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Sobre a ação civil pública de extinção do domínio

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A Secretaria Nacional de Justiça do Brasil promoveu em Brasília, de 1º a 4 de setembro, 2009, o Seminário Internacional de Extinção do Domínio. O evento realizado no Senado Federal contou com a presença de representantes de vários países, que palestraram e debateram sobre o tema que internacionalmente não é novo, enquanto é praticamente inusitado no território brasileiro. Mesmo nos meios acadêmicos, só há pouco tempo se começou a se afeiçoar ao instituto da extinção do domínio. Não à toa pois inexiste entre nós esse instrumento de direito civil, que na Colômbia, Itália, entre outros, tem se revelado altamente eficaz no combate ao crime organizado.

Itália, Cuba, Colômbia, México, Costa Rica. Citam-se alguns que mandaram representantes para o debate promovido pelo Ministério da Justiça brasileiro; mas há mais países que contam com a ação civil pública de extinção do domínio. Através de tal ação, o Estado pode transferir para si a propriedade de bens e direitos nas hipóteses em que o bem, direito, valor, patrimônio ou seu incremento procedam, direta ou indiretamente, de atividade ilícita, estejam de qualquer forma relacionados ou destinados à prática ilícita ou, o que é mais letal para a alta cúpula do crime organizado, quando não tenham comprovação de origem lícita.

O crime se profissionalizou, indiscutivelmente. Séculos atrás. Virou profissão, depois comércio, firma, empresa, indústria nacional e, hoje, multinacional. Em algum lugar perdido no tempo, o primeiro ladrão de animais viu que a atividade lhe era rentável e que o risco assumido poderia compensar com a reiteração de condutas impunes. Atualmente pode-se falar em megaempresários do tráfico de drogas, do contrabando de armas, da corrupção institucional, de crimes contra o sistema financeiro. Da arte e ciência de roubar galinhas (com licença à referência ao livro-crônica de João Ubaldo Ribeiro), o crime veio se estruturando até alcançar um nível de organização e complexidade estupenda, com criteriosa definição de papéis e funções especializadas, mais similar à dinamicidade de bem montadas empresas do que com a burocracia e entraves formais do Estado.

Não tem mais como se conter o crime organizado apenas com medidas penais, de conteúdo repressor e "post factum". O crime está ali, na frente das autoridades, que ficam correndo atrás do que já ocorreu, com um trabalho hercúleo para reconstruir dentro de um processo formalístico (para alguns, cabalístico) um fato histórico que já danificou os bens jurídicos que se queria tutelar. Às vezes, parece até que vai se quebrar o encadeamento de ilícitos, que se vai furar a malha criminosa, romper a rede antijurídica, a qualquer momento, tão visível que se tornam certas nuances do crime organizado. Mas é como tentar lamber o próprio cotovelo. Está ali, pertinho, só que por mais que se estique o pescoço e coloque a língua para fora, não dá. E não tem dado mesmo. Não, de forma suficiente e cabal. Chegam bem próximo do foco criminógeno, dá até para sentir o cheiro da droga, da pólvora e do sangue, mas lamber o tal do cotovelo ninguém consegue. Fica que nem passatempo de criança, brincadeira de polícia e bandido. Porém com brincadeira séria não se brinca.

Ora, se o crime se organizou, especializando-se sobremaneira; se numa estrutura complexa chega a haver setorização de tarefas, espécies de gerências, com o pessoal do trabalho sujo (seguranças, cães de guarda, assassinos), até o povo do colarinho branco, responsável pela lavagem do capital, assessoria jurídica e "atividades forenses", como o Estado pode ficar preso numa estrutura persecutória retrógrada, com instrumentos normativos do século passado? E olha que certamente nas organizações criminosas não há espaço profissional para os "aspones", tão comuns em repartições públicas e em algumas chefaturas.

O melhor combate é o estratégico, através de instrumentos jurídicos modernos e eficazes. Essa estratégia, porém, não pode se limitar apenas à utilização de institutos de direito penal e de processo penal, como dito. O direito forma um sistema único, apenas com ramificações diversificadas. É óbvio que o Brasil, nessa guerra contra o crime organizado, pode se servir de todas as alternativas dentro de todas as disciplinas jurídicas. Nesse embate, que se pretende planejado, estratégico, é que se insere o instituto da extinção do domínio, que é de direito privado, mas que pode servir como instrumento para asfixiar o crime organizado, dificultando o seu proveito econômico e o seu financiamento e refinanciamento.

