INTRODUÇÃO
A crescente urgência de proteção do meio ambiente tem modificado a visão sistêmica da participação do Estado, das pessoas e das empresas no contexto de preservação do planeta em favor das gerações futuras, inclusive no que toca à atuação da tributação como ferramenta para alcançar este objetivo. Mas ainda falta muito, especialmente no Brasil, para se chegar a uma visão madura do tributo e dos princípios tributários como instrumentos desta proteção.
A interação entre Direito Tributário e Direito Ambiental, do que resulta o ramo mais específico que tem sido denominado de Direito Tributário Ambiental, não vem sendo desenvolvida satisfatoriamente nem por nossa doutrina especializada [01], nem mesmo por nosso legislador, de tal forma que ainda não rendemos as homenagens devidas, no que concerne à configuração da tributação, ao dever constitucional de proteção do meio ambiente.
São escassos os tributos nacionais que cumprem alguma função ambiental, e não houve até agora o necessário desenvolvimento, por nossa dogmática constitucional-tributária, dos princípios constitucionais tributários com os olhos voltados para a necessidade de tutela do meio ambiente, i.e., uma releitura destes princípios sob o prisma do direito fundamental ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado.
Nossa pretensão neste trabalho é apontar como o Direito Tributário poderia criar mecanismos que, juntando-se aos mecanismos próprios do Direito Ambiental, viessem a efetivamente cumprir importantes papéis na proteção do direito fundamental ao meio ambiente.
E assim o faremos dividindo, para fins metodológicos, nossa humilde contribuição em duas partes: na primeira parte, trataremos do desenvolvimento do direito fundamental ao meio ambiente sadio dentro de uma visão global da evolução histórica dos direitos fundamentais; e na segunda parte, tentaremos cumprir nosso efetivo propósito de apontar como o Direito Tributário, por meio dos tributos e de seus princípios fundamentais, poderia atuar como instrumento adequado e eficaz na proteção do meio ambiente.
PARTE I – DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE SADIO
Antes da conceituação de direitos fundamentais propriamente dita, devemos afastar a imprecisão terminológica existente, em razão de ser notório que a presença de termos linguísticos precisos e coerentes se mostra sempre imprescindível para o bom desenvolvimento de qualquer conhecimento científico, e especialmente para o conhecimento científico-jurídico, haja vista este ser construído sobre uma forma especial de linguagem: a linguagem jurídica.
Com efeito, a mesma realidade tem recebido denominações das mais diversas como "direitos humanos", "direitos naturais", "direitos do homem", "direitos fundamentais", "direitos humanos fundamentais", "direitos individuais", "liberdades fundamentais", "liberdades públicas" e "direitos públicos subjetivos". [02]
A ausência de consenso doutrinário, a heterogeneidade e a ambiguidade terminológicas tornam imperioso seja precisado o termo a ser empregado em nosso estudo. Esta necessidade é indiscutível, não obstante até nossa Constituição, como observa INGO WOLFGANG SARLET, possuir uma diversidade terminológica [03]: a) direitos humanos (art. 4º, inc. II); b) direitos e garantias fundamentais (epígrafe do Título II, e art. 5º, §1); c) direitos e liberdades constitucionais (art. 5º, inc. LXXI) e d) direitos e garantias individuais (art. 60, §4º, inc. IV).
Adotaremos aqui os termos "direitos humanos" e "direitos fundamentais" [04], bem como a distinção entre estes termos baseada em um critério jurídico-positivo que considera os direitos humanos como aqueles que são reconhecidos em fontes normativas internacionais (tratados internacionais) e os direitos fundamentais como os direitos reconhecidos em fontes normativas internas (constituições).
Sem embargo, embora sejam incontestáveis a íntima relação e a constante intercambialidade prática e dogmática destes termos, a distinção acima apontada obedece não apenas a razões puramente didáticas, mas também à exigência lógica de distinguir direitos que possuem fonte, eficácia e formas de proteção distintas.
Portanto, a mais forte tendência doutrinária contemporânea é a distinção entre "direitos "fundamentais" e "direitos humanos" a partir do critério da positivação dos mesmos, de modo que os direitos fundamentais são identificados como os "direitos humanos positivados a nível interno, enquanto a fórmula ‘direitos humanos’ é a mais usual no plano das declarações e convenções internacionais". [05]
Os direitos humanos estariam relacionados a um reconhecimento histórico universal, possuindo validade e eficácia universais, ao passo que os direitos fundamentais estariam relacionados a uma ordem jurídica constitucional específica de determinado Estado, comportando assim uma dogmática específica de tempo e lugar.
Tanto no plano internacional (direitos humanos) como no plano interno (direitos fundamentais) ocorre a positivação de direitos de inspiração jusnaturalista e de existência anterior ao pacto internacional e ao Estado, haja vista serem direitos inerentes à própria condição humana.
Por sua vez, a forma de positivação destes direitos importa em diferenciação dos mesmos não apenas quanto à fonte, mas também quanto à eficácia e proteção: (i) os direitos fundamentais possuem âmbito normativo mais preciso e restrito, ao passo que os direitos humanos comportam conceitos mais amplos e imprecisos; (ii) no Brasil, como em outros países, se alguns direitos humanos, não obstante sua validade universal, não forem adotados pelas constituições nacionais [06], precisarão ser reconhecidos e incorporados à ordem constitucional interna para que possam ter eficácia (art. 5º, §3º, CF/88) [07], ao passo que os direitos fundamentais possuem "aplicação imediata" (art. 5º, §1º, CF/88) [08]; (iii) os direitos fundamentais são diretamente protegidos pelas instâncias judiciais internas, diferentemente dos direitos humanos que envolvem a delicada questão da submissão dos Estados aos Tribunais Internacionais.
