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Imposto de renda da pessoa física: inconstitucionalidade do limite legal para dedução de despesas com educação

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É constitucional limitar a dedução de educação no IRPF? O artigo demonstra que o teto legal viola princípios como dignidade, cidadania e capacidade contributiva.

1. INTRODUÇÃO

A legislação ordinária disciplinadora do imposto de renda da pessoa física estabelece um limite anual individual para a dedução das despesas que o contribuinte realiza durante o ano-calendário com a educação própria e de seus dependentes. Segundo noticiário da imprensa, o Ministério Público teria instaurado uma ou mais ações civis com o escopo de questionar esse limite legal. Estas anotações têm por finalidade o exame da constitucionalidade da legislação ordinária que o fixou, quando confrontada com normas e princípios inscritos na Constituição Federal.


2. A LEGISLAÇÃO ORDINÁRIA

A Lei Federal nº 9.250, de 26.12.1995, determinou que o imposto de renda devido pelo contribuinte pessoa física incida sobre a diferença entre as somas de, um lado, (i) “todos os rendimentos percebidos durante o ano-calendário, exceto os isentos, os não tributáveis, os tributáveis exclusivamente na fonte e os sujeitos à tributação definitiva”, e, de outro, (ii) as deduções que especificou (art. 8º, I e II).

As deduções permitidas compreendiam exclusivamente os gastos relativos “a pagamentos efetuados a estabelecimentos de ensino, relativamente à educação pré-escolar, de 1º, 2º e 3º graus, cursos de especialização ou profissionalizante do contribuinte e de seus dependentes, até o limite anual individual de R$ 1.700,00 (um mil e setecentos reais)” (art. 8º, II, “b”).

A Lei nº 11.482, de 31.5.2007, deu nova redação à alínea “b” do inciso II, estabelecendo a possibilidade de deduções relativas “a pagamentos de despesas com instrução do contribuinte e de seus dependentes, efetuados a estabelecimentos de ensino, relativamente à educação infantil, compreendendo as creches e as pré-escolas; ao ensino fundamental; ao ensino médio; à educação superior, compreendendo os cursos de graduação e de pós-graduação (mestrado, doutorado e especialização); e à educação profissional, compreendendo o ensino técnico e o tecnológico, até o limite anual individual de R$ 2.480,66 (...) para o ano-calendário de 2007; R$ 2.592,29 (...) para o ano-calendário de 2008; R$ 2.708,94 (...) para o ano-calendário de 2009; e R$ 2.830,84 (...) para o ano-calendário de 2010.”

Dessa forma, o contribuinte está impedido de abater, a título de despesas de instrução, qualquer importância que exceda o limite legal autorizado. Mesmo que deseje deduzir quantia que o supere — correndo o risco de ter sua declaração revisada pelos agentes fiscais —, o programa para preenchimento da declaração anual reduz automaticamente os valores lançados ao teto legal. O excesso, isto é, a diferença entre o valor efetivamente despendido pelo contribuinte e o limite legal autorizado — que é, ordinariamente, muito superior a esse teto — acaba sendo considerado como receita auferida, mas não gasta pelo contribuinte, compondo, dessa forma, a base de cálculo do tributo e, por consequência, sendo computado para apuração do imposto devido.

Exemplificando: se o contribuinte gasta 100 e só pode abater 20, a diferença de 80 compõe a base de cálculo do imposto e sobre ela o contribuinte paga o tributo.

A Instrução Normativa nº 65, de 5.12.1996, do Secretário da Receita Federal, a pretexto de regulamentar a norma legal, determinou (art. 6º) que não podem ser consideradas como despesas de educação, entre outras, “as despesas com uniforme, material e transporte (...); as despesas com aquisição de enciclopédias, livros, revistas e jornais; o pagamento de aulas de música (...), informática e assemelhados; o pagamento de cursos preparatórios para concursos e/ou vestibulares; e o pagamento de aulas de idiomas estrangeiros”. De igual teor é o art. 40. da Instrução Normativa nº 15, de 6.2.2001, que revogou a de nº 65/1996.