O objetivo maior é retirar a capacidade financeira das organizações criminosas, valendo ainda, o instituto, para combater os males gerados pelos testas-de-ferro ou laranjas. A ação de extinção de domínio, nos países que já a adotam, é uma ação de natureza real, voltada para a coisa, cujo domínio privado seria extinto, com sua reversão para o Estado – tudo dentro dos parâmetros constitucionais, evidentemente, não se confundindo em nada com o confisco. Não haveria que se falar ou necessitar de prévia condenação criminal. Havendo indícios da procedência, direta ou indireta, de atividade ilícita etc. e, especialmente, não se conseguindo comprovar a sua origem lícita, o bem se revelaria de domínio injurídico e a respectiva propriedade ou posse não mereceria mais a tutela estatal.

Em verdade, ontologicamente, detectar-se-ia que o domínio nunca existiu para o direito, já que sua própria origem derivada é viciada. Daí essa ação ter efeito retrospectivo podendo alcançar bens já adquiridos, resguardando-se, à evidência, os interesses de terceiros de boa-fé, que poderiam ter direito à indenização. Situação bem distinta é a do repudiado confisco, onde a aquisição do bem ou valor foi lícita.

Continuemos nesta vertente reflexiva. Na origem dos direitos das pessoas sobre as coisas e bens, prevalecia a lei do mais forte, até que o Estado passou a tutelar de forma organizada o direito de propriedade privada, além do seu próprio direito ou do monarca, em certos períodos da história. Nem sempre foi assim. Pela lei da natureza, alguém possui direito sobre o solo urbano? A rigor, não. Vislumbremos as primeiras células sociais, onde não havia cartórios de registro de imóveis, nem Código Civil, nem compromisso de compra e venda, títulos de crédito e ações na bolsa de valores, nem pensar. Mas os tempos modernos são bem diferentes. Num Estado Democrático de Direito se passou a ter uma declaração de domínio e sua tutela pública. E é o próprio Estado quem dita os parâmetros normativos para essa espécie de proteção jurídica.

Qual o sentido de o Estado tutelar um domínio adquirido ilicitamente quando o proprietário é incapaz de provar sua aquisição por meios lícitos? É disso que cuida o instituto da extinção do domínio. Seria como se o bem nunca tivesse existido para os fins do direito. Fazer vistas grossas e resguardar cabalmente o direito de propriedade de origem ilícita é o mesmo que arar e fertilizar a terra para o crime organizado, que tão facilmente tem conseguido se embrenhar na sociedade e na vida econômica nacional, camuflando-se.

Proudhon, um dos pais do anarquismo, dizia que "a propriedade é um roubo". Esse tom de discurso é impertinente em um Estado moderno e social de direito, mais ainda num modelo de Estado Liberal, cuja propriedade possuía características de direito absoluto – hoje, falando-se em função social da propriedade. Mas consertando essa ideia anarquista, torta para o nosso modelo constitucional: a propriedade adquirida licitamente é justa e merece a integral proteção do Estado e da Constituição, mas aquela que advém dos porões do crime organizado, cujo proprietário não consegue de jeito nenhum provar a origem lícita é sim um "roubo".

A questão é se merece ser tratado como de domínio jurídico aquele bem, direito, valor, patrimônio ou seu incremento que seja originário do crime organizado, direta ou indiretamente, ou cuja origem lícita não se consiga de forma alguma provar. Não. Nunca. Se um indivíduo (exemplos no Brasil não faltam) não consegue comprovar, através de qualquer meio de prova admitida no direito, como ficou milionário da noite para o dia, é óbvio que o seu dinheiro tem uma origem ilícita. Ou ele inventou uma máquina de fazer dinheiro, mas então o crime será outro. Se, após o devido processo legal, nada provar, não mais faria jus à tutela do Estado sobre seu domínio. Sua qualidade de dono sobre aquele bem seria extinta, restando-lhe apenas reclamar para o bispo, no sentido metafórico.

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Não se pode argumentar que esse instituto é dispensável ante a possibilidade de perda do bem como consequência da condenação penal. Está lá no Código Penal essa alternativa, tudo bem. Mas como cuidar daqueles cujo crime de origem não se consegue comprovar exaustivamente? Ele é traficante de drogas, de armas, está metido com corrupção ou é garimpeiro de diamantes em reserva indígena? Só se sabe que ficou riquíssimo sem qualquer causa aparente satisfatória e anda em péssimas companhias. Quem não conhece, no seu município, a história (que às vezes mais parece lenda) daquele cidadão que chegou puxando a carrocinha e em menos de três anos está rico e todo mundo diz que é traficante, mas ninguém consegue provar? Na realidade, ele se valeu de instrumentos financeiros e comerciais de forma bastante eficaz e diluiu seu patrimônio originariamente criminoso no meio social e empresarial dando-lhe uma aparência de licitude; menos quanto à origem, que de uma forma ou de outra sempre ficaria sem cobertura.