Em suma, considerando a proximidade e as diferenças apontadas, adotaremos em nosso trabalho os termos "direitos humanos" e "direitos fundamentais"; principalmente o último termo, haja vista nosso trabalho visar a análise do tema da tributação e do meio ambiente com referência a uma ordem constitucional específica: a brasileira.
1.1. Conceito e fundamentação dos direitos fundamentais
O conceito de direitos fundamentais no modelo vigente de Estado de Direito representa definição da mais importante, haja vista serem os direitos fundamentais o centro contenutístico (essência) e teleológico (razão) do Estado Constitucional.
Confirmando a possível intercambialidade terminológica entre "direitos humanos" e "direitos fundamentais", PEREZ LUÑO formulou conceito para "direitos humanos" que pode ser utilizado também para os "direitos fundamentais", desde que não se perca de vista a distinção desenvolvida no tópico acima:
"(...) um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade e da igualdade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente a nível nacional e internacional". [09]
Como apontado pelo próprio professor espanhol, o conceito que formulou possui as vantagens de (i) salientar "o sentido histórico dos direitos humanos" e fundamentais, (ii) de utilizar os "valores de conteúdo impreciso" da dignidade, da liberdade e da igualdade como fundamentos destes direitos e (iii) de destacar o dever de positivação dos mesmos. [10]
Vejamos individualmente estas vantagens.
Primeiramente, o autor destaca a visão histórica dos direitos humanos e fundamentais, o que não se confunde inteiramente com a fundamentação historicista dos direitos fundamentais; na verdade, destacar esta visão histórica é reconhecer a dinâmica dos direitos fundamentais, no sentido destes direitos serem conquistas progressivas das sociedades que, em cada momento histórico, evoluem e se modificam em torno de valores universalmente aceitos como dignidade, liberdade e igualdade.
Por outro lado, ao utilizar os valores dignidade da pessoa humana, liberdade e igualdade, verdadeiras pautas de valores morais carecedoras de preenchimento, como exigências a serem concretizadas por meio dos direitos humanos e fundamentais, o autor enquadrou sua formulação conceitual no "âmbito das chamadas ‘definições teleológicas’, isto é, remetida a valores de conteúdo impreciso". [11]
Os valores dignidade [12], liberdade [13] e igualdade [14] representam, na visão do autor, os três eixos fundamentais dos direitos humanos [15], ou seja, os valores que, em cada momento histórico e com conteúdo variável, fundamentam os direitos humanos e fundamentais que os explicitam.
Por fim, ao apontar o dever de positivação, o autor pretendeu ressaltar o dever do Estado de realizar efetivamente os direitos humanos, seja por meio das técnicas legislativas, seja por meio das técnicas jurisdicionais de proteção e garantia. [16]
Também concordamos com as vantagens apontadas e pensamos ser a definição adotada pelo professor PEREZ LUÑO um conceito quase totalmente adequado.
No tocante ao apontado caráter histórico dos direitos fundamentais, o autor justifica, de maneira acertada, o fenômeno incontestável da evolução dos direitos fundamentais, ou seja, o progressivo desenvolvimento de direitos que são incorporados aos textos constitucionais e internacionais na medida em que evoluem as sociedades.
Com o evoluir das sociedades, novas exigências vêm à tona como condições imprescindíveis de uma vida digna e livre, cabendo ao Estado e aos organismos internacionais reconhecerem estas exigências e positivar direitos que viabilizem, de modo efetivo, o seu cumprimento e assim o próprio desenvolvimento da dignidade humana, da liberdade e da igualdade. Os direitos humanos evoluem historicamente junto com as sociedades e sempre em torno destes valores universais fundamentais.
Em relação ao uso de pautas de valores de conteúdo indeterminado como fundamentos dos direitos fundamentais (dignidade, liberdade e igualdade), o professor espanhol nos permite entender como se torna possível a referida dinâmica dos direitos fundamentais, que se atualizam por meio da normatização legislativa e jurisdicional em cada momento histórico da sociedade e sem perder de vista os valores aos quais se referem. Por sua vez, pensamos, com PECES-BARBA [17], que a solidariedade deveria ser incluída no conceito dos direitos humanos como um dos valores que compõem a base de fundamentação destes direitos, inclusive da própria tutela do meio ambiente.
Por derradeiro, a positivação dos direitos fundamentais, no sentido amplo atribuído ao termo pelo mestre espanhol, se mostra como autêntico dever de interferência estatal, legislativa e/ou jurisdicional, necessária e até mesmo imprescindível para a efetiva realização dos direitos fundamentais, de modo que os mesmos não sejam apenas objetos de um discurso retórico.
Mas as vantagens do conceito formulado não acabam por aí. Tem razão PEREZ LUÑO ao afirmar que a "definição proposta pretende conjugar as duas grandes dimensões que integram a noção geral dos direitos humanos" (e claro, dos direitos fundamentais): (i) a exigência jusnaturalista em relação a sua fundamentação e (ii) as técnicas de positivação e proteção que permitem o efetivo exercício dos direitos. [18]
Com relação à fundamentação dos direitos fundamentais, existem duas principais correntes: (i) a fundamentação jusnaturalista dos direitos fundamentais e (ii) a fundamentação historicista dos direitos fundamentais; o conceito formulado por PEREZ LUÑO, como ele mesmo reconhece, tem a vantagem de conjugar estas duas dimensões de justificativa dos direitos fundamentais.
