3.A fraude trabalhista por meio de intermediação de mão-de-obra
O crescimento da terceirização e do cooperativismo, no Brasil, teve impulso com a reestruturação produtiva, ocorrida no final da década de 1960.
Na forma de organização vertical de trabalho fordista, que imperou na primeira metade do século XX, a grande empresa ocupa-se de todas as etapas de produção, com utilização intensiva de trabalhadores numa mesma sede, sob critérios clássicos de subordinação. O trabalho é mecanizado e rigidamente padronizado, especializado e fragmentado. A produção ocorre em massa. Há segregação entre o trabalho manual e o intelectual. O trabalhador faz apenas uma única tarefa, sem gozar de autonomia e controle no processo produtivo, com forte cunho alienante.
Ante a necessidade de agregar maior flexibilidade e dinamismo à produção, o modelo de organização fordista perdeu espaço. Com a crise capitalista da década de 1970, foi superado pela forma horizontal de organização produtiva toyotista.
A saturação dos mercados e a baixa lucratividade impulsionaram a busca por um regime de acumulação flexível, onde as atividades diretas empreendidas pela empresa são mínimas e inexiste formação de estoques. Há diversidade de produtos, porém a produção é condicionada à demanda. Os trabalhadores são polivalentes e realizam suas tarefas múltiplas em equipe. A produção é enxuta e descentralizada por uma rede de fornecedores. Não há mão-de-obra ociosa.
Essa forma moderna de estruturação das empresas tem como estratégia a redução de custos, para garantir maior competitividade no mercado globalizado. Adota a externalização da produção e o fomento à flexibilização da tutela do labor humano. Ganha impulso o trabalho periférico de natureza temporária (Lei 6.019/74), autônoma, e a terceirização de serviços, que precarizam a condição social do trabalhador.
Esse fenômeno foi agravado com a globalização. Como salienta Arnor Lima Neto, "a globalização e a velocidade das transformações, em função dos avanços tecnológicos e da informática, influenciam novas tendências nos processos produtivos da geração de informações, lazer e entretenimento; alteram radicalmente os processos produtivos, e o objetivo é apenas a maximização dos lucros, incrementando-se a exploração trabalhista e desprotegendo os trabalhadores com a desregulamentação de seus direitos" [17].
A terceirização, em seus moldes originais, não é ilícita, pois visa possibilitar à empresa maior concentração de seus esforços na sua atividade principal, melhorando a qualidade e a produtividade, transferindo as acessórias para prestadores de serviços especializados exercerem-nas de forma autônoma.
Uma vertente doutrinária atribui como vantagens ao uso da terceirização a redução de custos, a maior competitividade, o aumento na lucratividade e na produtividade e a melhoria na qualidade de produtos.
O intuito de redução de custos, por meio da terceirização, é equivocado, pois, além dos pagamentos dos direitos dos trabalhadores, devem ser agregados o lucro e os custos do prestador de serviços. Para tornar possível o equacionamento da fórmula, os prejuízos são, via de regra, repassados ao trabalhador, seja pelo não pagamento da integralidade dos seus direitos, seja pelas precárias condições de trabalho, com franca desvalorização do labor humano.
A terceirização, ao invés de permitir a concentração do tomador na sua atividade principal e a melhoria de qualidade, vem sendo desvirtuada e utilizada como instrumento para a redução de direitos do trabalhador, precarizando o trabalho humano.
Rodrigo Carelli leciona que a precarização decorrente do trabalho intermediado ocorre por meio de três fenômenos observáveis: a subtração dos direitos dos trabalhadores intermediados, com relação aos que deteriam caso fossem diretamente contratados; a fragmentação da classe trabalhadora, com perda do poder organizativo coletivo dos trabalhadores; e a degradação do meio ambiente laboral, com maior probabilidade de acidentes de trabalho e menor proteção face aos riscos ambientais de trabalho. Além disso, o trabalho precarizado enseja a exclusão social do indivíduo [18].
O trabalhador terceirizado não aufere as mesmas vantagens percebidas pelos empregados da tomadora, notadamente as advindas de pactos coletivos, pois, como regra, não possuem o mesmo enquadramento sindical.
Não há legislação tratando genericamente acerca do fenômeno de terceirização, salvo em situações específicas, como serviços de vigilância (Lei 7.102/83). A princípio, ela é lícita. O que o direito repudia é a intermediação de mão-de-obra, utilizada para impedir a formação de vínculo com o verdadeiro empregador [19].
