Introdução
A queima da cana-de-açúcar é uma técnica centenária utilizada no seu cultivo. O fogo é utilizado para queimar a folhagem, retirar a cera que cobre o vegetal, facilitar o corte pelos bóias-frias e outras operações após o corte.
O Brasil tem, hoje, cerca de cinco milhões de hectares de cana-de-açúcar plantados, 75% no Estado de São Paulo. Da área total cultivada, 80% é queimada nos seis meses de pré-colheita, o que equivale a, aproximadamente, quatro milhões de hectares. Com a queima de toda essa biomassa por longo período, são enviadas à atmosfera inúmeras partículas e gases poluentes, que influem direta e indiretamente na saúde de praticamente todos os habitantes do interior do Estado de São Paulo.
Diversos estudos, realizados por pneumologistas, biólogos e físicos, confirmam que as partículas suspensas na atmosfera, especialmente as finas e ultrafinas, penetram no sistema respiratório provocando reações alérgicas e inflamatórias. Além disso, não raro, os poluentes vão até a corrente sanguínea, causando complicações em diversos órgãos do organismo.
O Dr. José Eduardo Delfini Cançado, da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tisiologia (SPPT), em tese de doutorado sobre o assunto, que apresentou à Faculdade de Medicina da USP, e que teve como objeto de pesquisa a cidade de Araraquara, no ano de 1995, concluiu que o aumento de partículas de fuligem (provenientes da queima da cana) era diretamente proporcional ao crescimento das inalações realizadas no Hospital São Paulo de Araraquara. A tese do Dr. Cançado baseou-se também no estudo de uma física, da Escola Superior de Agronomia Luiz de Queiroz (ESALQ-USP), que coletou e analisou a composição das partículas suspensas na região de Piracicaba. Assim, tornou possível definir quanto da poluição atmosférica da cidade advém da queima de combustíveis fósseis (automóveis, principalmente), da indústria e da queima de biomassa (cana, principalmente). A análise dos dados confirmou que 75% das partículas finas provêm da queima da cana-de-açúcar.
A poluição atmosférica pode ser medida em microgramas de partículas poluentes por metro cúbico de ar. A taxa permitida pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente é 50 microgramas. A média anual calculada na região de Piracicaba foi de 56, exatamente a mesma que a da cidade de São Paulo. O dado mais alarmante, porém, é que nos seis meses da safra, a taxa, em Piracicaba, sobe para 88 e na entressafra cai para 29.
A tese do Dr. José Eduardo Delfini Cançado evidencia que os poluentes têm causado inúmeras internações e, consequentemente, altos gastos para o Sistema Único de Saúde.
Tendo em vista esta situação e as diversas ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público, o Superior Tribunal de Justiça tem reconhecido, ultimamente, a ilicitude da prática da queimada de cana-de-açucar.
1. O artigo 27, parágrafo único, do Código Florestal
O artigo 27, parágrafo único, do Código Florestal, dispõe que: "se as peculiaridades locais ou regionais justificarem o emprego de fogo em práticas agropastoris ou florestais, a permissão será estabelecida em ato do Poder Público, circunscrevendo as áreas e estabelecendo normas de precaução."
Neste dispositivo legal estaria a suposta permissão para que as queimadas dos canaviais sejam consideradas lícitas. Este artigo é sempre utilizado pelos produtores de cana-de-açúcar nas contestações das ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público visando a proibição das queimadas e a reparação pelos danos ambientais causados.
Para o leitor desavisado, tal dispositivo realmente permite a queimada dos canaviais. Porém, esta não é a melhor interpretação que se pode extrair do dispositivo em comento.
A melhor exegese do dispositivo legal é aquela dada pelo Ministro João Otávio de Noronha, que entende que em se tratando de atividade produtiva, mormente as oriundas dos setores primário e secundário, o legislador tem buscado, por meio da edição de leis e normas que possibilitem a viabilização do desenvolvimento sustentado, conciliar os interesses do segmento produtivo com os da população, que tem direito ao meio ambiente equilibrado. Segundo a disposição do art. 27 da Lei n. 4.771/85, é proibido o uso de fogo nas florestas e nas demais formas de vegetação — as quais abrangem todas as espécies —, independentemente de serem culturas permanentes ou renováveis. Isso ainda vem corroborado no parágrafo único do mencionado artigo, que ressalva a possibilidade de se obter permissão do Poder Público para a prática de queimadas em atividades agropastoris, se as peculiaridades regionais assim indicarem. Tendo sido realizadas queimadas de palhas de cana-de-açúcar sem a respectiva licença ambiental, e sendo certo que essas queimadas poluem a atmosfera terrestre, evidencia-se a ilicitude de ato, o que impõe a condenação à obrigação de não fazer, consubstanciada na abstenção de tal prática.
2. O entendimento do Superior Tribunal de Justiça e o Princípio do Desenvolvimento Sustentável
Foi noticiado, no dia 10 de agosto de 2009, que a 2ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve a decisão judicial que proibiu a queimada de palha como método preparatório para colheita de cana-de-açúcar no interior de São Paulo.
