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Caráter sigiloso e "valor probandi" do inquérito policial

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem por escopo evidenciar o que a doutrina e a jurisprudência têm pronunciado sobre o caráter sigiloso do inquérito policial, a teor do artigo 20 do Código de Processo Penal, bem como discutir o valor probatório do inquérito policial na ação penal que, eventualmente, lhe seguir.


CARÁTER SIGILOSO E VALOR PROBANDI DO INQUÉRITO POLICIAL

O art. 20. do Código de Processo Penal é alvo de discussão na doutrina processual penal brasileira. Segundo este dispositivo, a autoridade deve assegurar, no inquérito policial, o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido por interesse público. Resta saber se isso fere o direito de defesa da parte, bem como o direito de o advogado ter acesso ao inquérito policial.

Dissertando sobre esse assunto, Mougenot distingue duas espécies de sigilo, o interno e o externo. Este se refere à aplicação da restrição ao povo e aquele se compõe no escopo de a autoridade policial não permitir que o investigado esteja ciente das diligências a serem realizadas para a consecução do laudo investigativo.1

Este mesmo autor lembra que o sigilo, eventualmente aplicado de forma discricionária pela autoridade policial, não é absoluto, não se estendendo ao Ministério Público e ao Poder Judiciário.2

O estatuto da OAB, em seu art. 7º, XIV3, traz o direito, pertinente ao advogado, de examinar, em repartição policial, ainda que sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, estando ao seu dispor a faculdade de copiar peças e de anotar o que lhe aprouver. Entretanto, isso não proíbe, em nome do interesse público, a autoridade policial de impedir que o advogado tome ciência de certas diligências a serem realizadas, sob pena de ineficácia das mesmas, a exemplo de intercepção telefônica e de infiltração de agente de polícia ao investigar organizações criminosas.

Em opinião mais radical sobre o tópico, Paulo Rangel4 é taxativo em declarar que o advogado perde o direito previsto no Estatuto da Ordem quando a investigação está sendo realizada com o aludido sigilo, o que não é defendido pelo Supremo Tribunal Federal, mais adiante esposado.

O inquérito policial é peça informativa, de caráter administrativo, inquisitivo, não acusatório, não igualado à ação penal, não comportando, assim, o princípio da ampla defesa, até mesmo porque sem acusação este preceito não pode se aplicar.

Não obstante, após a conclusão das devidas diligências, sabe-se que é direito da parte e de seu advogado ter acesso aos laudos investigativos acoplados nos autos do inquérito. Essa linha de entendimento tem sido a referenciada pelo Supremo Tribunal Federal, como se pode observar no julgamento do Habeas Corpus nº 82.354, senão vejamos:

"2. Do plexo de direitos dos quais é titular o indiciado - interessado primário no procedimento administrativo do inquérito policial -, é corolário e instrumento a prerrogativa do advogado de acesso aos autos respectivos, explicitamente outorgada pelo estatuto da Ordem (L 8904/94 art 7º, XIV, da qual - ao contrário do que previu em hipóteses assemelhadas - não se excluíram os inquéritos que correm em sigilo : a irrestrita amplitude do preceito legal resolve em favor da prerrogativa do defensor o eventual conflito dela com os interesses do sigilo dos interesses das investigações, de modo a fazer impertinente o apelo ao princípio da proporcionalidade… 4.O direito do indiciado, por seu advogado, tem por objeto as informações já introduzidas nos autos do inquérito, não as relativas à decretação e às vicissitudes da execução das diligências em curso (cf L 9296, atinente às interceptações telefônicas, de possível extensão a outras diligências; dispõe, em conseqüência, a autoridade policial de meios legítimos para obviar inconvenientes que o conhecimento pelo indiciado e seu defensor dos autos do inquérito policial possa acarretar à eficácia do procedimento investigatório."

(HC 82354 / PR – PARANÁ, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE Julgamento: 10/08/2004 Órgão Julgador: Primeira Turma Publicação :DJ 24-09-2004 PP-00042).Grifos nossos.

Como se pode abstrair do texto supra, para o Pretório Excelso, não há que se falar em perda do direito do acesso aos autos do inquérito quando este é sigiloso, indo de encontro à opinião mais extremada de Paulo Rangel. Apenas se deve considerar que esse direito, disposto no Estatuto da OAB, não abrange diligências que tenham sua eficácia condicionada à não ciência de suas realizações por parte do indiciado e de seu advogado. Alcançando, todavia, o resultado dessas diligências.

Quanto ao valor probatório do inquérito policial, por ser este de caráter informativo, destinado à formação da opinio delicti do Parquet, fornecendo os elementos necessários para que este ou o ofendido venham a oferecer a ação penal, não pode ter um absoluto valor probandi na eventual ação penal posterior. Ademais, o caráter inquisitivo do mesmo ratifica esta impossibilidade, já que é no processo penal que deve haver o contraditório, a ampla defesa e a presença do juiz de direito na produção das provas.

Como bem versa o Supremo Tribunal Federal: "Não se justifica decisão condenatória apoiada exclusivamente em inquérito policial, pois se viola o principio constitucional do contraditório (RTJ, 59/78).

