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Admissão sem concurso público pela administração e seus efeitos no contrato de trabalho

18/02/2010 às 00:00
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Por força dos princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade, a Constituição estabeleceu como regra geral o ingresso de pessoal no serviço público através de concurso público de provas ou de provas e títulos (art. 37, II). O ingresso sem concurso público é excepcional.

Assim, não se pode adotar um modo excepcional de admissão de pessoal para burlar a regra geral de admissão por concurso público. Não se pode, por exemplo, adotar a modalidade de contratação por tempo determinado prevista no art. 37, IX, da CF, para o preenchimento de cargos ou empregos públicos que representem necessidade permanente da Administração, pois a Constituição diz que esta forma de contratação é destinada ao atendimento de necessidade temporária de excepcional interesse público.

Discorrendo acerca da contratação temporária, Alexandre de Morais destaca que "três são os requisitos obrigatórios para a utilização dessa exceção, muito prestigiosa, como diz Pinto Ferreira, por tratar-se de uma válvula de escape para fugir à obrigatoriedade dos concursos públicos, sob pena de flagrante inconstitucionalidade: excepcional interesse público, temporariedade da contratação, hipóteses expressamente previstas em lei" (Direito Constitucional, 2005, p. 314).

Destarte, se a função exercida por um funcionário público admitido sem concurso atende a uma necessidade permanente da Administração e não temporária, houve fraude na sua contratação e burla à exigência do concurso público para o ingresso nos quadros da Administração. Disso resulta que: a) se o funcionário não exerce função pública de natureza temporária; b) se não exerce cargo público de provimento efetivo e nem tampouco cargo em comissão; c) logo, o funcionário exerce irregularmente emprego público.

A solução jurídica dada pela Constituição para a hipótese de contratação irregular para emprego público é a nulidade do ato e a punição da autoridade responsável (art. 37, § 2º).

Nulidade é um conceito oriundo do Direito Civil. O Código Civil distingue os negócios jurídicos anuláveis dos negócios jurídicos nulos. Sílvio Rodrigues ensina que "alguns atos vêm inquinados de defeitos irremediáveis, pois lhes falta um elemento substancial, para que o negócio ganhe validade. (...) De fato, preceitos há que são de ordem pública, pois interessam diretamente à sociedade. São regras ligadas à organização política, social e econômica do Estado, de modo que a infringência a um preceito dessa natureza representa ofensa direta à estabilidade, senão à estrutura da comunidade. Não raro o ato tem uma finalidade que colide com a ordem pública, ou que machuca a ideia de moral social ou de bons costumes. É um interesse público que é lesado; por conseguinte, a própria sociedade reage, e reage violentamente, fulminando de nulidade o ato que a vulnerou. Noutras hipóteses, o legislador tem por escopo proteger determinadas pessoas, que se encontram em dadas situações, tal como o menor púbere ou, ainda, o que consentiu inspirado num erro, induzido pelo dolo, forçado pela coação ou ludibriado pela simulação e pela fraude. Nestes casos, não houve ofensa direta a um interesse social, mas é possível que tenha resultado prejuízo para aquela pessoa que o ordenamento jurídico quer proteger. Em tais hipóteses, o legislador permite que o interessado, se quiser, promova a anulação do ato que o prejudica. Não é a sociedade que reage contra tal ato; ela apenas concede ao prejudicado a prerrogativa de reagir, se lhe aprouver. Se, porém, ele se conformar com os efeitos do ato defeituoso, tal circunstância é indiferente à ordenação jurídica, que desde então atribui validade ao ato assim ratificado" (Direito Civil, v. 1).

A nulidade prevista no art. 37, § 2º, da CF é absoluta e, como tal, não admite convalidação e deve ser declarada de ofício pelo juiz.

Entretanto, a anulação do ato anulável ou a declaração de nulidade do ato absolutamente nulo levam à restituição das partes ao estado em que antes dele se achavam, e não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente. É assim que deve ser entendido o art. 182 da Lei 10.406/2002.

