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O direito de propriedade e a desapropriação "pro labore" do art. 1228, §§ 4º e 5º, do Código Civil de 2002

20/02/2010 às 00:00
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1.INTRODUÇÃO

O direito de propriedade vem consagrado na Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XII, aliado ao art. 1228 do Código Civil que define os direitos do proprietário em face da coisa (usar, gozar e dispor da coisa e de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha).

Apesar de ser uma garantia constitucional consagrada, tal direito não é absoluto. O Estado detentor do poder soberano poderá, em virtude de interesse público, desapropriar a coisa do seu dono mediante prévia e justa indenização (art. 5º. XXIV da CF).

Diante disto, a propriedade poderá ser retirada do seu legítimo dono se o interesse público estiver acima dos interesses privados. Mas para que ocorra é necessário todo um procedimento administrativo a fim de efetivar a desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou interesse social.

Ao lado da desapropriação, temos a aquisição da propriedade mediante a usucapião, a qual transfere a propriedade do legítimo dono ou possuidor a outra pessoa, mediante o preenchimento de certos requisitos de tempo na posse, bem como esta ser mansa e pacífica, continuada, sem oposição do seu verdadeiro proprietário.

Com a edição do Código Civil de 2002, o legislador infraconstitucional criou outra modalidade de perda da propriedade, a qual está prevista no art. 1228, § 4º e 5º, em que o dono perderá a propriedade caso o imóvel seja de área extensa, com a posse ininterrupta e de boa fé, pelo período de 5 anos e de considerável número de pessoas, desde que estas pessoas, em conjunto ou separadamente, tenham realizado obras consideradas pelo magistrado de interesse social e econômico relevante.

Ademais, para que ocorra tal desapropriação, o proprietário receberá uma justa indenização fixada pelo Juiz.

Essa modalidade de perda e aquisição da propriedade não é tão fácil quanto aparenta. Deverá preencher todos os requisitos a fim de que o juiz, no caso concreto, possa decidir pela desapropriação denominada por alguns doutrinadores como posse-trabalho ou "pro labore" [01].


2.CONSTITUCIONALIDADE DO INSTITUTO

Apesar de soar estranho o instituto mencionado, sua constitucionalidade é patente, já que não ofende a garantia da propriedade e remete sua finalidade à função social da propriedade que é trazer dignidade à pessoa e à sua família.

A função social da propriedade está prevista no art. 5º, inciso XXIII da CF, em que define a propriedade sendo como um direito desde que cumpra sua finalidade social.

Então, se a propriedade não cumpre sua finalidade social poderá ser objeto de expropriação, caso esteja ao léu e seu proprietário permite que outras pessoas invadam e tomem posse do imóvel improdutivo.

A Constituição Federal alinha a função social da propriedade urbana com o cumprimento das regras previstas no plano diretor do município [02]. Com relação à propriedade rural, a CF também alinha a função social ao cumprimento de certos requisitos [03].

Quando o proprietário, por meio da sua conduta, abandona ou renuncia a coisa, ficando esta por longo período de tempo sem cuidados e com a falta de pagamento dos impostos, outras pessoas poderão tomar posse daquele imóvel podendo adquiri-lo por meio da usucapião extraordinária ou especial.

Caso o instituto o qual estudamos fosse inconstitucional, também tais formas de perda e aquisição de propriedade também seriam, se considerarmos o direito à propriedade como um direito absoluto. Porém, não é assim o tratamento jurídico dado à propriedade.

Assim, a desapropriação judicial prevista no art. 1228, § 4º e 5º do CC é constitucional, não ferindo o direito à propriedade, porque tal instituto visa o cumprimento da função social prevista no texto constitucional. O enunciado nº 82 do Conselho de Justiça Federal corrobora nesse sentido [04].


3.PECULIARIDADES DO INSTITUTO DA DESAPROPRIAÇÃO JUDICIAL POSSE-TRABALHO

Quando se diz que a desapropriação é judicial é pelo fato de ser viabilizada pelo Poder Judiciário por meio de uma ação específica, a qual é demandada perante um juiz competente para analisar o feito.

Desta forma, diz-se judicial porque para concretizar o decreto expropriatório há necessidade de uma sentença judicial, e não de um ato administrativo feito pelo Poder Executivo como se dá na declaração de utilidade pública para fins de desapropriação.

O parágrafo 4º do art. 1228 do Código Civil elenca como se dará a perda da propriedade pelo legítimo dono. Para que se dê, então, a aquisição da propriedade pelo possuidor, este deverá atender aos requisitos previstos no parágrafo 4º. Assim prescreve o referido instituto:

"Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha.

§ 4º ". O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nela houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante".

Portanto, o possuidor deverá estar num imóvel de área extensa, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de cinco anos, e de um número considerável de pessoas e estas houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços de relevante interesse social e econômico, assim considerados pelo magistrado.

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O instituto prevê a indenização que será paga ao proprietário expropriado, nos termos do § 5º do art. 1228, in verbis:

§ 5º No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores." (grifo meu)

Constata-se, desse modo, que para ocorrer a desapropriação primeiro o proprietário deverá ser indenizado justamente e, depois de pago o preço, valerá a sentença judicial para registro do imóvel junto ao cartório de registro.