A fundamentação jusnaturalista dos direitos fundamentais é vinculada à ideia do Direito Natural e consiste em afirmar que a positivação dos direitos fundamentais representa um processo de reconhecimento formal pelo Estado de direitos prévios, anteriores e superiores ao próprio Estado, e que correspondem ao homem por sua própria natureza. Para esta corrente doutrinária, os direitos fundamentais existem independente do reconhecimento legislativo dos mesmos, pois são inerentes ao próprio ser humano, cabendo ao Estado reconhecer e tornar efetivos estes direitos.
Os direitos fundamentais, sob esta ótica, não seriam oriundos do ordenamento jurídico, o qual cumpriria apenas a função de declarar estes direitos; são provas desta função declaratória dos direitos: (i) a Bill of Rigths do Estado da Virgínia, Estados Unidos, de 12 de junho de 1776, que em seu artigo primeiro prescreve que "todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e tem certos direitos inerentes (...)" dos quais não podem ser privados ou despojados [19]; e (ii) a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, promulgada durante a Revolução Francesa, em 2 de outubro de 1789, que afirmava que "o fim de toda associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis ao homem".
É fácil notar que os documentos históricos acima citados, influenciados pela doutrina do Direito Natural então vigente, referem-se aos direitos fundamentais como direitos universais e anteriores à positivação realizada, como se derivassem de uma ordem normativa natural, ou seja, da própria condição humana, e que apenas recebem o reconhecimento formal pelo Estado.
Para os que defendem uma fundamentação historicista dos direitos fundamentais, estaríamos diante de direitos "variáveis e relativos a cada contexto histórico que o homem tem e mantém de acordo com o desenvolvimento da sociedade". [20]
Como bem observa EUSEBIO FERNANDEZ, as diferenças entre estas correntes de fundamentação são bem distintas: "1. No lugar de direitos naturais, universais e absolutos se fala de direitos históricos, variáveis e relativos."; "2. No lugar de direitos anteriores e superiores à sociedade se fala de direitos de origem social (enquanto são resultados da evolução da sociedade)." [21]
Para os historicistas, os valores que fundam os direitos humanos não seriam valores universais, de todo o sempre, mas valores constituídos em uma sociedade histórica concreta, que leva em conta os fins que pretende realizar em uma dada quadra da história. Inegavelmente, este pensamento explica o incontestável fenômeno da evolução dos direitos humanos de modo mais convincente que a doutrina jusnaturalista.
Por outro lado, esta vantagem da concepção historicista, isto é, de ser mais realista para explicar o fenômeno da dinâmica dos direitos fundamentais, não significa a completa negação das ideias lançadas pela corrente jusnaturalista.
E neste ponto, o conceito formulado por PEREZ LUÑO merece o crédito de ter conformado estas concepções que são apenas prima facie inconciliáveis.
Não se pode negar que a dignidade humana, a liberdade, a igualdade e a solidariedade são pautas de valores que podem ser reconhecidas como inerentes à própria condição humana e que, portanto, justificam racionalmente quaisquer disposições normativas independente de prévio reconhecimento pelo Direito Positivo.
Neste sentido, têm razão os defensores da fundamentação jusnaturalista dos direitos humanos no sentido de existirem valores universais que servem de justificativas para os direitos fundamentais e que independem do reconhecimento formal para tanto.
De outra forma, não se pode aceitar a tese de possuírem estes valores conteúdos inalteráveis, definitivos e que, independente da atuação normativa do Estado, surtem todos os efeitos que lhe são próprios. Na verdade, trata-se de exigências éticas, cujos conteúdos devem ser preenchidos em cada tempo e lugar, mas sempre no sentido de alcançar os fins que lhe são subjacentes.
Daí que, sobre a base universal destes valores, cada momento histórico, por meio da ação do Estado, produz direitos fundamentais de conteúdo e extensão variáveis, sempre gravitando, deve-se repetir, sobre as exigências éticas da dignidade humana, da liberdade, da igualdade e da solidariedade.
Este ponto de vista, claramente previsto no conceito formulado por PEREZ LUÑO, explica bem, sem perder de vista a incontestável existência de valores inerentes ao ser humano, o fenômeno da evolução dos direitos fundamentais, isto é, a positivação destes valores em cada momento histórico da sociedade sob a forma de direitos fundamentais de conteúdo variável e de formas de efetivação diversas.
Por estas razões, adotamos aqui o conceito de direitos fundamentais, a partir da formulação operada por PEREZ LUÑO, com a inclusão da solidariedade como um dos valores fundamentes e o reconhecimento da distinção jurídico-positiva entre "direitos fundamentais" e "direitos humanos":
– Os direitos fundamentais correspondem a um conjunto de faculdades e instituições que, em cada momento histórico, concretizam as exigências da dignidade, da liberdade, da igualdade e da solidariedade humanas, as quais devem ser reconhecidas positivamente a nível nacional por meio das constituições.
1.2. A evolução dos direitos fundamentais
Como ressaltado no tópico anterior, a visão historicista dos direitos fundamentais nos permite entender que estes direitos evoluem, se transformam, têm seu conteúdo e eficácia ampliados sempre em torno dos valores éticos fundamentais da dignidade humana, da liberdade, da igualdade e da solidariedade.