À falta de norma regulamentadora da terceirização, o Tribunal Superior do Trabalho, revisando o enunciado 256, editou a súmula 331, que assim dispõe:
TST Enunciado nº. 331 - Revisão da Súmula nº. 256 - Res. 23/1993, DJ 21, 28.12.1993 e 04.01.1994 - Alterada (Inciso IV) - Res. 96/2000, DJ 18, 19 e 20.09.2000 - Mantida - Res. 121/2003, DJ 19, 20 e 21.11.2003
Contrato de Prestação de Serviços - Legalidade
I
- A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº. 6.019, de 03.01.1974).II
- A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da administração pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). (Revisão do Enunciado nº. 256 - TST)III
- Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº. 7.102, de 20-06-1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.IV
- O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº. 8.666, de 21.06.1993). (Alterado pela Res. 96/2000, DJ 18.09.2000).
O inciso I estabelece, como regra, a ilegalidade da intermediação de mão-de-obra, com a formação de vínculo diretamente com o tomador, somente excetuando o trabalho temporário, previsto na Lei 6.019/74. Nesse caso, devem ser observados os seus estritos limites para a sua validade, como o prazo determinado de três meses, podendo ser prorrogado por igual período, desde que autorizado pelo Ministério do Trabalho e Emprego. Deve estar presente, também, uma das seguintes razões que permitam a celebração dessa modalidade contratual: atendimento de necessidade transitória de substituição de seu pessoal regular e permanente ou acréscimo extraordinário de serviços, nos termos do art. 2º da Lei 6.019/74.
O inciso II excetua o vínculo com o tomador de serviços quando se trata de Administração Pública direta, indireta e fundacional, por força da exigência de concurso público, prevista no art. 37, II da Constituição Federal. Nesse caso, embora também seja vedada a intermediação de mão-de-obra, não se forma o vínculo com o tomador de serviços, em virtude da proibição prevista na Lei Maior.
Enquanto o inciso I trata da intermediação de mão-de-obra, o inciso III dispõe acerca da terceirização lícita. Estabelece que não há formação de vínculo com o tomador, caso a prestação de serviços seja na atividade-meio, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
É vedada a terceirização na atividade-fim. Há presunção de que, nesses casos, estão presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego com o tomador de serviços, ocorrendo a intermediação de mão-de-obra.
O inciso IV trata da responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços pelas obrigações trabalhistas não cumpridas pelo empregador, em caso de subcontratação. Tem como pressuposto jurídico a culpa in eligendo e a culpa in vigilando do contratante, que prescindem de demonstração, pois se trata de responsabilidade objetiva, nos termos do art. 932, inciso III c/c o art. 933 do novo Código Civil.
Na Administração Pública, o Decreto-lei 200/67 permite a terceirização de alguns serviços no seu art. 10, §7º, in verbis:
Para melhor desincumbir-se das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle e com o objetivo de impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa, a Administração procurará desobrigar-se da realização material de tarefas executivas, recorrendo, sempre que possível, à execução indireta, mediante contrato, desde que exista, na área, iniciativa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.
No entanto, a intermediação de mão-de-obra é vedada, pois além de constituir fraude e precarizar o trabalho humano, viola o princípio do concurso público (art. 37, II da CF). Para sanar quaisquer dúvidas, o Decreto 2.271/97 expressamente a proíbe:
Art. 4º É vedada a inclusão de disposições nos instrumentos contratuais que permitam: (...) II - caracterização exclusiva do objeto como fornecimento de mão-de-obra; (...) IV - subordinação dos empregados da contratada à administração da contratante.
4.As cooperativas de mão-de-obra e o seu combate pela Inspeção do Trabalho
Um dos casos mais aviltantes de fraude na intermediação de mão-de-obra ocorre com a locação de trabalhadores por meio de cooperativas de trabalho. No final do século XX, o cooperativismo, no Brasil, proliferou-se.
Alice Monteiro de Barros [20], diante da inexistência de proibição legal expressa, admite a organização em cooperativas de trabalhadores vinculados a qualquer setor da economia, desde que presentes todas as características essenciais previstas na legislação civil (art. 1.094, incisos I a VIII do Código Civil) [21].