A ssim, de acordo com a interpretação dada pela referida Secretaria, para educar seus filhos o contribuinte não necessita comprar uniformes, materiais e livros escolares (didáticos, técnicos, científicos etc.). Supérfluos são, igualmente, os gastos realizados com aulas de música, informática, cursos de idiomas estrangeiros e cursos preparatórios para concursos ou vestibulares. A educação, no Brasil, prescinde desses conhecimentos e informações porque, segundo a interpretação oficial do Poder Executivo, nenhum deles tem qualquer relação com o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CF, art. 205).


3. OS PRINCÍPIOS E NORMAS CONSTITUCIONAIS SOBRE A EDUCAÇÃO.

A Constituição Federal, no Título II, que trata “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, inclui, entre eles, o direito à educação (art. 6º), determinando (art. 5º, §1º) que “as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

De conformidade com a Lei Fundamental, a educação constitui um direito fundamental constante de norma autoaplicável. Em abono dessa declaração, o constituinte prescreveu, também, ser da competência comum da União e das demais entidades federadas “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência” (CF, art. 23, V).

Segundo lição de Sampaio Dória1, em comentário à Constituição de 1946, a educação é “o problema básico da democracia”. O constituinte, convicto dessa assertiva incensurável, dedicou ao tema seção específica encimada pelo art. 205. da Lei Maior, segundo o qual:

“A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.”

Na lição de Sampaio Dória (ob. cit.), que continua atual, esse direito fundamental decorre, inapelavelmente, da adoção do regime democrático, verbis:

“Duas são as formas extremas dos regimes políticos: ou o poder é a vontade dos governantes imposta aos governados, ou o poder é a vontade dos governados delegada aos governantes, para o exercerem em nome deles. Ou autocracia, ou democracia. Nas autocracias, quanto mais afundar-se o povo na ignorância, melhor. Quando muito, monopolizar o governo a educação, para fanatizar as massas e silenciá-las no trabalho. Nas democracias, quanto mais educado o povo na escola da liberdade, melhor. (...) Tendo proclamado, no art. 1º da Constituição para si, o regime democrático, o que cumpre, em consequência, ao país, é tudo fazer por que o povo se eduque na escola da liberdade, na consciência de seu destino, na capacidade para o trabalho. A educação é o problema básico da democracia.”

Essas disposições demonstram que, para o constituinte, a educação é uma finalidade constitucional impostergável. Não se consubstancia em simples recomendação a ser, ou não, observada pelos Poderes Públicos segundo seus interesses momentâneos, ideologia ou diligência (ou negligência) no trato dos objetivos fixados pela Lei Suprema. Ela é alicerce dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, especialmente daqueles inscritos nos incisos II e III do art. 1º da Magna Lex: cidadania e dignidade da pessoa humana. J. J. Rousseau2 já ressaltava:

“Nascemos fracos, precisamos de força; nascemos carentes de tudo, precisamos de assistência; nascemos estúpidos, precisamos de juízo. Tudo o que não temos ao nascer e de que precisamos quando grandes nos é dado pela educação.” (destaque nosso)

Segundo lição de Sérgio Alves Gomes3:

“Pode-se dizer que foi o reconhecimento da dignidade humana, em forma de princípio fundamental do Direito Constitucional e do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que levou à instituição do Estado Democrático de Direito, de modo a assentar-se este sob as bases daquele princípio. Igualmente, é em atenção ao princípio da dignidade humana que se reconhecem e se garantem direitos fundamentais. É em respeito ao pleno desenvolvimento da personalidade humana que o direito à educação merece a qualificação de direito fundamental.” (destaque nosso)

Pontes de Miranda4, no regime da Constituição derrogada, destacava a importância da educação, observando que:

“O Estado tardou em reconhecer as vantagens da instrução e educação do povo. Desconheceu, durante séculos, que somente se pode aumentar o valor do Estado, do país, aumentando-se o valor dos indivíduos. Ainda hoje há os que, dirigentes de povos, acham prudente a ignorância do povo. Tal como tardaram em descobrir que a escravidão era o trabalho menos econômico e que dos Estados sem liberdades para os seus nacionais os outros Estados são os senhores.