Em favor desta evolução, cumprem papel decisivo as constituições que positivam estes direitos, a sua eficácia e as formas de tutela de sua efetividade.
Com efeito, a evolução dos direitos fundamentais está intimamente ligada à evolução das constituições desde os modelos liberais do séc. XVIII, passando pelas constituições sociais do início do séc. XX, e chegando às modernas constituições democráticas que vêm sendo promulgadas desde o fim da II Grande Guerra e continuaram a ser depois da queda do Muro de Berlim e do fim da separação do mundo ocidental nos blocos capitalista e socialista.
Na verdade, a evolução dos direitos fundamentais decorre da própria evolução do Estado e da sociedade em busca do modelo de organização política em que o poder deve ser contido em nome das liberdades fundamentais do homem e em que devem ser prestados serviços públicos suficientes a garantir uma sociedade de homens livres e iguais.
Estas evolução e mutações dos direitos fundamentais ao longo da história deram lugar à terminologia "geração de direitos fundamentais"; desta forma, fala-se de "direitos de primeira geração", "direitos de segunda geração", "direitos de terceira geração" e até de quarta e quinta gerações.
Desde já se deve advertir que o termo "geração" não significa que ocorreram rupturas, mas sim cumulações de direitos fundamentais, um verdadeiro processo de complementaridade, por meio do qual os direitos se transformam, se aperfeiçoam, dando lugar a "novos direitos" erguidos sobre as mesmas bases fundamentais (dignidade humana, liberdade, igualdade e solidariedade) e que se juntam aos "velhos direitos", formando o todo ético-jurídico fundamental da sociedade.
Ademais, também se deve chamar atenção para o fato que esta evolução, não de raro, se manifesta de modo diferenciado para cada país, não podendo se cogitar de uniformidade do desenvolvimento destes direitos, havendo diversidade tanto do conteúdo quanto das formas de reconhecimento e tutela dos direitos fundamentais conforme a cultura e a história de cada sociedade. [22]
Restando claras estas circunstâncias, não existem razões suficientes para se abandonar o termo e trocá-lo por outro como "dimensões dos direitos fundamentais". [23]
As gerações dos direitos fundamentais se distinguem uma das outras em razão dos novos conteúdos que ganham os valores fundamentais universais da dignidade humana, da liberdade, da igualdade ou da solidariedade, sendo assim positivados "novos direitos" (a nova geração) com estes novos conteúdos e de acordo com a vontade do legislador constituinte histórico.
Esta evolução dos direitos fundamentais, ou seja, o processo progressivo de complementaridade destes direitos pode ser melhor sentido com o exame individual das gerações de direitos que se formaram ao longo da história.
1.2.1.Os direitos fundamentais de primeira geração
Na Revolução Francesa, que culminou com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e com a Constituição Francesa de 1791, a consagração dos direitos fundamentais (liberdades fundamentais) foi uma reação ao uso arbitrário do poder pelas monarquias absolutistas.
O levante contra o Estado Absolutista era inspirado pelo desejo de liberdade nos moldes contratualistas da época: o Estado deveria assegurar as liberdades fundamentais e não oprimi-las; o Estado deveria ser o protetor das liberdades fundamentais (Estado guarda-noturno) e não o seu algoz.
Assim, a garantia das liberdades fundamentais pelo Estado tornava-se o grande marco deste movimento revolucionário: havia a exigência de um comportamento negativo do Estado, no sentido do mesmo se abster de opor obstáculos aos cidadãos no exercício de suas liberdades fundamentais (direitos de propriedade, de locomoção, de expressão, etc.).
Estas liberdades fundamentais, bem como as condições de possibilidade de seu exercício, eram aquelas estabelecidas pela lei, assim entendida como o produto derradeiro da vontade dos representantes do povo (o Legislativo); desta forma, o Estado Liberal de Direito, surgido na Revolução Francesa como reação ao Estado Absolutista, confundia-se com o Estado Legislativo de Direito, "que se afirmava através do princípio da legalidade" [24], cabendo ao Poder Legislativo, nos moldes do constitucionalismo liberal, a palavra definitiva sobre o conteúdo das liberdades fundamentais.
A lei representava o "fator de unidade e estabilidade do Direito, cuja justificação passa a ser de natureza positivista" [25]. Àquela altura, com o positivismo jurídico como teoria vencedora e superadora do jusnaturalismo racional no Estado Liberal de Direito, a doutrina passou a desempenhar um papel predominantemente cognoscitivo do Direito posto.
Por sua vez, a generalidade e abstração das leis, com a sua aplicação desinteressada em face de todos, assegurava a igualdade meramente formal, a igualdade perante a lei, afastando-se os privilégios odiosos que marcaram o regime absolutista.
Mas não havia qualquer possibilidade de se controlar a legitimidade do conteúdo destas leis, de forma que a vontade do Estado se confundia com a própria vontade do Poder Legislativo, assim como a justiça se confundia com a lei.
Neste cenário, a separação de poderes do Estado funcionava como instrumento para assegurar a supremacia da lei e do Legislador.