A política nacional do autêntico cooperativismo encontra respaldo constitucional no parágrafo 2º do art. 174 da Carta Magna, o qual estabelece que a lei apoiará e estimulará o cooperativismo e outras formas de associativismo. O art. 5º, inciso XVIII, da Constituição, por sua vez, expressa que a criação de associações e, na forma da lei, de cooperativas independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento.
As cooperativas, segundo Arnor Lima Neto, podem ser divididas em quatro grupos específicos: cooperativas de consumo, de produção, de crédito e de trabalho [22].
A despeito do cunho democrático e social fomentado pelo verdadeiro cooperativismo, com a inclusão do parágrafo único do art. 442 na Consolidação das Leis do Trabalho [23], grande parte do empresariado interpretou o dispositivo como permissivo para contratar mão-de-obra por intermédio de cooperativas formais, sob qualquer rótulo, e ver-se desobrigado de arcar com os direitos trabalhistas e encargos sociais dos trabalhadores subordinados, com redução dos custos de produção e precarização das relações de trabalho.
Esse dispositivo foi desvirtuado. Foram constituídas cooperativas de mão-de-obra com o único objetivo de fornecer trabalhadores subordinados, em substituição aos empregados do tomador [24].
Como ressalta Godinho, o parágrafo único do art. 442 não permite a ocorrência de fraudes às normas trabalhistas, pois não se trata de excludente legal absoluta, mas de simples presunção relativa de ausência de vínculo de emprego, caso exista efetiva relação cooperativa envolvendo o trabalhador lato sensu.
O vínculo empregatício deve ser reconhecido junto ao tomador, quando presentes os elementos fático-jurídicos da relação de emprego com o contratante dos serviços e a ausência de finalidade e princípios inerentes ao cooperativismo, afastando a simulação perpetrada pelas partes [25].
Para Arnaldo Sussekind [26], o acréscimo do parágrafo único do art. 442 da CLT, por ser óbvio e desnecessário, ensejou "uma falsa impressão e conseqüente abuso no sentido de que os cooperativados podem prestar serviços às empresas contratantes, sob a supervisão ou direção destas, sem a caracterização da relação empregatícia". Acrescenta o jurista:
Na verdade, porém, somente não se forma o vínculo empregatício com o tomador dos serviços quando os cooperados trabalham na cooperativa e para a cooperativa de que são partes, como seus associados. O tomador dos serviços da cooperativa deve estabelecer uma relação jurídica e de fato com a sociedade e não uma relação fática, com efeitos jurídicos, com os cooperativados.
Destarte, as cooperativas de trabalho permanecem fora do campo de incidência do art. 7º da Constituição, sempre que operarem de conformidade com a sua estruturação jurídica e finalidade social. Inversamente, quando os cooperativados trabalharem, na realidade, como empregados do tomador de serviços da cooperativa, configurada estará a relação de emprego entre eles e a empresa contratante. Aplicar-se-ão no caso o princípio da primazia da realidade consagrado no art. 9º da CLT, tal como referido no Enunciado TST n. 331. Neste sentido prevalecem a doutrina e a jurisprudência.
Para Márcio Túlio Viana, citado por Carelli, o parágrafo único do art. 442 da CLT refere-se tão somente aos verdadeiros cooperados, que mantêm entre si relação societária. Observa o jurista que, quando o legislador utilizou a expressão "qualquer que seja o ramo de atividade da sociedade cooperativa", a lei não está afirmando "qualquer que seja o modo pelo qual o trabalho é executado. (...) é necessário que se trate realmente de cooperativa, não só no plano formal, mas especialmente no mundo real" [27].
Como ressalta Arnor Lima Neto:
Em se tratando especificamente de cooperativas de trabalho, ficará caracterizada uma terceirização ilegal sempre que prevalecer a intermediação de mão-de-obra mascarando uma subjacente relação de emprego entre a empresa contratante e os trabalhadores "cooperativados", ou entre estes e a própria "cooperativa", empresa formalmente constituída sob essa modalidade legal, mas que, de fato, atue como preposta econômica da tomadora dos serviços dos "cooperados", com a finalidade de sonegar e fraudar as obrigações trabalhistas e legais [28].