Mas é claro que o tal empresário, que ficou milionário da noite para o dia, pode ser uma espécie de midas, um menino prodígio do comércio e das finanças. Simples. Cumpre-lhe a prova dos negócios vultosos que lhe propiciaram o enriquecimento quase instantâneo. Se conseguir prová-lo, o Estado lhe mantém a tutela da propriedade, cumprida sua função social. Não tem um porquê sequer com que se preocupar, só se andou sonegando tributos demais e parte do seu patrimônio, incrementado com os frutos da sonegação, ficaria juridicamente a descoberto (fora do manto do direito), e consequentemente seria aplicado o instituto sobre essa sobra do caixa dois.

A pretensão é agir contra os patrões do crime organizado, mas também combater os laranjais que sempre o cercam. Cidadão é pião de obra, verão subempregado, inverno em lascas, e tem uma fazenda de mais de 10 mil hectares no seu nome. Simples, só provar como adquiriu. Herança? Certo. Doação? Acredito. Sorte? Onde foi o bingo?

Temos que parar de tapar o sol com a peneira. Os números em torno do crime organizado, incluída a corrupção pública, são gigantescos. Devemos parar de ser hipócritas e de aceitar tanto cinismo. Há muita gente no Brasil que ficou rica de forma honesta, pessoas que amealharam fortunas licitamente. São esses os que merecem a tutela definitiva do Estado sobre os seus domínios. Agora, se na origem (derivada) a transmissão do domínio já foi contaminada pelo dinheiro do crime, mesmo que não se comprove penalmente o crime originário, vê-se, como já dito, que esse domínio, para o direito, nunca existiu como domínio jurídico. Isso sim é respeitar o Estado de Direito. Salvaguardar o dinheiro do crime é próprio de um Estado do Crime. Não vale aqui o princípio do "non olet". O dinheiro que retroalimenta o crime organizado tem sim cheiro, por mais que se tente perfumá-lo lavando-o sucessivamente.

Quem argumenta que é simples autuar a criminalidade organizada, que não precisamos mesmo desse instituto, que traga então uma alternativa exequível para combater financeiramente os megaempreendimentos criminosos. Outro, que não eu, já disse: essa jaboticaba não é brasileira. A tendência dos países modernos é caminhar nesse rumo. A eficácia da ação civil pública de extinção do domínio é notória nos países que adotaram essa alternativa legislativa (Itália e Colômbia, só para citar alguns, além do esparramamento nos países da comunidade europeia).

É hora de parar também com a esquizofrenia de que cidadãos honestos serão vítimas do "Leviatã", do Estado-Juiz, do Ministério Público, que vão lhe tomar o patrimônio. Temos uma das Cortes Supremas mais garantistas do mundo. Garantista até demais muitas vezes. Cláusulas pétreas inabaláveis. E cidadão de bem sabe onde estão todos os reais e o sinal de multiplicação e de soma das suas rendas. Eles são é vítimas dessa criminalidade covarde e desenfreada, da corrupção de agentes públicos que dão risadas com a morosidade dos julgamentos, com caderninho de notas enfiado na sola do sapato, com os nomes dos laranjas que nunca serão descobertos e contra os quais, hoje, o Estado brasileiro está praticamente de mãos amarradas.

Nossa Lei não pode ficar servindo de trincheira para o crime organizado. A sociedade brasileira, especialmente aqueles que sonham com um país melhor, tem que se organizar e propor a aprovação o quanto antes desse instituto civil, da extinção do domínio por atividade ilícita, que servirá e muito para arrefecer financeiramente o crime organizado, cujo dinheiro é a principal mola propulsora e é o que lhe dá poder, de impunidade até. Não, a propriedade não é um roubo, mas o domínio poderá ter origem em um "roubo" e via de consequência não merecerá ser tutelado, cumprindo ao Estado extingui-lo.

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Sobre o autor
Alexandre Jésus de Queiroz Santiago

promotor de Justiça do Estado de Rondônia

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTIAGO, Alexandre Jésus Queiroz. Sobre a ação civil pública de extinção do domínio. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2424, 19 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14373. Acesso em: 22 dez. 2024.

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