamento aos servidores não pode ser considerado em si como um bem, uma vez que constitui mera atividade administrativa operacional, que inclusive é onerosa para as instituições financeiras que a realizam, visto que demandam toda uma estrutura de material e pessoal. Essa atividade, diga-se, sequer pode ser considerada como serviço público, uma vez que não se destina a "satisfação de necessidades essenciais e secundárias da coletividade", como ensina José dos Santos Carvalho Filho [02]. Em verdade, o pagamento de servidores é típica atividade bancária que se assemelha às demais atividades-meio da Administração, tais como os serviços de limpeza, segurança, copa, etc.
A particularidade dessa atividade é que ela, embora demande custos pela contratada, traz em si um proveito indireto de grandes proporções, uma vez que a instituição financeira passa a ter como potenciais clientes um grande número de servidores públicos, ativos e inativos, bem como seus pensionistas. Some-se a isso o fato de que tais pessoas geralmente possuem renda e estabilidade laboral superior à média da população, sendo a instituição menos sujeita a eventuais inadimplementos gerados por demissões, por exemplo.
Diante disso, pode-se dizer que o bem de que se está falando não é a "folha de pagamento", ou mesmo a atividade em questão, mas a vantagem advinda à instituição financeira que a efetive. Por essa razão, mostra-se correto o entendimento esposado pelo TCU, ao considerar que o "poder" que tem a Administração de contratar instituição financeira para operacionalizar a folha de pagamento, por representar vantagem econômica, é um ativo, que pode ser objeto de negociação.
Contudo, é de se ver que não parece adequado caracterizar a vantagem advinda da operacionalização da folha como um bem autônomo, uma vez que ela é uma decorrência intrínseca do contrato de prestação do serviço de operacionalização da folha de pagamento, sob regime de exclusividade. Em outras palavras, dar tratamento de "bem" à folha de pagamento, ou à eventual vantagem decorrente de sua instrumentalização, é entendimento que criaria diversas dificuldades para sua negociação, uma vez que não se mostrariam adequadas as modalidades típicas previstas no direito administrativo, tais como a autorização, permissão ou concessão, não se podendo igualmente cogitar de alienação (art. 17 da Lei 8.666/93).
Observe-se que tanto a autorização quanto a permissão de uso de bem público são atos unilaterais da Administração, marcados pela precariedade [03]. No caso em questão, não há como se vislumbrar uma simples utilização exclusiva do bem pelo particular, mas sim uma operação complexa que envolve concomitantemente a prestação de um serviço específico e determinado. Pelas mesmas razões, não há como se cogitar da concessão de bem público, nem das formas privadas que podem ser utilizadas, tais como a locação, por exemplo, ainda que elas sejam contratuais e não sujeitas à precariedade atinente à autorização e à permissão.
Por isso, a forma que se mostra mais adequada para que possa ser realizada a operação é o contrato administrativo de prestação de serviços. A única peculiaridade a esse respeito seria o fato de que, ao invés de pagar, a Administração receberia vantagens em dinheiro ou em bens.
Em realidade, a ocorrência de vantagens indiretas para o particular em contratos administrativos não é nenhuma novidade, e é em muitos casos decorrência natural de sua execução. Veja-se, por exemplo, que a montadora que se sagre vencedora de licitação para a compra de viaturas policiais certamente terá uma maior projeção perante o mercado, uma vez que veículos de sua marca estarão diariamente nas ruas realizando patrulhamento e sendo vistos pela população. Essa vantagem certamente é considerada no momento de formulação da proposta, visto que, diante de eventual aumento de vendas para o mercado privado, gerado pela maior exposição de sua marca, poderá a licitante reduzir sua margem de lucro.
Outro exemplo pode ocorrer na contratação de empresas prestadoras de serviços de informática. Certamente as empresas que desenvolvam softwares para grandes órgãos públicos terão maior prestígio no mercado privado, podendo isso aumentar seus lucros em negócios com particulares. Contudo, em tais casos, essas vantagens indiretas auferidas pela contratada ainda são menores do que o custo que o contrato administrativo lhe demanda, razão pela qual mostra-se indispensável o pagamento de valores pelo Poder Público.
De outra parte, pode-se pensar, ainda, num caso em que as vantagens indiretas sejam equivalentes ao custo do contrato, não havendo qualquer pagamento in pecunia pelas partes. Tal situação ocorreu, por exemplo, nas obras de reforma do Palácio da Alvorada, as quais foram custeadas integralmente por um grupo de empresas e efetuadas pela Associação Brasileira de Infra-Estrutura e Indústrias de Base (Abdib) [04]. Nesse caso, a divulgação do nome das empresas, bem como o prestígio de ter realizado a restauração de tão famoso prédio público, foram, ao menos em tese, equivalentes ao ônus que tiveram com a obra.
No caso dos contratos envolvendo prestação de serviços de operacionalização de folha de pagamento, a peculiaridade reside no fato de que as vantagens indiretas auferidas pela instituição financeira com a venda de seus produtos e serviços é expressivamente superior aos custos que o contrato administrativo lhe demanda, daí o interesse econômico que têm as instituições financeiras em tais operações.