Para Rodrigo Carelli [29]:
Pode haver terceirização, em atividade meio, por cooperativa de trabalho e produção, mas nunca por cooperativa de mão-de-obra, pois se tratará, no caso, de mera intermediação de mão-de-obra, e não verdadeira terceirização de serviços, destarte, contrária ao direito do trabalho. Se, mesmo na atividade-meio, estiverem presentes os requisitos da relação empregatícia, a relação entre a cooperativa e a empresa cliente deverá ser simplesmente desconsiderada.
A Constituição Federal de 1988, logo no seu art. 1º, inciso IV, elenca como fundamento da República Federativa do Brasil, o valor social do trabalho. O parágrafo único do art. 442 da CLT, de natureza infraconstitucional, não pode inovar a ponto de criar formas de trabalho sem quaisquer garantias e que deneguem o seu valor em um ordenamento jurídico que tem como parâmetro interpretativo a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da CF), bem como frustrar a efetividade do art. 7º da CF, que tem por objeto a melhoria da condição social dos trabalhadores, afastando a proteção social direcionada aos trabalhadores empregados, tendo em vista que, aos cooperados, não é assegurado nenhum direito previsto na legislação trabalhista.
A interpretação ampliativa do dispositivo celetista referido, que alcança os cooperativados que executam trabalho subordinado, é flagrantemente inconstitucional, devendo-se proceder a uma interpretação conforme a Constituição, para excluir do dispositivo a exegese que iniba a proteção constitucional destinada aos trabalhadores.
O parágrafo único do art. 442 deve ser interpretado conjuntamente com os princípios do direito do trabalho, as normas constitucionais e infraconstitucionais. Um simples dispositivo, mediante uma interpretação isolada e incorreta, não pode alterar toda a configuração principiológica e doutrinária da legislação trabalhista.
O direito trabalhista é permeado de normas imperativas, de ordem pública. Nessa relação, a autonomia da vontade é mitigada, em face da desigualdade entre os contratantes. São normas cogentes e indisponíveis aos particulares, não podendo ser derrogadas por pactos privados, sob pena de serem estes tidos como nulos de pleno direito, nos termos do art. 9º da CLT [30].
O contrato de trabalho é um acordo tácito ou expresso (art. 442 da CLT). Verificados os seus elementos fático-jurídicos, quais sejam, prestação de serviços por pessoa física, com caráter de infungibilidade, ou seja, intuito personae, não eventualidade, onerosidade, pessoalidade, subordinação jurídica ao tomador que detém a escolha do modo de realização da prestação de serviços (poder de direção empresarial), a relação empregatícia deve ser reconhecida.
A existência de um contrato de trabalho independe da vontade formal das partes ou do teor do pacto celebrado, pois vige no direito laboral o princípio da primazia da realidade (art. 9º da CLT). Prevalece a realidade dos fatos, independentemente da exteriorização formal, que emerge de documentos.
Os arts. 2º e 3º da CLT conceituam as figuras do empregador e do empregado. Ainda que duas empresas firmem um contrato de terceirização, se verificado que os empregados estão subsumidos ao conceito do art. 3º da CLT e a empresa contratante se encaixa, em relação a esses empregados, na definição do art. 2º, haverá um mero fornecimento de mão-de-obra, prática repugnada pelo direito [31].
O contrato é nulo, pois visa impedir a formação de vínculo empregatício junto ao tomador de serviços, bem como é ilegal, uma vez que o intermediador não se enquadra no conceito de empregador prevista no art. 2º da Consolidação.
Ressalte-se que, para a constatação da fraude, interessa o modo pelo qual o trabalho está sendo realizado, pois a simples inserção formal de trabalhadores em cooperativas, ou melhor, em "fraudoperativas", não tem o condão de transformá-los em autônomos.
Os Tribunais Trabalhistas vem rechaçando a prática de intermediação de mão-obra via cooperativa, conforme se depreende do seguinte julgado do TST:
(...) verifica-se que, se a realidade demonstra que a cooperativa foi criada apenas com o intuito de fraudar a legislação trabalhista (CLT, art. 9º), e ainda, se a realidade demonstra que estão presentes os requisitos do art. 3º da CLT, há plena possibilidade de se reconhecer o vínculo empregatício com a cooperativa ou com o tomador de serviços. (TST - RR 7722-2002-900-11-00, Quinta Turma, Relator Ministro Rider Nogueira da Cunha).