Há de se destacar o lapso temporal de 5 anos sem o qual não poderá ocorrer o benefício. Soma-se a isso a boa – fé do possuidor, ou seja, que este não tenha se apossado do bem de modo violento, fraudulento ou temerário sabendo existir um vício que inquina a sua pretensão. Por assim dizer, nas palavras de Washington de Barros [05]:

"De boa-fé será, portanto, a posse em que o possuidor se encontre na convicção inabalável de que a coisa realmente lhe pertence. A posse de má-fé é precisamente inversa.
A posse acha-se eivada de algum dos vícios já mencionados (vi, clam aut precario) e o possuidor tem ciência do vício obstativo da aquisição da posse".

Como exemplo, cito o exposto por FIÙZA (2009:855) em que a boa-fé se explicita com a ciência inequívoca do possuidor sobre a legitimidade do bem o qual se pleiteia a propriedade, nos seguintes termos:

"Um espertalhão, A, vende vasta área de terreno a vários indivíduos, na periferia pobre de uma cidade. Os compradores, agindo de boa-fé, tomam posse dos respectivos lotes e neles constroem. Cinco anos depois, são acionados pelo verdadeiro dono, para restituir o imóvel. Como defesa, poderão invocar o art. 1228, § 4º do Código Civil, tornando-se donos da área (...)".

As obras e serviços realizados pelos possuidores deverão ser analisados pelo juiz, já que o legislador deixou a critério do magistrado a análise subjetiva da questão. Essas obras e serviços deverão resultar em benefícios para aquela coletividade, atingindo um fim específico que é o bem estar e a dignidade das pessoas possuidoras do imóvel.

O TJMG, em Apelação Cível julgada em 2009, declinou a seguinte conclusão:

O instituto previsto no artigo 1.228, § 4º do CC vem sendo chamado pela doutrina como "desapropriação judicial". Nos dizeres de Francisco Eduardo Loureiro "Cuida-se de alienação compulsória do proprietário sem posse ao possuidor sem propriedade, que preencha determinados requisitos previstos pelo legislador" (Código Civil Comentado/ Cezar Peluso, Barueri, SP: Manole, 2007).

Os requisitos, por sua vez, são: extensa área, posse ininterrupta e de boa fé por mais de 5 anos por considerável número de pessoas, e realização, em conjunto ou separadamente, de obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante.

No caso em exame, tenho, na esteira da r. decisão de 1º grau, que os requisitos não restaram comprovados nos autos. (TJMG/Apelação Cível nº 1.0702.04.171190-5/002 - Relator Desembargadora Selma Marques – 15/04/2009)

Por fim, deverá ser indenizado o proprietário com uma "justa indenização" a ser fixada pelo juiz.. Somente depois de indenizado o proprietário é que o juiz emitirá a sentença deferindo a propriedade aos possuidores, valendo tal peça judicial como título para o registro do imóvel junto ao cartório específico.


4.CONCLUSÃO

Tecidas algumas considerações acerca do instituto da desapropriação pro-labore, chega-se a conclusão sobre a sua constitucionalidade sob o prisma do atual Estado Democrático de Direito, em que a propriedade é protegida, porém, não de modo absoluto, a fim de cumpra sua finalidade social.

A desapropriação judicial referida foi trazida pelo novo Código Civil, abrindo-se discussões acaloradas e debates intermináveis, já que o novel instituto num primeiro momento parece soar estranho no mundo jurídico.

Porém, como já demonstrado, sua constitucionalidade é patente e indubitável, pelo fato de não ofender o direito consagrado à propriedade. Portanto, cumpridos os requisitos formais previstos no art. 1228, § 4º e 5º do CC, os possuidores receberão o titulo de propriedade conferido em sentença judicial.

Por derradeiro, cumpre destacar que o instituto referido é compatível com os preceitos constitucionais previstos no art. 5º, XXIII e art. 182, § 2º, 186 da CF.


BIBLIOGRAFIA

Apelação Cível Tribunal de Justiça de Minas Gerais nº 1.0702.04.171190-5/002 - Relator Desembargadora Selma Marques – 15/04/2009. Disponível em www.tjmg.jus.gov.br/jurisprudencia. Acesso em 07/11/2009.

Código Civil Brasileiro. Vade Mecum universitário RT São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2009.

Constituição Federal. Vade Mecum universitário RT São Paulo. Editora Revista dos Tribunais, 2009.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.

FIÚZA, César. Direito Civil. Curso Completo. Editora Del Rey, 13ª edição revista, atualizada e ampliada. Belo Horizonte, 2009.

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de Direito Civil. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 1986.


Notas

  1. DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. São Paulo: Editora Saraiva, 2002.
  2. Art. 182, § 2º. A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.
  3. Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.
  4. "É constitucional a modalidade aquisitiva de propriedade imóvel prevista nos §§ 4º e 5º do art.. 1.228 do novo Código Civil".
  5. Washington de Barros Monteiro. Curso de direito civil. 25ª ed., São Paulo: Saraiva, 1986, v. III, p. 30
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Sobre o autor
Pedro Paulo Pereira Alves

Pedro Paulo Pereira Alves, 2º Ten da PMMG, Bacharel em Direito pela faculdade FEAD/BH

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ALVES, Pedro Paulo Pereira. O direito de propriedade e a desapropriação "pro labore" do art. 1228, §§ 4º e 5º, do Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2425, 20 fev. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14375. Acesso em: 18 abr. 2024.

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