No Estado Liberal de Direito atuava uma fórmula de separação de poderes com o objetivo de se assegurar as liberdades fundamentais, mas em que prevalecia a ideia de supremacia do Legislativo e da lei, e onde os demais Poderes do Estado desenvolviam suas funções de modo que esta soberania do Parlamento não fosse ameaçada: o Executivo não tinha qualquer margem de liberdade na interpretação e aplicação das leis, devendo se resumir a aplicá-las exatamente como criadas pelo Legislativo, o que era ainda mais reforçado pela falsa ideia do positivismo jurídico de clareza e determinação destas leis, ao passo que ao Judiciário cabia ser a "boca que pronunciava a vontade da lei" (MONTESQUIEU), cumprindo uma função meramente técnica de conhecimento e aplicação do Direito posto, quase que uma atividade mecânica sem qualquer criatividade.
Assim, a separação de poderes atuaria de forma a assegurar a prevalência da lei como critério único de justiça e de garantia das liberdades fundamentais.
Para os revolucionários franceses, a separações de poderes e a garantia das liberdades fundamentais seriam os pilares do Estado Liberal de Direito, de modo que o Estado que não tivesse ambos não poderia ser considerado titular de uma constituição (art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789).
Separação de poderes, supremacia da lei (do Legislativo) e garantia das liberdades fundamentais é uma boa síntese do constitucionalismo liberal e do próprio Estado Liberal burguês.
Surge então a primeira relação entre constitucionalismo e direitos fundamentais: a constituição deveria reconhecer as liberdades fundamentais e prover um sistema adequado de contenção do poder do Estado (separação de poderes) como forma de se evitar a violação destes direitos; no constitucionalismo liberal, o Estado deveria pautar sua conduta no sentido de se abster de violar as liberdades fundamentais, e esta limitação do poder se obteria por meio da separação de poderes e da supremacia da lei (da vontade do Poder Legislativo).
Pois bem, este sistema permitia a falsa ideia de que o Estado era o único destinatário dos direitos fundamentais, de forma que prevalecia também a ideia de separação entre Estado e sociedade, entre público e privado no âmbito do Estado Liberal. No Estado Liberal, a preocupação era sempre com o indivíduo e não com a coletividade, e os conflitos entre cidadãos eram resolvidos tão-somente com a aplicação do Código Civil, "suficiente" em sua "coerência e completude".
Neste sentido, os direitos fundamentais do Estado Liberal, as liberdades fundamentais (direitos civis e políticos) ou direitos fundamentais de primeira geração, eram típicos direitos de oposição ao Estado (direitos de defesa), áreas imunes da intervenção estatal, não tendo nenhuma ou quase nenhuma aplicação nas relações entre particulares, que por sua vez eram resolvidas a partir das regras estabelecidas nos códigos civis da época.
1.2.2.Os direitos fundamentais de segunda geração
O Estado Liberal entra em crise em razão da baixa representatividade da sociedade no Parlamento: a classe representada no Parlamento era a burguesia revolucionária e detentora do capital, não havendo verdadeira liberdade política em favor de toda a sociedade, haja vista a não-participação de parcela significativa da mesma nos processos de tomada de decisões legislativas.
A classe de trabalhadores não era alcançada totalmente pelos direitos fundamentais, sendo tão-somente objeto das decisões políticas, mas nunca participantes ativos destas decisões, ou seja, embora alcançados pelos direitos civis, não gozavam das liberdades políticas e assim não possuíam representantes no Parlamento.
Sem representação no Parlamento, a classe trabalhista não podia ter suas aspirações consagradas e o que era pior, sofria a opressão e abusos como o emprego de crianças, a remuneração reduzida de mulheres e as horas exorbitantes de trabalho.
Esta situação provocou o fortalecimento dos movimentos associativos dos trabalhadores na segunda metade do séc. XIX e início do séc. XX [26], por meio dos quais os trabalhadores reclamavam seus direitos a uma vida mais digna.
A vitória destes movimentos conduziu a uma reconfiguração do Estado, cuja faceta de Estado Liberal entrou em profunda crise: o Estado que tão-somente se abstém de obstaculizar o exercício das liberdades fundamentais passa a se apresentar como um modelo insuficiente para assegurar os direitos fundamentais, haja vista a não interferência positiva em favor daqueles mais necessitados e sacrificados significar, na verdade, a ausência de garantias de igualdade material entre os cidadãos.
Sem que se possa falar de ruptura do Estado Liberal, o Estado deveu acomodar novas demandas e assim realizar prestações positivas em favor de parcela da sociedade antes excluída dos centros decisórios, no sentido do Estado Liberal de Direito ter se transformado e passado a ser considerado um Estado Social de Direito: o Estado não abandona em absoluto a sua postura negativa em face das liberdades fundamentais da sociedade, mas passou também, quando necessário para assegurar a igualdade material, a intervir nestas liberdades fundamentais da sociedade.
Os direitos fundamentais, como conquistas históricas do Estado Liberal, continuaram a servir à contenção dos excessos de poder pelo Estado. Porém, no modelo de Estado Social, estes direitos não eram mais oponíveis apenas ao Estado, mas também aos particulares, de modo que o Estado passou a intervir nas relações entre atores privados e proteger as partes mais frágeis destas relações, em especial os trabalhadores, mulheres, crianças e idosos, com o objetivo de assegurar o respeito aos direitos fundamentais por parte dos mais fortes da relação, em especial os empregadores.