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Sendo assim, a Corte excelsa traz o correto entendimento de que uma decisão judicial não pode se basear somente em inquérito policial, já que este é inquisitivo e o processo penal deve ser revestido de contraditório e ampla defesa.

Sobre o assunto, Fernando Capez exemplifica exprimindo a ideia de que até mesmo para utilização de uma confissão extrajudicial como elemento de convicção do juiz, deve esta estar acompanhada por outros elementos colhidos durante a instrução processual.5

Vejamos a seguinte ementa de decisão do Supeior Tribunal de Justiça:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. HOMICÍDIO. INQUÉRITO. INTERROGATÓRIO. REPRODUÇÃO SIMULADA DOS FATOS. NULIDADE. INOCORRÊNCIA. PRECLUSÃO.

1. O inquérito policial constitui peça meramente informativa, onde não existe contraditório e, exatamente por essa razão, não possui valor probatório, apenas servindo de suporte para a propositura da ação penal.

(STJ. HC 66186 / SP. Rel: Ministra LAURITA VAZ (1120). QUINTA TURMA. J-04/09/2008. P- DJe 29/09/2008)

Conforme essa decisão, o inquérito policial serve de suporte para a propositura da ação penal, não possuindo valor probandi algum.

A discordar um pouco dessa decisão, tem-se que o inquérito policial pode ser utilizado para colaborar com a convicção do juiz, apresentando, todavia, caráter relativo. Até mesmo quando se tratar de provas que não podem ser repetidas no processo propriamente dito, a exemplo do exame de corpo de delito, ele permanece com essa característica, necessitando ser confirmado por todo o conjunto probatório.

Constatemos o que pronuncia Magalhães Noronha sobre o assunto:

"não obstante a natureza inquisitorial da investigação da polícia, não se pode de antemão repudiar o inquérito, como integrante do complexo probatório que informará a livre convicção do magistrado…se a instrução judicial for inteiramente adversa aos elementos que ele contém, não poderá haver prevalência sua"6

Face ao expresso pelo autor, em concordância com o dantes exposto, o construído durante o inquérito não pode ser desprezado, até porque isso desvencilharia a sua razão de ser, servindo como instrumento dotado de informações pertinentes ao sub judice, sendo um instrumento que corrobora a formação da convicção do juiz. Não obstante, lembra-se a ressalva de que a sua contrariedade aos demais elementos põe-no inutilizável.

Em suma, quando se fala em caráter sigiloso do inquérito policial, este não fere direito constitucional do indiciado nem direito de seu defensor. Entretanto, com o fito de uma boa procedência investigativa, é aplicado pela autoridade policial, quando necessário, lembrando que os resultados obtidos nos autos do inquérito devem ser disponibilizados para as partes e para o advogado.

Já no que concerne ao valor probandi do inquérito, este existe, todavia de forma relativa, não sendo admissível uma sentença penal condenatória com fulcro único em inquérito policial. Isto porque seu caráter inquisitivo é insuficiente para condenar o réu, sendo necessária a análise pormenorizada do conjunto probatório, repetindo-se as provas produzidas em inquérito, quando houver esta possibilidade.


CONCLUSÃO

Diante do exposto, brioso concluir que quando o inquérito se realizar em caráter sigiloso, não perde a parte e seu advogado o direito previsto no artigo 7º, inciso XIV do Estatuto da OAB, sendo esse o entedimento assentado na Suprema Corte Federal, como dantes discutido. No atinente ao valor probatório do inquérito policial, ressalte-se a relatividade deste, haja vista, embora regulares as provas produzidas naquele, podendo contribuir para o livre convencimento do juiz, elas não foram instrumentalizadas em obediência aos princípios constitucionais do contraditório e ampla defesa.


REFERÊNCIAS

Edilson Mougenot Bonfim. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2007.

Paulo Rangel. Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

Fernando Capez. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2006.

Edgard Magalhães Noronha. Curso de Direito Processual Penal. Petrópolis: Vozes, 2004.

https://ww2.stj.jus.br/revistaeletronica/Abre_Documento.asp?sLink=ATC&sSeq=4224549&sReg=200601991101&sData=20080929&sTipo=91&formato=PDF

https://www.stf.gov.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp

https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8906.htm


Notas

  1. Edilson Mougenot Bonfim. Direito Processual Penal. Saraiva:2007.P.108

  2. Idem

  3. Lei 8.906, de 4 de Julho de 1994:

  4. Art. 7º São direitos do advogado:

    XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos;

  5. Paulo Rangel. Direito Processual Penal. Lumen Juris:2006. P.96

  6. Fernando Capez. Direito Processual Penal. Saraiva: 2006.P.80

  7. Edgard .Magalhães Noronha. Curso de Direito Processual Penal. Petrópolis: Vozes, 2004..P. 291

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Sobre a autora
Keila Lacerda de Oliveira Magalhães

Acadêmica de Direito da Universidade federal da Paraíba

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MAGALHÃES, Keila Lacerda Oliveira. Caráter sigiloso e "valor probandi" do inquérito policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2409, 4 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14305. Acesso em: 28 dez. 2024.

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