Não confundamos o direito à educação com as bolsas sob os Antoninos, em Roma, ou sob Carlos Magno, ou nos séculos do poder católico. Não se trata de ato voluntário, deixado ao arbítrio do Estado ou da Igreja, mas de direito perante o Estado — direito público subjetivo — ou, no Estado puramente socialista e igualitário, situação necessariamente criada no plano objetivo pela estrutura mesma do Estado.” (destaque nosso)

Na vigência da atual Constituição, José Afonso da Silva5 também considera a educação direito fundamental. Ensina o mestre:

“O art. 205. contém uma declaração fundamental que, combinada com o art. 6º, eleva a educação ao nível dos direitos fundamentais do homem. Aí se afirma que a educação é direito de todos, com o que esse direito é informado pelo princípio da universalidade. Realça-lhe o valor jurídico, por um lado, a cláusula — a educação é dever do Estado e da família —, constante do mesmo artigo, que completa a situação jurídica subjetiva, ao explicitar o titular do dever, da obrigação, contraposto àquele direito. Vale dizer: todos têm o direito à educação e o Estado tem o dever de prestá-la, assim como a família.” (destaque nosso)

A educação é, pois, um direito fundamental da sociedade e do indivíduo, e um objetivo a ser denodadamente perseguido e alcançado pelos Poderes Públicos, quaisquer que sejam os agentes transitoriamente ocupantes dos respectivos cargos. Como tal, deve ser interpretada quando confrontada com outros princípios, poderes ou deveres inscritos na Lei Suprema.


4. O DIREITO DO ESTADO DE INSTITUIR TRIBUTOS.

É inegável que a Lei Suprema confere ao Estado o direito de instituir tributos, inclusive discriminando as competências impositivas das entidades que compõem a Federação. Inquestionável, outrossim, que ela também alberga o princípio da independência e harmonia entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, além de agasalhar o princípio da reserva legal, que, em tema de tributação, vem detalhado no art. 150, em seção dedicada às limitações do poder de tributar.

Segundo alguns intérpretes, obedecidos os princípios da reserva legal e da independência do Poder Legislativo, à lei caberia, de forma ampla e sem quaisquer restrições, estabelecer as regras disciplinadoras da maneira como deve o contribuinte calcular o imposto sobre a renda. Seria o exercício pleno do direito à instituição de tributos. Daí entenderem que à lei compete, de forma absolutamente livre, definir quais as despesas que o contribuinte pode excluir dos rendimentos percebidos para apurar o montante pecuniário sobre o qual será calculado o imposto.

A questão não é tão simples como esses exegetas vislumbram. O direito de tributar do Estado não se opõe, substancialmente, ao direito à educação. Não há contradição entre eles, impondo-se, ao contrário, sua harmonização. A educação, direito fundamental alicerçador dos princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana, também não se contrapõe ao princípio da reserva legal. O direito à educação igualmente não colide com o princípio da independência entre os Poderes. O direito do Estado de instituir tributos deve ser exercido em consonância com os princípios da reserva legal e da independência entre os Poderes. Eles são instrumentos constitucionais de garantia dos direitos fundamentais do indivíduo perante o Estado, na medida em que condicionam a ação estatal, mas não se antepõem à realização das finalidades de que a Constituição o incumbiu.

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Cuida-se, em síntese, de adequação dessa potestade e desses princípios com o direito fundamental à educação e, por consequência, com os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, II e III). Os Poderes Públicos, especialmente o Legislativo e o Executivo, não podem, a pretexto de exercício de suas competências constitucionais, relegar a segundo plano os direitos fundamentais do indivíduo. Cabe-lhes delinear suas fronteiras, de forma a harmonizá-los, para que o poder de tributar não aniquile os princípios que ordenam e garantem os direitos fundamentais do indivíduo perante o Estado. Quando não o fazem, legislando de forma inadequada e solapando tais direitos, cabe ao Judiciário a relevante função de, interpretando a Constituição, definir os limites de atuação dos demais Poderes em obediência às finalidades e objetivos constitucionais.