Discorrendo sobre o assunto, Sílvio Rodrigues ensina que "as nulidades, quer a absoluta, quer a relativa, operam retroativamente, por expressa disposição da lei, atuando como se o ato malsinado jamais houvesse existido. Assim, por exemplo, se uma das partes não pode dispor de seus bens e promete vendê-los, o negócio é nulo, as importâncias recebidas precisam ser devolvidas, voltando tudo ao estado anterior. Por vezes ocorre, entretanto, que a recondução das partes ao estado anterior torna-se impossível. Neste caso procura-se obter o equivalente através de indenização. (...) Decretada a nulidade, portanto, procura o legislador apagar qualquer efeito do ato, recorrendo à indenização, se não puder alcançar tal resultado diretamente" (ob. cit.).

Tratando-se de direito do trabalho, com muito mais razão, a nulidade do contrato por ausência de formalidade essencial para a sua validade (prévia submissão a concurso público) leva necessariamente à indenização equivalente ao montante das verbas salariais que são devidas numa relação de emprego típica. Isto porque a restituição ao estado anterior é materialmente impossível: nem a Administração pode devolver ao trabalhador as energias que este despendeu nem o trabalhador pode devolver os salários, que certamente foram utilizados para a aquisição de alimentos e outros bens necessários à sobrevivência humana.

Discorrendo sobre o tema, Orlando Gomes e Elson Gottschalk dizem o seguinte:

"A questão da ineficácia do contrato de trabalho seria resolvida em termos tão simples se fora possível aplicar ao mesmo, com todo rigor, a teoria civilista das nulidades. Mas a natureza especial da relação de emprego não se compadece com a retroatividade dos efeitos da decretação da nulidade. O princípio, segundo o qual o que é nulo nenhum efeito produz, não pode ser aplicado ao contrato de trabalho. É impossível aceitá-lo em face da natureza da prestação devida pelo empregado. Consistindo em força-trabalho, que implica em dispêndio de energia física e intelectual, é, por isso mesmo, insuscetível de restituição. Se a nulidade absoluta tem efeito retroativo, se repõe os contraentes no estado em que se encontravam ao estipular o contrato nulo, como se não fora celebrado, nenhuma parte tem o direito de exigir da outra o cumprimento da obrigação. Donde se segue que o empregado não tem o direito de cobrar o salário ajustado. Esta seria a consequência inelutável do princípio da retroatividade da nulidade de pleno direito.

"Mas, é consequência evidentemente absurda, ainda mesmo se admitindo que o trabalhador possa exigir a remuneração com o fundamento na regra que proíbe o enriquecimento ilícito. Porque a verdade é que a retroatividade só teria cabimento se o empregador pudesse devolver ao empregado a energia que este gastou no trabalho. Mas, como isso não é possível, os efeitos da retroatividade seriam unilaterais, isto é, beneficiariam exclusivamente ao empregador, como pondera De la Cueva, ao criticar a opinião e Huedk-Nipperdey. Deve-se admitir em toda extensão o princípio segundo o qual trabalho feito é salário ganho. Pouco importa que a prestação de serviço tenha por fundamento uma convenção nula. Em Direito do Trabalho, a regra geral há de ser a irretroatividade das nulidades. O contrato nulo produz efeitos até a data em que for decretada a nulidade. Subverte-se, desse modo, um dos princípios cardeais da teoria civilista das nulidades. A distinção entre os efeitos do ato nulo e do ato anulável, se permanece para alguns, não subsiste em relação a este contrato" (Curso de Direito do Trabalho, 2000, p. 114).

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Poder-se-ia ponderar que o interesse público pela prevalência da moralidade administrativa e da impessoalidade é tão forte que o interesse individual do trabalhador contratado irregularmente não deveria prevalecer e nenhuma verba trabalhista deveria ser paga nestes casos. Em verdade, estamos diante de uma antinomia constitucional. De um lado, os princípios da moralidade e da impessoalidade, que negam validade ao contrato de trabalho formalizado sem concurso; de outro, os princípios da dignidade da pessoa humana e do valor social do trabalho (art. 1º da Constituição), que são feridos quando se nega ao trabalhador os direitos que recompensam o suor do seu rosto.