Estes grupos mais frágeis, notadamente os trabalhadores, passaram a participar dos processos de tomada de decisões políticas das quais estavam alijados; desta forma, os seus direitos, antes sujeitos às regras dos contratos de trabalho sobre os quais o Estado Liberal não intervinha, passaram a ser objeto de regulação direta na lei, de modo que passamos do estágio de "igualdade perante a lei" para o estágio de "igualdade na lei", ou seja, de igualdade meramente formal para a desejada igualdade material.
Podemos então afirmar que estas lutas classistas, estes movimentos que se iniciaram na segunda metade do séc. XIX, culminaram em uma segunda geração de direitos fundamentais, de conteúdo social e econômico, complementares às típicas liberdades fundamentais, também referidos à figura individual do homem e que buscaram assegurar a igualdade material na sociedade, isto é, a justiça social.
É o que deixam claro as palavras do professor espanhol PÉREZ LUÑO:
"Os direitos humanos nascem, como é notório, com marcado traço individualista, como liberdades individuais que configuram a primeira fase ou geração dos direitos humanos. Dita matriz ideológica individualista sofrera um amplo processo de erosão e impugnação nas lutas sociais do século XIX. Estes movimentos reivindicatórios evidenciaram a necessidade de completar o catálogo dos direitos e liberdades da primeira geração com uma segunda geração de direitos: os direitos econômicos, sociais, culturais. Estes direitos alcançam sua paulatina consagração jurídica e política na substituição do Estado liberal de Direito pelo Estado social de Direito". [27]
Novos direitos foram adicionados ao catálogo formado no Estado Liberal, passando a vigorar, ao lado das liberdades fundamentais oponíveis ao Estado como direitos de defesa, direitos que vinculam o Estado a realizar prestações positivas em favor da sociedade: prestações de serviços públicos na área da saúde, assistência social, educação, trabalho, liberdade de sindicalização, direito de greve, moradia, etc.. Não mais subsistiu a figura do Estado que apenas se abstém em favor da autodeterminação dos indivíduos, passando a figurar o modelo de Estado intervencionista em favor dos direitos de caráter social e econômico.
A Constituição de Weimar (Alemanha) de 1919 é um marco histórico-normativo deste novo modelo de Estado: o Estado Social. Porém, o caráter flexível desta constituição, com a inerente ausência de vinculação do Parlamento ao conteúdo do texto constitucional, e a consequente falta de controle de constitucionalidade do conteúdo das leis foram fatores decisivos que resultaram na ausência de força normativa e de eficácia dos diretos fundamentais nela previtaos [28], de modo que, tal como ocorria com o Estado Liberal, estes direitos dependiam exclusivamente da configuração dada pelo Parlamento alemão. A diferença era que os Parlamentos não eram, àquela altura, compostos apenas pela classe burguesa, mas por uma heterogeneidade de classes da qual se destacava a classe de trabalhadores, o que importava numa mudança da própria configuração legislativa dos direitos fundamentais em função dos novos interesses sociais tutelados.
Com o advento do Estado Constitucional e Democrático de Direito, revelou-se um fato histórico-normativo que estes direitos sociais ganharam uma mais ampla configuração normativa nas constituições rígidas de caráter democrático que foram promulgadas no segundo pós-guerra. Esta nova configuração normativo-constitucional os dotaram de maior eficácia normativa abstrata, passando então a ser levantadas questões pertinentes às formas de tornar esta eficácia concreta, isto é, de assegurar a efetividade destes direitos. Esta discussão passa pelo surgimento de novas formas de tutela dos direitos fundamentais e pelo complexo e controvertido dilema entre os limites da judicialidade destes direitos e o devido respeito às decisões democráticas.
Esta nova dimensão de direitos fundamentais e o correspondente (novo) modelo de Estado romperam com a tradição liberal de Estado não-intervencionista e originaram uma nova fase da relação entre Estado e sociedade: (i) os direitos fundamentais não eram mais vistos como oponíveis apenas face ao Estado, mas também aos particulares, principalmente os poderosos, em suas relações intersubjetivas, ao passo que (ii) o Estado passou, ao lado do dever de proteção, a realizar prestações positivas (inclusive de intervenção) para assegurar aos particulares, em igualdade de condições, o gozo dos direitos fundamentais. [29]
O Estado passou a participar mais do desenvolvimento da "vida social" de seus cidadãos e assim se aproximou da sociedade; passou a atuar em campos antes imunes à intervenção estatal em razão da autonomia da vontade dos particulares, tornando-se responsável pela manutenção das condições necessárias para que os indivíduos desenvolvam seus programas de vida de forma livre e digna [30]; restou assim dissipada a ideia liberal de separação rígida entre Estado e sociedade, entre o público e o privado; este movimento é inclusive bidirecional, de invasões recíprocas: também a sociedade passa a atuar em esferas antes exclusivas do Estado, isto é, a sociedade, por meio das diversas associações surgidas a partir da segunda metade do séc. XIX, passa também a cuidar de áreas como saúde, educação, moradia, pesquisas científicas, etc.
Esta metamorfose do Estado em direção ao Estado Social traz ínsito o reconhecimento de que os direitos fundamentais do homem não estão sujeitos a ameaças apenas pelo Estado, mas também e até mesmo mais por poderes não-estatais.