A questão substancial, que deverá ser deslindada pelo Judiciário, é exatamente esta: se o exercício da competência legislativa é livre e incondicionado a ponto de autorizar o legislador ordinário, quando a exerce, a descurar, mitigar ou aniquilar direitos e garantias fundamentais do indivíduo — na espécie, a educação —, ou, ao contrário, se ele, legislador, encontra-se adstrito às finalidades contidas na Magna Lex, das quais não se pode desviar.


5. DESVIO DE PODER DE LEGISLAR: os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.

A doutrina e a jurisprudência já assentaram que o legislador não é incontrolável no exercício de sua função, devendo desempenhá-la em consonância com os valores e interesses protegidos pela Lei Suprema, sob pena de desvio de poder.

O desvio de poder legislativo tem sido objeto de estudo de grandes juristas, destacando-se entre os pátrios Caio Tácito6. Identificando-o como vício de inconstitucionalidade, o autor colaciona vários julgados do Supremo Tribunal Federal a propósito, em especial o RE 18.331. Diz o insigne mestre:

“A acolhida do cabimento do desvio de finalidade como vício de inconstitucionalidade fora anteriormente abonada em outro julgado do STF, em voto do Min. Orozimbo Nonato, Relator do RE nº 18.331, que, nos termos da respectiva ementa, após recordar o conhecido axioma de que o poder de taxar não se pode extremar como poder de destruir, destaca: ‘é um poder cujo exercício não deve ir até o abuso, o excesso, o desvio, sendo aplicável, ainda aqui, a doutrina fecunda do détournement de pouvoir’ (Revista Forense, vols. 145. e 146)”

(ob. cit., p. 189. – destaque nosso).

Ancorado em doutrinadores pátrios e estrangeiros, o ilustre jurista entende (op. cit., p. 193. – destaques nossos):

“(...) que a validade da norma de lei, ato emanado do Legislativo, igualmente se vincula à observância da finalidade contida na norma constitucional que fundamente o poder de legislar.

O abuso do poder legislativo, quando excepcionalmente caracterizado, pelo exame dos motivos, é vício especial de inconstitucionalidade da lei, pelo divórcio entre o endereço real da norma atributiva de competência e o uso ilícito que a coloca a serviço de interesse incompatível com a sua legítima destinação.”

Gilmar Ferreira Mendes dedicou capítulo especial de sua monografia sobre o controle de constitucionalidade à avaliação do excesso de poder legislativo como vício substancial de inconstitucionalidade. Com apoio na doutrina alemã e na lição de Canotilho, evidencia a prevalência da vinculação do ato legislativo a uma finalidade e à aplicação do princípio da proporcionalidade como elemento da legitimidade constitucional das leis. Oferece, como exemplos, precedentes colhidos na jurisprudência do STF (Controle de Constitucionalidade, Saraiva, 1990, p. 38-54).

Canotilho adverte que a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado e ao princípio da razoabilidade, a fundamentar “a transferência para os domínios da atividade legislativa da figura do desvio de poder dos atos administrativos” (Direito Constitucional, 4ª ed., 1986, p. 739). E, mais amplamente, o mesmo autor estuda o desvio de poder legislativo diante do princípio de que “as leis estão todas positivamente vinculadas quanto a fim pela Constituição” (Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, Coimbra, 1982, p. 259).