O serviço prestado pela cooperativa há de ser realizado de forma autônoma e eventual. Como leciona Ronaldo Curado Fleury, a relação entre a cooperativa e os cooperados somente é válida quando presentes os seguintes requisitos:
Adesão voluntária; limitação do número de cotas-partes para cada associado; singularidade de voto; retorno das sobras de exercício, e outros. Ocorre que, a realidade tem nos mostrado a adesão às cooperativas pelos trabalhadores, como se estivessem preenchendo uma proposta de emprego, a inexistência de assembléias e o sumiço da sobra líquida de exercício [32].
A cooperativa de trabalho, para ser lícita, deve constituir-se em uma unidade de produção, cuja organização será realizada conjuntamente pelos trabalhadores por meio da mesma [33], devendo ser observado se os princípios e requisitos do cooperativismo estão sendo cumpridos [34].
Para Godinho, o princípio da dupla qualidade "informa que a pessoa filiada tem de ser, ao mesmo tempo, em sua cooperativa, cooperado e cliente, auferindo as vantagens dessa duplicidade de situações". O verdadeiro cooperado, além de prestar serviços, deverá ser beneficiário central dos serviços prestados pela entidade (art. 6º, I, II e III e art. 7º da Lei 5.764/70). Como ensina o jurista, a oferta de serviços a terceiros constitui mero instrumento para a viabilização de seu objetivo primário, que é a prestação de serviços aos seus integrantes. Na cooperativa, as pessoas, além de serem donas do capital e dos meios de produção, são a própria força de trabalho. Destina-se a cooperativa a prestar serviços aos próprios associados, objetivando a melhoria da condição social dos cooperados, atuando por eles e para eles.
Outrossim, como justificativa para a sua existência, a cooperativa deve atender também ao princípio da retribuição pessoal diferenciada. Leciona Godinho que, ao cooperado deve ser assegurada
uma retribuição pessoal, em virtude de sua atividade autônoma, superior àquilo que obteria caso não estivesse associado. (...) O princípio da retribuição pessoal diferenciada é a diretriz jurídica que assegura ao cooperado um complexo de vantagens comparativas de natureza diversa muito superior ao patamar que obteria caso atuando destituído da proteção cooperativista [35].
Arnor Lima Neto aponta como princípios básicos adotados pelo cooperativismo internacional: adesão livre e voluntária; controle democrático; participação econômica do sócio; autonomia e independência; educação, treinamento e informação; cooperação entre cooperativas; preocupação com a comunidade [36].
O Estado deve coibir as fraudes perpetradas por terceirizações ilícitas e por cooperativas de mão-de-obra. Nesse sentido, a Organização Internacional do Trabalho editou a Recomendação 193, em 20/06/2002, que, no seu item 8, item 1, alínea "a" e "b", estabelece que as políticas nacionais deverão promover a aplicação das normas fundamentais do trabalho da OIT e da Declaração da OIT relativa aos princípios e direitos fundamentais no trabalho para todos os trabalhadores das cooperativas sem qualquer distinção, bem como devem velar para que não sejam criadas ou utilizadas cooperativas para fraudar a legislação do trabalho, nem para estabelecer relações de trabalho dissimuladas, e lutar contra as pseudo-cooperativas, que violam os direitos dos trabalhadores, velando para que a legislação do trabalho seja aplicada em todas as empresas.
A Portaria n. 925, de 28/09/2005, do Ministério do Trabalho e Emprego, que trata de auditorias fiscais nas empresas tomadoras de serviços de cooperativas de trabalho, impõe a verificação da observância pela cooperativa de trabalho dos princípios básicos do cooperativismo, bem como da existência dos elementos fático-jurídicos da relação empregatícia [37]. Verificada a fraude, o auditor deve lavrar o auto de infração, pois a conduta encontra óbice no art. 9º da CLT.