A liberdade é um valor que deve ser protegida efetivamente como um todo, o que inclui a proteção dos direitos fundamentais também frente a atores particulares e afasta a possibilidade de conceber estes direitos apenas como direitos de defesa frente ao Estado. [31] Sem embargo, "não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade por intermédio do Estado". [32]
Conforme a lúcida lição de KONRAD HESSE, "a procura pelo Estado da efetividade dos direitos fundamentais torna-se pressuposto de que chegue a haver uma real liberdade. O Estado já não aparece só como o inimigo potencial da liberdade, senão que tem que ser também seu defensor e protetor". [33] E defensor frente a ameaças perpetradas por particulares igualmente titulares de direitos fundamentais.
1.2.3.Os direitos fundamentais de terceira geração
Da tríade ideológica da Revolução Francesa, "Liberdade, Igualdade e Fraternidade", no Estado Liberal consagrou-se tão-somente a "Liberdade", ao passo que, com o Estado Social consagrou-se a verdadeira "Igualdade". Faltava então a consagração da "Fraternidade", o que só aconteceu com os direitos fundamentais de terceira geração, cujo valor fundamental é a solidariedade. [34]
Os direitos fundamentais de terceira geração seriam o direito à paz [35], à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural [36], os direitos na esfera da biotecnologia e respeito à manipulação genética, à liberdade informática [37], os direitos dos consumidores e o direito à qualidade de vida e ao meio ambiente sadio.
O professor INGO SARLET aponta o direito a morrer com dignidade [38] e à mudança de sexo também como exemplos, ressaltando que muitos destes direitos de terceira dimensão, à exceção dos direitos difusos e coletivos, representam verdadeiras concretizações do princípio da dignidade humana e da liberdade-autonomia, a ainda, muitas das vezes, cuidando de "reivindicação de novas liberdades fundamentais", isto é, direitos que evidenciam a "permanente atualidade dos direitos de liberdade". [39]
Trata-se de direitos que vêm sendo positivados gradativamente nas constituições nacionais e nos tratados internacionais, e até por não contarem ainda com amplo reconhecimento jurídico-positivo constitucional ainda se fazem marcantes as divergências jurisprudenciais quanto à configuração, à eficácia e até mesmo à jusfundamentalidade destes direitos.
Mas é certo que, cada vez mais vem sendo reconhecida a existência destes novos direitos fundamentais, que possuem como grande marca peculiar serem destinados predominantemente ao coletivo, diferentemente dos direitos de primeira e segunda gerações, típicos direitos vinculados à figura individual do homem.
Ainda que resultem, em última análise, em favorecimento aos indivíduos como os demais direitos fundamentais, trata-se de direitos tipicamente coletivos e difusos, que exigem a união de esforços de toda a sociedade para sua consecução e que prestam para completar o catálogo dos direitos fundamentais [40] de acordo com as novas exigências da sociedade moderna cada vez mais marcada pelas revoluções tecnológicas [41].
É esta necessidade de esforços universais para consecução destes direitos fundamentais que nos conduz à ideia dos direitos fundamentais de terceira geração como direitos referidos ao valor solidariedade.
No conjunto dos direitos fundamentais de terceira geração, nos interessa o direito fundamental ao meio ambiente sadio.
2. A tutela fundamental do meio ambiente
O direito fundamental ao meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado afirma-se, a partir do valor solidariedade, como direito coletivo ou difuso, dotado "de altíssimo teor de humanismo e universalidade" [42], que a todos pertence e também a todos obriga, daí porque encerrar um verdadeiro direito-dever fundamental. [43]
O Min. CELSO DE MELLO, em acórdão paradigma, afirma, no mesmo sentido, "a ideia de que o meio ambiente constitui patrimônio público a ser necessariamente assegurado e protegido pelos organismos sociais e pelas instituições estatais, qualificando-se como encargo irrenunciável que se impõe – sempre em benefício das presentes e das futuras gerações – tanto ao Poder Público quanto à coletividade em si mesma considerada". [44]
Portanto, o direito a um ambiente de vida humana sadio e equilibrado ecologicamente aproveita tanto ao ser humano considerado em sua individualidade, como à coletividade, de tal forma que a sua proteção não cabe apenas ao Estado, mas a toda esta coletividade. Todos devem compreender que o meio ambiente sadio e equilibrado é "um bem maior, cuja preservação se mostra imprescindível para a nossa própria sobrevivência que dela depende", em suma, "é tempo de erigirmos o ambiente em valor ético fundamental da humanidade, acolhendo-o no Direito como bem jurídico fundamental, ao lado de outros bens jurídicos com elevado grau de comprometimento ético, como a vida ou a dignidade humanas" [45].
No Brasil, ao contrário do que ocorre com constituições como a americana, a italiana e a alemã, o valor ético fundamental de proteção e conservação do meio ambiente adquire sua normatividade originária de forma expressa na Constituição, e especialmente nos arts. 170, VI e 225:
"Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...)
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;"
"Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações."
Isso não significa que as outras constituições citadas não protejam o meio ambiente, mas apenas que a proteção na CF/88, por ser expressa, torna a temática das restrições às atividades econômicas em favor desta proteção muito menos problemática.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a falta de previsão expressa em sua Constituição do dever de proteger o meio ambiente (environment) faz com que a acusação de ilegitimidade de leis restritivas das liberdades fundamentais sejam levadas muito a sério, especialmente se considerarmos a composição conservadora que compõe a Suprema Corte Americana contemporânea e o movimento interpretativo chamado originalismo, capitaneado pelo Juiz ultraconservador Antonin Scalia.