Em estudo sobre os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, Luís Roberto Barroso7 observa que:

“A atuação do Estado na produção de normas jurídicas normalmente se fará em certas circunstâncias concretas, será destinada à realização de determinados fins, a serem atingidos pelo emprego de determinados meios. Deste modo, são fatores invariavelmente presentes em toda ação relevante para a criação do direito: os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios. Além disto, há de se tomar em conta também os valores fundamentais da organização estatal, explícitos ou implícitos, como a ordem, a segurança, a paz, a solidariedade; em última análise, a justiça. A razoabilidade é, precisamente, a adequação de sentido que deve haver entre estes elementos.” (destaque nosso)

Ainda segundo o mesmo autor (art. cit., p. 130):

“Essa razoabilidade deve ser aferida, em primeiro lugar, dentro da lei. É a chamada razoabilidade interna, que diz com a existência de uma relação racional e proporcional entre seus motivos, meios e fins. (...) De outra parte, havendo razoabilidade interna da norma, é preciso verificar sua razoabilidade externa, isto é, sua adequação aos meios e fins admitidos e preconizados pelo texto constitucional. Se a lei contravier valores expressos ou implícitos no texto constitucional, não será legítima nem razoável à luz da Constituição, ainda que o fosse internamente.” (destaque nosso)

A doutrina e a jurisprudência são uníssonas quanto à impossibilidade de o Poder Legislativo, embora não tolhido em sua ação criativa, esquivar-se ao cumprimento dos princípios, normas e fins constitucionais, que também para ele são vinculativos. Conforme observa Luís Roberto Barroso (art. cit., p. 132):

“A evolução dos conceitos tem atenuado o rigor das formulações clássicas e permitido a contenção da chamada liberdade de conformação legislativa. O controle finalístico da atuação do legislador se exerce sobre dois momentos ‘teleologicamente relevantes’ do legislativo, que Gomes Canotilho assim identifica e comenta:

‘(i) Em primeiro lugar, a lei é tendencialmente uma função de execução, desenvolvimento ou prossecução dos fins estabelecidos na Constituição, pelo que sempre se poderá dizer que, em última análise, a lei é vinculada ao fim constitucionalmente fixado; (ii) por outro lado, a lei, embora tendencialmente livre no fim, não pode ser contraditória, irrazoável, incongruente consigo mesma.

Nas duas hipóteses assinaladas, toparíamos com a vinculação do fim da lei: no primeiro caso, a vinculação do fim da lei decorre da Constituição; no segundo caso, o fim imanente à legislação imporia os limites materiais da não contraditoriedade, razoabilidade e congruência.’” (destaque nosso)

A imposição de um teto legal para a dedução das despesas de educação, ou, em outras palavras, a proibição de dedução integral das despesas de instrução efetivamente incorridas pelo contribuinte, revela-se totalmente irrazoável à luz da norma constitucional que erige a educação como direito fundamental do indivíduo, atribui ao Estado o dever de prestá-la, promovê-la e incentivá-la, e define seu escopo: o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CF, arts. 6º, 23, V e 205).

A limitação legal conflita inelutavelmente com essas normas supremas, maltratando e aniquilando os fins constitucionalmente objetivados. Preocupada exclusivamente com a arrecadação tributária, a legislação em causa, na medida em que tributa como renda — isto é, como acréscimos patrimoniais — os dispêndios educacionais:

  1. cerceia o acesso à cultura e à educação, quando a Lex Legum determina exatamente o contrário, ou seja, que o Estado deve “proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência” (CF, art. 23, V);

  2. desestimula o investimento educacional, especialmente o realizado pelos pais em relação à sua prole, quando a Constituição impõe ao Estado o dever de promovê-la e incentivá-la (CF, art. 205);

  3. inibe ou prejudica substancialmente o “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (CF, art. 205), solapando, consequentemente, a cidadania e a dignidade da pessoa humana, princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, II e III);

  4. consubstancia discriminação infundada e atentatória ao devido processo legal substancial (CF, art. 5º, LIV), porque consagra, para o mesmo efeito (cálculo do imposto de renda), o abatimento integral das despesas médicas e das contribuições previdenciárias (Lei nº 9.250/1995, art. 8º, II, “a” e “d”), sendo certo que saúde, previdência social e educação são direitos de idêntica hierarquia constitucional, vale dizer, direitos fundamentais do indivíduo.