Se por um lado a Instituição Financeira paga pelo direito de ser contratada e tem o ônus de prestar um serviço adequado à Administração, por outro tem em seu favor a exclusividade de efetuar o pagamento a um grande contingente de potenciais clientes. Por tais razões, verifica-se que a forma mais adequada de ser instrumentalizada a operação em questão é o contrato de prestação de serviços, ainda que o ônus de pagamento recaia exclusivamente sobre a contratada.
3. A questão da exclusividade da instituição financeira para realizar o pagamento de servidores.
A vantagem econômica advinda do pagamento de vencimentos de servidores, como referido, é intrínseca à contratação de instituição financeira para tal finalidade. Essa vantagem se torna mais expressiva no momento em que seja prevista a exclusividade de apenas essa instituição fazer os pagamentos, impondo-se analisar a legalidade de tal aspecto.
Numa primeira análise, poder-se-ia argumentar que essa exclusividade retiraria a liberdade dos beneficiários dos valores, obrigando-os a contratar apenas com uma determinada instituição financeira. Igualmente, essa medida impediria outras instituições financeiras de efetuar os pagamentos aos servidores, prejudicando a concorrência e o livre exercício da atividade empresarial.
Tais objeções, em que pesem relevantes, não se justificam. Observe-se que, sob o viés do servidor, não lhe é causado nenhum prejuízo que possa tornar a exclusividade uma medida ilícita ou abusiva, visto que a ele não é imposto qualquer ônus para o recebimento dos valores. Isso porque a conta a ser aberta é totalmente isenta de tarifas, isenção essa que abrange inclusive a remessa da integralidade dos valores para outras instituições financeiras de livre escolha do seu titular.
Veja-se, quanto a isso, que a Resolução 3.402 do Conselho Monetário Nacional, publicada em 08/09/2006, prevê a prestação de serviços de pagamento de salários, aposentadorias e similares sem cobrança de tarifas. Pelos termos dessa norma, as instituições financeiras que instrumentalizem tais pagamentos devem fornecer serviços de saque, total ou parcial, e de transferência dos valores para outras instituições sem qualquer ônus para o seu titular, ressalvado o caso de eventuais serviços extraordinários contratados por ele.
Além disso, se, apenas por hipótese, o pagamento não fosse instrumentalizado por intermédio de instituição financeira, o servidor teria que receber seus proventos diretamente na sala do órgão responsável, que o realizaria igualmente de forma "exclusiva". A faculdade que hoje existe de efetuar o pagamento diretamente em quaisquer instituições financeiras indicadas pelo servidor é mera liberalidade da Administração, cuja supressão criaria, no máximo, uma mera necessidade de readaptação ao novo sistema.
Do ponto de vista do direito da concorrência [05], é de se ver que igualmente não há qualquer ilicitude na exclusividade em comento. Isso porque não se está impedindo o servidor de contratar com outras instituições financeiras, nem de nelas manter os valores de seus proventos. Em realidade, como visto, o servidor poderá remeter os valores de sua remuneração integralmente para a instituição financeira que quiser, sem qualquer ônus, não havendo como ser prejudicado o mercado do seguimento bancário.
Em realidade, vê-se a necessidade de ponderar duas situações opostas. De um lado, a exclusividade do pagamento em apenas uma instituição financeira poderá causar algum incômodo aos beneficiários dos valores, especialmente no momento inicial de sua implantação. Contudo, de outra parte, colocam-se as vantagens que serão auferidas pela Administração, que terá uma redução de diligências administrativas relativas ao pagamento, geradas pela sua simplificação, além de perceber valores que poderão ser utilizados para a melhoria da infraestrutura do próprio órgão, melhorando inclusive a qualidade do ambiente de trabalho dos servidores.
Assim, visto que não há qualquer ilegalidade na previsão de exclusividade, resta verificar se é possível a contratação de instituições privadas para o objeto em análise.
4. Possibilidade de contratação de instituições privadas para a operacionalização da folha de pagamento
Desde logo é de se ver que não há, do ponto de vista legal ou constitucional, qualquer óbice à contratação de instituições privadas para a realização do pagamento de servidores. Isso porque os valores que são depositados nas contas não podem ser considerados como "disponibilidades de caixa", os quais só podem ser depositados no Banco Central ou, no caso dos Estados, DF e Municípios, em instituições oficiais, como prevê o art. 164, § 3º, da Constituição da República.
Em realidade, os valores de disponibilidade de caixa pertencentes às entidades federativas jamais poderiam ser custodiados em instituições privadas, sob pena de afronta direta ao dispositivo constitucional. A esse respeito, é de se ver que mesmo no caso de o Poder Público deter parte não majoritária do capital, ou estar-se diante de instituição financeira originalmente pública, mas posteriormente privatizada [06], jamais poderá ser derrogada a norma constitucional, a não ser em caso de lei de caráter nacional, no caso dos entes diversos da União.