A jurisprudência majoritária dos Tribunais vem acatando a possibilidade de o auditor fiscal do trabalho reconhecer a relação de emprego, independentemente de controle prévio pelo Poder Judiciário. Nesse sentido, José Pedro dos Reis [38] elenca alguns precedentes:
"ADMINISTRATIVO. INFRAÇÃO À CLT. COMPETÊNCIA DO MINISTÉRIO DO TRABALHO. COOPERATIVAS DE TRABALHO. ATIVIDADE-FIM. VÍNCULO EMPREGATÍCIO. CERCEAMENTO DE DEFESA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. NORMAS DE SEGURANÇA. 1. No exercício das atribuições previstas nos artigos 626 e 628 da CLT, a fiscalização do Ministério do Trabalho pode desconsiderar contrato de terceirização e reconhecer o vínculo empregatício entre as partes, caso efetivamente constate que o contrato visa apenas burlar a legislação laboral e escapar das obrigações dela decorrentes. 2. Sendo incontroverso nos autos que a mão-de-obra cooperativada foi utilizada na atividade-fim da autora, qual seja, a construção civil, forçoso reconhecer a relação empregatícia entre os associados da cooperativa e a empresa tomadora do serviço (art. 3º da CLT), desconsiderando-se o contrato que visou desvirtuar e fraudar a aplicação da legislação trabalhista (art. 9º da CLT) e, por conseguinte, exigir-se o respectivo registro no livro de empregados, nos termos do art. 41 da CLT. 3. Não se cogita de cerceamento de defesa se a fiscalização do Ministério do Trabalho comprova ter entregue cópia do auto de infração ao preposto da empresa autuada na obra. Se, contudo, este não entrega o documento à empresa autuada, tal fato escapa à responsabilidade da fiscalização. 4. A prova testemunhal produzida nos autos, por si só, é insuficiente a infirmar a presunção de veracidade das alegações constantes do autos de infração, confirmadas em juízo." (TRF 4.ª Região, 3.ª Turma, Apelação Cível 420917, Rel. Juiz Francisco Donizete Gomes, DJU de 20/11/2002). A jurisprudência do STJ vai nessa mesma linha de pensamento, e aceita a possibilidade de até mesmo do auditor fiscal do INSS reconhecer a relação de emprego com a finalidade de obrigar ao recolhimento das contribuições previdenciárias.
"RECURSO ESPECIAL - FISCALIZAÇÃO - CONSTATAÇÃO DE LIAME LABORAL POR MEIO DE FISCAL DA PREVIDÊNCIA - ALEGADA POSSIBILIDADE DE AFERIÇÃO DE VÍNCULO EMPREGATÍCIO DE PESSOAS QUE PRESTAM SERVIÇOS NAS EMPRESAS QUE DEVEM RECOLHER CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA - INCOMPETÊNCIA PARA DESQUALIFICAR A RELAÇÃO EMPREGATÍCIA RECONHECIDA EM AMBAS AS INSTÂNCIAS – PRETENDIDA REFORMA COM BASE EM JULGADO DESTE SODALÍCIO - RECURSO PROVIDO. No particular, o fiscal, ao promover a fiscalização para eventual cobrança da contribuição, entendeu que os médicos que estavam a prestar serviços nas dependências do hospital da contribuinte possuíam vínculo de trabalho, razão por que lavrou os autos de infração. O IAPAS ou o INSS (art. 33 da Lei n. 8.212), ao exercer a fiscalização acerca do efetivo recolhimento das contribuições por parte do contribuinte, possui o dever de investigar a relação laboral entre a empresa e as pessoas que a ela prestam serviços. Caso constate que a empresa erroneamente descaracteriza a relação empregatícia, a fiscalização deve proceder à autuação, a fim de que seja efetivada a arrecadação. O juízo de valor do fiscal da previdência acerca de possível relação trabalhista omitida pela empresa, a bem da verdade, não é definitivo e poderá ser contestado, seja administrativamente, seja judicialmente. Nessa linha de entendimento, confira-se REsp 236.279-RJ, Rel. Min. Garcia Vieira, DJ 20/3/2000. Recurso especial conhecido e provido com base na divergência jurisprudencial." (STJ, 2.ª Turma, REsp 515821/RJ, Rel. Min. Franciulli Neto, DJ de 25/04/2005).
Diante do exposto, o auditor fiscal do trabalho, autorizado pela Carta Magna e por normas infraconstitucionais, possui o poder/dever de verificar a legalidade de contratos celebrados por cooperativas de trabalho e por empresas de terceirização de serviços, a fim de verificar se estão presentes os pressupostos caracterizadores da relação de emprego, nos termos do art. 2º e 3º da CLT, bem como pode autuar o infrator que visa burlar o fiel cumprimento das normas protetivas laborais, independentemente de prévio controle judicial.