A proibição foi estabelecida no julgamento de uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público de São Paulo (MP-SP) com o objetivo de proteger o meio ambiente e a saúde dos trabalhadores que fazem o corte da planta.
Além de vetar a queima da cana-de-açúcar, a Justiça paulista condenou produtores a pagar indenização correspondente a 4.936 litros de álcool por cada alqueire eventualmente queimado. A decisão foi contestada em recurso interposto pelos produtores, mas o entendimento da primeira instância foi mantido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP).
Descontentes com o resultado do julgamento, os produtores ingressaram com outro recurso no STJ alegando que a decisão violava o artigo 27 do Código Florestal Brasileiro previsto na Lei 4.771/65.
Segundo o STJ, o dispositivo proíbe o uso de fogo em florestas e outras formas de vegetação, mas prevê uma exceção: autoriza o emprego de fogo se peculiaridades locais ou regionais justificarem tal prática em atividades agropastoris e florestais. Na última hipótese, a lei ressalva que deve haver permissão do Poder Público para a realização da queimada.
Nas razões do recurso, os produtores fizeram uma interpretação extensiva do Código Florestal, argumentando que o artigo 27 abrangeria não somente as queimas relativas a atividades culturais de comunidades protegidas, mas também práticas comerciais organizadas e estruturadas para a produção de insumos em massa.
Seguindo precedentes do tribunal e acolhendo os fundamentos do voto do relator do recurso, ministro Humberto Martins, os demais integrantes da 2ª Turma entenderam que, considerando a necessidade de o desenvolvimento ser sustentável, há hoje em dia instrumentos e tecnologias modernos que podem substituir a queimada sem inviabilizar a atividade econômica industrial.
Em seu voto, o ministro relator explicou que a exceção prevista na lei tem o objetivo de compatibilizar dois valores protegidos pela Constituição: o meio ambiente e a cultura, esta última compreendida como o "modo de fazer" de determinada comunidade.
Assim, o ministro sustentou, a interpretação do dispositivo não pode abranger atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas porque, quando há formas menos lesivas de exploração, o interesse econômico não pode prevalecer sobre a proteção ambiental.
Para o relator, ao ressalvar as peculiaridades locais e regionais, a lei procura proteger de violações a cultura, o modo de vida e a forma de produção agrícola das comunidades.
O magistrado argumentou que não é a atividade industrial a destinatária da exceção legal, uma vez que o setor possui os instrumentos adequados para exploração da atividade agrícola sem causar grandes danos ao meio ambiente.
Para fundamentar seu voto, o ministro Humberto Martins se valeu de informações de diversas ciências relacionadas à área ambiental. "As ciências relacionadas ao estudo do solo, ao estudo da vida, ao estudo da química, ao estudo da física devem auxiliar o jurista na sua atividade cotidiana de entender o fato lesivo ao Direito Ambiental.", observou ele.
Citando estudo de um engenheiro florestal do Paraná, o ministro ressaltou que a queima da palha da cana-de-açúcar é extremamente danosa à saúde e ao meio ambiente. A queimada consiste em atear fogo no canavial para destruir cerca de 30% da biomassa (folhas secas e verdes), que não interessam à indústria do açúcar e do álcool.
A queima da palha libera gás carbônico e outros gases na atmosfera nocivos à saúde. Entre o coquetel de substâncias químicas liberados destacam-se os HAPs (Hidrocarbonetos Aromáticos Policíclicos), componente altamente cancerígeno.
De acordo com estudo realizado pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), foi constatado um aumento de HPAs no organismo de cortadores de cana e no ar das imediações de canaviais durante a época de safra da planta. Na safra, quando cortam cana queimada, os trabalhadores ficam expostos à fumaça da queima.
Informações dos autos também mostraram que as condições ambientais de trabalho do cortador de cana queimada são muito piores que as condições de corte da cana crua, pois a temperatura no canavial queimado chega a mais de 45ºC.
Além disso, a fuligem do insumo penetra na corrente sanguínea do trabalhador por meio da respiração. Substâncias cancerígenas presentes na fuligem já foram identificadas na urina de cortadores.
As queimadas também causam grande impacto sobre a fauna. Grande número de animais silvestres encontra abrigo e alimento em meio ao canavial, formando ali um nicho ecológico.
Informações da polícia ambiental de São Paulo revelam que, após as queimadas nos canaviais, são encontrados muitos animais mortos, moribundos ou abalados pelo calor, fumaça e fogo.
Este julgamento virou notícia em virtude de uma série de outros julgamentos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça que proibiram a prática da queimada de canaviais. São exemplos os seguintes julgados:
ACP. QUEIMADAS. CANAVIAIS.