Na Itália e na Alemanha, a tutela constitucional do meio ambiente é construída a partir de uma interpretação ampliativa de outros direitos fundamentais que guardam relação com o meio ambiente, como o direito à vida ou à saúde, no caso alemão, e o dever de solidariedade social, no caso italiano.
Importante fazer notar também que o desenvolvimento doméstico da tutela do meio ambiente como direito fundamental, e seu reconhecimento nos textos constitucionais, devem muito à previsão normativa deste direito em diplomas normativos supranacionais desde a pioneira Declaração de Estocolmo (1972).
Mas no Brasil, como em Portugal (art. 66º da CRP), a proteção constitucional do meio ambiente decorre de enunciado normativo expresso (art. 225) que não deixa dúvidas quanto às principais características deste direito: é norma fundamental, de direito coletivo ou difuso, que obriga tanto ao Estado quanto à própria coletividade, e por isso é autêntico direito-dever fundamental, que tem por escopo acomodar os interesses intergeneracionais no que concerne ao uso dos recursos naturais. Com uma previsão constitucional expressa neste sentido, as políticas públicas ambientais formuladas pelo legislador, ainda que restritivas de liberdades fundamentais, são passíveis de menores questionamentos quanto a sua legitimidade.
Ademais, o próprio art. 170, VI, da CF/88, prescreve que o direito ao meio ambiente é um limite à liberdade de exercício de atividades econômicas, de tal modo que, como norma fundamental inserida em um contexto constitucional de unidade hierárquico-normativo, tem a real pretensão de colisão, no campo normativo-aplicativo, com outros direitos constitucionais e em especial com estas liberdades fundamentais e com o próprio direito de propriedade.
Da necessária acomodação hermenêutica destes interesses em conflito resulta o chamado princípio do desenvolvimento sustentável, que é ligado à ideia de responsabilidade ambiental. O dever de proteção ao meio ambiente se abre para o jogo de ponderação de interesses com as liberdades fundamentais, podendo ser impostas restrições às atividades econômicas em favor da preservação do meio ambiente, devendo a constitucionalidade destas restrições ser averiguada com auxílio do princípio da proporcionalidade e levando-se em conta justamente o fim constitucional do desenvolvimento sustentável. Neste sentido, valem novamente as palavras do Min. CELSO DE MELLO no julgamento já citado:
"(...) atento à circunstância de que existe um permanente estado de tensão entre o imperativo de desenvolvimento nacional (CF, art. 3º, II), de um lado, e a necessidade de preservação da integridade do meio ambiente (CF, art. 225), de outro, torna-se essencial reconhecer que a superação desse antagonismo, que opõe valores constitucionais relevantes, dependerá da ponderação concreta, em cada caso concreto, dos interesses e direitos postos em situação de conflito, em ordem a harmonizá-los e a impedir que se aniquilem reciprocamente, tendo-se como vetor interpretativo, para efeito da obtenção de um mais justo e perfeito equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia, o princípio do desenvolvimento sustentável, tal como formulado nas conferências internacionais (...) e reconhecido em valiosos estudos doutrinários que lhe destacam o caráter eminentemente constitucional."
Neste julgado, o STF deixou claro o significativo peso que a tutela ao meio ambiente, entendida em sentido amplo como a tutela do meio ambiente natural, cultural, artificial (espaço urbano) e laboral, possui quando entra em colisão com as liberdades fundamentais vinculadas ao exercício de atividades econômicas; na verdade, o STF parece fixar autêntica pauta de hierarquia valorativa prévia e apriorística, ainda que flexível, de interpretação em favor do meio ambiente, de modo que restem reforçadas de legitimidade as medidas jurídico-restritivas, de "caráter legal e natureza constitucional", impostas em face das "motivações de índole meramente econômica", para proteção da "saúde, segurança, cultura, trabalho e bem-estar da população". [46]
A construção hermenêutica do STF deixa claro que no jogo de ponderação entre o meio ambiente e as liberdades de índole econômica, a definição do que é o princípio do desenvolvimento sustentável, i.e., "o justo equilíbrio entre as exigências da economia e as da ecologia", começa primeiro pela ideia de que a tutela do meio ambiente não pode ser comprometida em razão de fatores econômicos, haja vista se tratar de "bem de uso comum da generalidade das pessoas, a ser resguardado em favor das presentes e futuras gerações".
Toda esta amplitude do conteúdo constitucional do direito ao meio ambiente tem autorizado a produção de legislação infraconstitucional e regulamentação complementar de normatividade que, invariavelmente, têm sido significativamente restritivas das atividades econômicas potencialmente poluidoras, seja no que tange ao amplo catálogo de atividades que se enquadram nesta categoria, seja na imposição de pesadas multas e até de medidas de interdição de estabelecimentos em casos extremos.
Por outro lado, a grande distância entre a previsão abstrata de restrições e a aplicação concreta das mesmas revela-se como o grande desafio a ser enfrentado por nossos governantes para que a proteção ao meio ambiente no Brasil deixe de ser apenas uma aspiração.
E neste embate entre direitos de gerações diferentes – de um lado as liberdades fundamentais, direitos de primeira geração, e de outro a tutela do meio ambiente, direito "novíssimo" de terceira geração – o poder de tributar, que "nasce no espaço aberto pelos direitos humanos e por ele é totalmente limitado" [47], pode exercer papel importante, na medida em que incide sobre as liberdades e assim possui capacidade para regular o seu exercício em favor da tutela do meio ambiente. Em suma, o tributo pode servir de importante instrumento de tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado pelo Estado.