A hermenêutica das normas constitucionais oferece vários mecanismos interpretativos. Canotilho cita o método da concordância prática, pelo qual deve-se promover a coordenação dos valores jurídicos conflitantes de modo a evitar o sacrifício total de uns em relação aos outros. Não se trata de estabelecer uma hierarquia entre as normas constitucionais, mas si de delimitar o alcance de cada uma delas, dentro do conjunto. As normas constitucionais não podem ser vistas isoladamente, mas com parte de um todo harmônico, que visa a um fim comum.

Assim é que, ao interpretar as normas constitucionais, deve-se superar a contradição de princípios por meio da "redução proporcional do âmbito de alcance de cada um deles, ou, em alguns casos, mediante a preferência ou a prioridade de certos princípios" (Jorge Miranda, citado por Alexandre de Morais, ob. cit., p. 11).

No caso em análise, é preciso ter em mente que os princípios da dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho são fundamentos da existência da própria República Federativa do Brasil (CF, art. 1º). Deste modo, a aplicação dos princípios que regem a Administração Pública não pode conduzir o intérprete a uma conclusão que diminua o valor social do trabalho ou reduza a pessoa humana a uma condição de indignidade. E é isso que ocorre quando se nega os direitos trabalhistas a uma pessoa que derramou seu suor, em favor da coletividade, no desempenho de uma atividade lícita em seu objeto (sim, pois a ilicitude da contratação não contamina o objeto do trabalho).

Assim, sob os pontos de vista civil, trabalhista ou mesmo constitucional, o art. 37, § 2º, da Constituição deve ser interpretado no sentido de se garantir ao trabalhador contratado irregularmente, e que efetivamente tenha trabalhado, uma indenização equivalente aos direitos mais elementares, garantidos constitucionalmente aos trabalhadores, que visam a compensar as energias gastas e protegê-los contra a fadiga, tais como: salário mínimo, 13º salário, adicional noturno, salário-família, limitação de jornada diária e semanal, repouso semanal remunerado, horas extras e férias. Evidentemente, não são devidos direitos como aviso prévio indenizado e multa rescisória, pois o contrato nulo pode e deve ser desfeito a qualquer momento pela Administração.

Entretanto, por força de norma específica, é garantido também o depósito do FGTS do período trabalhado em conta vinculada, nos termos da Lei 8.036/90, art. 19-A, que dispõe: "É devido o depósito do FGTS na conta vinculada do trabalhador cujo contrato de trabalho seja declarado nulo nas hipóteses previstas no art. 37, § 2º, da Constituição Federal, quando mantido o direito ao salário". Aliás, esta inovação introduzida pela MP 2.164-41/2001 só vem confirmar o que foi dito até agora: mesmo nulo, o contrato de trabalho formalizado sem concurso gera direitos adquiridos em função do trabalho desempenhado. E permite a seguinte ilação: se são devidos até os depósitos do FGTS, que têm natureza indenizatória, por que não seriam devidas verbas como 13º salário e horas extras, que visam a remunerar o trabalho e têm natureza eminentemente salarial?

Saliente-se que não há qualquer inconstitucionalidade no art. 19-A da Lei 8.036/90, pois este dispositivo apenas aplica os princípios legais e constitucionais acima vistos.

Por fim, ao declarar a nulidade contratual por ausência de submissão a concurso público num caso concreto, deverá o juiz determinar a expedição de ofício ao Ministério Público, a fim de que seja processada e punida a autoridade responsável pela contratação irregular, nos termos da última parte do art. 37, § 2º, da Constituição.

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Sobre o autor
Alexandre Roque Pinto

Juiz do Trabalho na Paraíba (13ª Região); ex-Juiz do Trabalho em Pernambuco (6ª Região)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Alexandre Roque. Admissão sem concurso público pela administração e seus efeitos no contrato de trabalho. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2423, 18 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14367. Acesso em: 22 dez. 2024.

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