In casu,
trata-se originariamente de ação civil pública (ACP) ajuizada pelo MP estadual com o fim de proibir queimada da palha de cana-de-açúcar como método preparatório da colheita desse insumo e de condenar os infratores ao pagamento de indenização da ordem de 4.936 litros de álcool por alqueire queimado. A sentença julgou procedentes todos os pedidos e foi mantida pelo Tribunal a quo. Nessa instância especial, alegou-se que houve ofensa ao art. 27 da Lei n. 4.771/1965 (Código Florestal Brasileiro), uma vez que a queimada é permitida em certos casos, e que a extinção da sua prática não deve ser imediata, mas gradativa, na forma estabelecida pela lei. A Turma negou provimento ao agravo regimental, assentando que estudos acadêmicos ilustram que a queima da palha da cana-de-açúcar causa grandes danos ambientais e que, considerando o desenvolvimento sustentado, há instrumentos e tecnologias modernos que podem substituir tal prática sem inviabilizar a atividade econômica. A exceção prevista no parágrafo único do art. 27 do referido diploma legal (peculiaridades locais ou regionais) tem como objetivo a compatibilização de dois valores protegidos na CF/1988: o meio ambiente e a cultura (modos de fazer). Assim, sua interpretação não pode abranger atividades agroindustriais ou agrícolas organizadas, diante da impossibilidade de prevalência do interesse econômico sobre a proteção ambiental, visto que há formas menos lesivas de exploração. Precedentes citados: REsp 161.433-SP, DJ 14/12/1998, e REsp 439.456-SP, DJ 26/3/2007. AgRg nos EDcl no REsp 1.094.873-SP, Rel. Min. Humberto Martins, julgado em 4/8/2009.DIREITO AMBIENTAL. QUEIMADA. CANA-DE-AÇÚCAR.
O legislador sempre buscou conciliar os interesses do segmento produtivo com os da população, que tem o direito ao equilíbrio do meio ambiente, mormente ao emprego do desenvolvimento sustentado. O art. 27 da Lei n. 4.771/1985 (Código Florestal), regulamentada pelo posterior Dec. n. 2.661/1998, proíbe o uso de fogo nas florestas e nas demais formas de vegetação, conceito que abrange todas as espécies, tanto culturas permanentes quanto renováveis. Aquela legislação ressalva, apenas, a possibilidade de obtenção de permissão do Poder Público para a prática de queimadas como integrante da atividade agropastoril e florestal, isso se as peculiaridades regionais assim o indicarem. Dessarte, visto que realizadas as queimadas da palha de cana-de-açúcar sem a respectiva licença ambiental, fato de ocorrência freqüente no país, e na certeza de que essas queimadas poluem a atmosfera, está evidenciada a ilicitude do ato a ponto de se impor condenação à abstenção dessa prática.
LICENÇA AMBIENTAL. CULTURAS RENOVÁVEIS. QUEIMADAS.
Na queimada de apenas cinco hectares de cana-de-açúcar em proporção ínfima, descabe a condenação de indenização, porém é devida a obrigação de não-fazer consubstanciada na abstenção de fogo no preparo para o plantio e colheita de culturas renováveis, tais como lavoura de cana-de-açúcar, sob pena de imposição de multa diária estabelecida na sentença,
ex vi do art. 27 do Código Florestal. REsp 439.456-SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 3/8/2006.É importante ressaltar que todos esses julgados foram realizados em nome de um princípio maior que é o princípio do desenvolvimento sustentável.
O princípio do desenvolvimento sustentável aparece como princípio 4, da ECO/92: "A fim de alcançar o desenvolvimento sustentável, a proteção do meio ambiente deverá constituir-se como parte integrante do processo de desenvolvimento e não poderá ser considerada de forma isolada."
Desenvolvimento sustentável é definido pela Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento como aquele que atende às necessidades do presente sem comprometer a possibilidade de as gerações futuras satisfazerem a suas próprias necessidades, podendo também ser empregado com o significado de melhorar a qualidade de vida humana dentro dos limites da capacidade de suporte dos ecossistemas.
Com a previsão da avaliação de impacto ambiental (EIA/RIMA) a lei de Política Nacional do Meio Ambiente (lei nº 6938/81) o acolhe.
Sendo assim, o panorama é de que a queimada de cana-de-açúcar é uma prática ilícita que demanda reparação ambiental, nos termos dos arestos acima e no princípio do desenvolvimento sustentável.
Conclusão
Com base em tudo quanto foi exposto, conclui-se que, em nome do princípio do desenvolvimento sustentável, o Superior Tribunal de Justiça vem decidindo no sentido de proibir as queimadas dos canaviais, seja por já existir melhor técnica (utilização de colheitadeiras), seja por causar severos danos ambientais à população e ao meio ambiente do trabalho.
Bibliografia
Sítio do Superior Tribunal de Justiça: http://www.stj.gov.br, disponível em 22 de outubro de 2009.
Sítio da Sociedade Paulista de Pneumologia e Tsiologia: http://www.sppt.org.br/v2/noticia_completa.php?id_noticia=108, disponível em 22 de outubro de 2009.