A propósito dos limites à ação do legislador, proclamou o Plenário da Suprema Corte, pela pena do Ministro Celso de Mello:

Substantive due process of law e função legislativa: A cláusula do devido processo legal — objeto de expressa proclamação pelo art. 5º, LIV, da Constituição — deve ser entendida, na abrangência de sua noção conceitual, não só sob o aspecto meramente formal, que impõe restrições de caráter ritual à atuação do Poder Público, mas, sobretudo, em sua dimensão material, que atua como decisivo obstáculo à edição de atos legislativos de conteúdo arbitrário.

A essência do substantive due process of law reside na necessidade de proteger os direitos e as liberdades das pessoas contra qualquer modalidade de legislação que se revele opressiva ou destituída do necessário coeficiente de razoabilidade.

I sso significa, dentro da perspectiva da extensão da teoria do desvio de poder ao plano das atividades legislativas do Estado, que este não dispõe de competência para legislar ilimitadamente, de forma imoderada e irresponsável, gerando, com o seu comportamento institucional, situações normativas de absoluta distorção e, até mesmo, de subversão dos fins que regem o desempenho da função estatal.”

[ADIn (MC) 1.063-DF, Pleno, RTJ 178/22 – destaque nosso]

Em outra decisão do Plenário, relator o Ministro Celso de Mello, reafirmou o Sodalício Maior que o poder de tributar não pode suprimir ou inviabilizar direitos de caráter fundamental, verbis:

“O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. O Estado não pode legislar abusivamente.

A atividade legislativa está necessariamente sujeita a rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público.

O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais.

A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte.

É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado.”

[ADIn (MC) 2.551-1-MG, Pleno, DJU de 20.4.2006, p. 5-6, Revista Dialética de Direito Tributário, vol. 131, p. 238. – destaque nosso]

A irrazoabilidade das normas que estabelecem limite legal à dedução das despesas de educação foi reconhecida pelo próprio Governo Federal.

Quando vigorava o limite anual de R$ 1.700,00 (um mil e setecentos reais) — ou seja, antes da edição da Lei nº 11.482, de 31.5.2007 —, o Poder Público Federal, consciente de sua insignificância, concedeu aos filhos das vítimas do acidente do Centro de Lançamento de Alcântara bolsa-educação de R$ 400,00 (quatrocentos reais) por mês e por dependente, atualizada anualmente de acordo com “o índice legalmente estipulado para o reajuste das mensalidades escolares das instituições particulares de ensino” (Lei nº 10.821/2003, art. 4º).

V ale dizer, fixou o valor anual da bolsa-educação em montante equivalente ao triplo do limite anual estabelecido para dedução de despesas de educação para fins de imposto de renda.

Da mesma forma agiu em relação aos dependentes de servidores do Ministério do Trabalho assassinados durante o exercício de suas funções, concedendo-lhes bolsa-educação cujo valor “corresponde a R$ 400,00 (quatrocentos reais) mensais por estudante, destinado ao custeio da educação formal, e (...) atualizado nas mesmas datas e pelos mesmos índices dos benefícios do regime geral de previdência social” (Lei nº 11.263, de 2.1.2006, art. 4º, §1º).

Eis a comprovação do óbvio: o próprio Governo Federal reconheceu que o teto anual por dependente, então em vigor (pouco mais de R$ 140,00 por mês), não correspondia ao dispêndio efetivo incorrido pelo contribuinte a título de gastos educacionais.

A atualização desse valor para os anos de 2007 a 2010 comprova que o Governo Federal continua a legislar de forma irrazoável e contrária aos princípios e objetivos constitucionais. O valor anual para o ano de 2010 (R$ 2.830,84) corresponde a R$ 235,90 por mês — montante muito inferior aos R$ 400,00 mensais fixados pelo art. 4º da Lei nº 10.821/2003 para a bolsa-educação concedida aos filhos das vítimas do referido acidente.

Se é esse o comportamento do Poder Público Federal, quais os motivos justificadores de tão disparatado e discriminatório tratamento legislativo? Que fins o legislador pretende alcançar com a fixação desse teto para efeito de imposto de renda? A finalidade perseguida pelo legislador atende aos objetivos e princípios estabelecidos pela Lei Suprema?