Analisando a hipótese em questão, entretanto, vê-se que os valores a serem operacionalizados pela instituição financeira pertencem exclusivamente aos servidores ativos, inativos e pensionistas do órgão pagador, não se confundindo com valores que se configurem como disponibilidades de caixa do ente público. Em realidade, no momento em que o Poder Público transfere os valores para as contas titularizadas pelos seus servidores, dá-se a transmissão da propriedade de tal numerário, razão pela qual se está diante de bens eminentemente particulares. Por essa razão, não incide a norma constitucional referida à hipótese, não havendo qualquer impedimento a que instituições privadas atuem nesse âmbito.
Nesse sentido, veja-se que o STF já decidiu a respeito da possibilidade de crédito da folha de pagamento em banco privado [07], afastando a alegação de ofensa ao art. 164, § 3º, CF. Ao redigir o voto vencedor, o Min. Carlos Velloso, relator para o acórdão, assim expôs a questão, reproduzindo o voto que havia proferido no RE 444056:
Os pagamentos realizados aos servidores municipais não são disponibilidades de caixa, pois tais recursos, uma vez postos à disposição de servidores, têm caráter de despesa liquidada, pagamento feito, não estando disponíveis ao Município, pessoa jurídica de direito público interno, mas estão disponíveis aos servidores, credores particulares.
Dito isso, conclui-se que não há qualquer óbice a que a folha de pagamentos de entes da Administração Direta seja instrumentalizada por instituições financeiras privadas.
5. Modalidade de licitação para a contratação em questão
Como já referido, o instrumento adequado para a instrumentalização de negócio envolvendo folha de pagamento é o contrato administrativo de prestação de serviços, não se devendo aplicar as formas atinentes à alienação ou ao uso de bens públicos por particulares.
Nesse contexto, resta perquirir se, em se tratando de serviços bancários de operacionalização de folha de pagamento, poder-se-ia aplicar o pregão, previsto na Lei 10.520/02, nos seguintes termos:
Art. 1º Para aquisição de bens e serviços comuns, poderá ser adotada a licitação na modalidade de pregão, que será regida por esta Lei.
Parágrafo único. Consideram-se bens e serviços comuns, para os fins e efeitos deste artigo, aqueles cujos padrões de desempenho e qualidade possam ser objetivamente definidos pelo edital, por meio de especificações usuais no mercado.
Analisando as peculiaridades do objeto do contrato a ser firmado, vê-se que o serviço de operação da folha de pagamentos, envolvendo abertura de contas, saques, transferências, etc. pode ser perfeitamente caracterizado como um "serviço comum". Isso porque é plenamente possível definir em edital os padrões de desempenho e qualidade que serão exigidos, tais como número e área de abrangência de agências, caixas eletrônicos, capacidade de atendimento, infraestrutura, etc. Além disso, é de se ver que para a atividade bancária existe uma série de normas específicas expedidas pelo CMN e pelo Banco Central, tornando ainda mais facilitado o estabelecimento de padrões contratuais.
No entanto, é importante observar que a Lei 10.520/02 consigna expressamente que o critério para julgamento e classificação das propostas será o de "menor preço", nos seguintes termos:
Art. 4º A fase externa do pregão será iniciada com a convocação dos interessados e observará as seguintes regras:
X - para julgamento e classificação das propostas, será adotado o critério de menor preço, observados os prazos máximos para fornecimento, as especificações técnicas e parâmetros mínimos de desempenho e qualidade definidos no edital;
Diante disso, e considerando que na hipótese em questão o interesse da Administração seria o de receber o "maior preço", o TCU tem considerado lícito aplicar tal critério de julgamento ao pregão, de forma excepcional, por entender que tal medida se coaduna com o interesse público [08]:
A adoção de critério de julgamento de propostas não previsto na legislação do pregão, do tipo maior valor ofertado para o objeto mencionado no item anterior, somente seria admissível, em princípio, em caráter excepcional, tendo em vista o relevante interesse público da aplicação deste critério alternativo para o atingimento dos objetivos institucionais do ente público e como mecanismo concretizador do princípio licitatório da seleção da oferta mais vantajosa para a Administração. Tal especificidade deve obrigatoriamente ser motivada e justificada pelo ente público no processo relativo ao certame, além de ter demonstrada sua viabilidade mercadológica.
Em realidade, é adequado o posicionamento transcrito, uma vez que não há óbice a que seja aplicado ao pregão critério de julgamento que não esteja previsto expressamente na lei. Isso porque se deve ter em mente a ratio da lei que criou tal modalidade de licitação, que é justamente a de propiciar à Administração a contratação mais vantajosa de bens e serviços comuns. Nessa senda, poder-se-ia dar à expressão "menor preço", constante da norma, a interpretação de "melhor preço", contemplando a hipótese em tela.
Assim, considerando que no caso em questão as vantagens advindas ao contratado seriam superiores aos ônus que o contrato lhe acarretaria, mostra-se totalmente adequado que, ao invés de a Administração escolher o "menor preço", opte ela por contratar com aquele que lhe pagar o "maior preço" pela contratação.
Frise-se que, ao fazer-se essa interpretação, não se está desvirtuando o pregão, ou transformando-o numa espécie de leilão, dado que, como visto, o objeto do contrato é a prestação de serviços comuns, não se confundindo com a alienação de bens ou sua exploração por terceiros.