Nota-se, claramente, que o escopo governamental é unicamente arrecadatório. Limita, infundada e contraditoriamente, a dedução de despesas educacionais para inflar a base de cálculo do tributo e, consequentemente, amealhar mais recursos para os cofres do Erário. Para o governo, que expressamente reconhece a insignificância do teto por ele fixado, pouco ou nada importa a educação do povo. Nenhum é o conteúdo das normas constitucionais que definem a educação como princípio fundamental; nenhum significado tem para ele a diretriz constitucional do “pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

A inevitável conclusão é clara: trata-se de legislação que esboroa valores fundamentais constitucionalmente protegidos. Sua incompatibilidade com os princípios da cidadania e da dignidade da pessoa humana é cristalina. A restrição por ela imposta não pode subsistir, porque é flagrantemente contrária aos objetivos fixados pelo constituinte.

A interpretação sistemática e teleológica dessa legislação restritiva condena-a à vala da inconstitucionalidade, porque, como observado por Emerson Garcia8:

“Sendo a Constituição um sistema aberto de normas, será flagrantemente inconstitucional qualquer medida que se afaste dos valores responsáveis por sua concretização, ainda que emanada de normas infraconstitucionais.” (destaque nosso)

O Supremo Tribunal Federal privilegia a interpretação voltada à concretização dos escopos previstos na Constituição.

No julgamento da ADIn 1.600, o Plenário da Suprema Corte declarou “a inconstitucionalidade do ICMS sobre a prestação de serviço de transporte aéreo de passageiros”, porque a Lei Complementar nº 87, de 1996, que disciplinou a matéria, não permitia fossem atingidos os objetivos inscritos na Lex Legum (RTJ 186/855).

O voto condutor do Ministro Nelson Jobim (relator para o acórdão), após analisar as diversas inconsistências da formulação legal, sintetizou sua fundamentação em expressiva oração:

“A estruturação infraconstitucional do transporte aéreo de passageiros e as normas da LC 87/96 impedem, impossibilitam a aplicação das regras constitucionais.”

(RTJ 186/905 – destaque nosso)

O voto da Ministra Ellen Gracie, depois de destacar que a lei impugnada tornou inaplicáveis à atividade em causa “princípios gerais inerentes ao tributo que intenta regular, ensejando, com isso, agressão ao texto constitucional”, sumariou sua conclusão na seguinte assertiva:

“Não é qualquer Lei Complementar que servirá à finalidade constitucional, mas uma que discipline adequadamente a matéria. Vale dizer, tenha o potencial de bem regular a realidade fática sobre a qual ela deve incidir.”

(RTJ 186/911 – destaque nosso)

Em resumo, como destacou o Ministro Celso de Mello, ao incorporar ao seu voto os fundamentos daquele proferido pelo Ministro Nelson Jobim:

“A interpretação por ele dada objetivou conferir efetividade aos princípios constitucionais, em matéria de ICMS, eis que a estrutura da Lei Complementar nº 87/96, quando aplicada à prestação de serviços de transporte aéreo de pessoas e do transporte internacional de cargas, colide com o texto da Carta Política.”

(RTJ 186/933 – destaque nosso)

A legislação federal que limita o valor da dedução, para efeito de imposto de renda, de despesas de educação — fruto de exercício anômalo da função legislativa, que confere predominância à arrecadação fiscal em detrimento da realização de objetivo constitucional consagrado à educação (“pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”) — não se harmoniza com a Constituição Federal.

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Sobre os autores
Antonio Joaquim Ferreira Custódio

Advogado – OAB/SP 24.975. Procurador do Estado de São Paulo aposentado. Autor de "Constituição Federal Interpretada pelo STF" (Juarez de Oliveira, 9ª edição).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PASSOS, Rufino Armando Pereira ; CUSTÓDIO, Antonio Joaquim Ferreira. Imposto de renda da pessoa física: inconstitucionalidade do limite legal para dedução de despesas com educação. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2413, 8 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14325. Acesso em: 5 dez. 2025.

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