Resumo: O vertente artigo tem como escopo analisar a estrutura fundamental da tipicidade culposa, ou seja, os elementos estruturantes do tipo penal culposo.
Sumário: 1. Crime Culposo. Noção Geral. 2. Tipicidade Culposa. Elementos. 2.1. Conduta Humana Inicial Voluntária. 2.2. Quebra da Diligência Objetiva Necessária. 2.3. Previsibilidade Objetiva do Resultado. 2.4. Resultado Não Querido. 2.5. Nexo de Causalidade. 2.6. Adequação Típica.
Palavras-Chaves: Dogmática Penal; Teoria do Delito; Tipicidade; Crime Culposo.
1. Crime Culposo. Noção Geral.
O crime culposo vem disposto no artigo 18, inciso II, do Código Penal, como sendo aquele em que "o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia".
Em sede doutrinária, fala-se em crime culposo quando o agente, por não observar o cuidado necessário, empreende conduta responsável por causar um resultado não querido nem sequer previsto, mas previsível ou excepcionalmente previsto, que poderia ter sido evitado se houvesse a diligência exigida.
Roque de Brito Alves apontava o crime culposo como sendo aquele em que o sujeito "não emprega a cautela, a atenção ou a diligência comum, ordinária – ou mesmo especial – a que estava obrigado, e perante as circunstâncias não vem a prever o resultado que podia prever, ou prevendo-o vem a supor levianamente que o resultado não se concretizaria ou poderia evitá-lo". [01]
De modo semelhante, Paulo José da Costa Júnior, refere-se à culpa como "a conduta humana voluntária, consistente na ação ou omissão, praticada sem a devida atenção ou cuidado, da qual deflui um resultado previsível, representado ou não pelo agente, mas que devia e podia ser evitado". [02]
2. Tipicidade Culposa. Elementos.
Analisaremos, a seguir, as estruturas fundamentais que compõem a chamada "tipicidade penal culposa", isto é, os elementos básicos do tipo penal culposo.
Poderíamos sintetizar a tipicidade dos crimes culposos da seguinte forma:
a) conduta humana inicial voluntária;
b) quebra da diligência objetiva necessária;
c) previsibilidade objetiva do resultado;
d) resultado não querido;
e) nexo de causalidade entre a conduta e o resultado;
f) adequação típica.
2.1. Conduta Humana Inicial Voluntária.
Também no delito culposo, à semelhança do doloso, há conduta humana voluntária, livre. A diferença, no entanto, reside no fato de que no crime culposo a voluntariedade e o querer limitam-se à conduta humana inicial, não alcançando a totalidade da ação ou omissão efetivamente realizada tampouco o conseqüente resultado antijurídico. Ou seja, há vontade inicial de realizar determinada conduta (perigosa, na maioria das vezes, mas não criminosa em regra [03]), que, por inobservância da diligência necessária, acaba destoando da ação ou omissão, no todo, efetivamente empreendida e do seu correlato resultado ilícito. O que há, na verdade, é "uma contradição essencial entre o querido e o realizado (ao final) pelo autor". [04]
Ex.: Antônio, desejando chegar logo ao estádio de futebol para assistir ao jogo de seu time de coração, resolve imprimir velocidade acima da permitida. No meio do trajeto, ao ultrapassar outro veículo de modo inadequado, acaba matando um pedestre.
Observe que, nesse exemplo, a conduta humana inicial voluntária e desejada é a de imprimir velocidade acima da permitida, e não a de, com isso, atropelar um pedestre, causando-lhe a morte.
Também outra distinção a ser feita, neste ponto, é a relativa aos fins visados pela conduta humana voluntária. Enquanto que no crime doloso a vontade é dirigida a fim ilícito, no delito culposo a conduta humana inicial voluntária persegue fim, em regra, [05] lícito. Ilustrando com o exemplo acima citado, nota-se que o fim visado pelo agente não é ilícito; pelo contrário, é totalmente lícito (o objetivo era chegar rápido ao estádio de futebol).
Exatamente por isso que "os tipos culposos ocupam-se não com o fim da conduta, mas com as conseqüências anti-sociais que a conduta vai produzir; no crime culposo o que importa não é o fim do agente (que é normalmente lícito), mas o modo e a forma imprópria com que atua". [06]
Bem observa, ainda, o professor Monteiro de Barros que "costuma-se negar a existência da vontade no delito culposo omissivo, sobretudo, na hipótese de omissão inconsciente (p.ex.: a criada que esquece o veneno do rato no local em que se encontra a criança). Em tal hipótese, malgrado a inconsciência da omissão, revela-se presente a vontade no ato de ter deixado o veneno no quarto da criança". [07]
2.2. Quebra da Diligência Objetiva Necessária.
Somente pode se cogitar da ocorrência de um delito culposo caso exista quebra (ou rompimento ou inobservância) da diligência (ou atenção ou cuidado) objetivamente exigida de todas as pessoas que se propõem ao exercício de certa e determinada atividade social. Trata-se de agir não observador da atenção necessariamente exigida para a realização de certa prática social. Em suma, é uma falta de diligência objetiva necessária indesculpável.
2.3. Previsibilidade Objetiva do Resultado.
A previsibilidade é a possibilidade de previsão de um evento, isto é, de antever o resultado. Fala-se na existência de dois tipos de previsibilidade: objetiva e subjetiva. A primeira – objetiva – será analisada quanto à tipicidade do crime culposo, compondo a segunda – subjetiva – o processo de verificação da culpabilidade.
O que deve ficar claro é que a previsibilidade subjetiva privilegia o elemento psicológico como fundamento maior do crime culposo enquanto que a previsibilidade objetiva despreza a relação anímica entre o agente e o fato, enfocando a causalidade necessária entre a conduta e o evento, bem como a natureza e a importância do bem jurídico lesado.
Em termos mais simples, pode-se dizer que a previsibilidade subjetiva implica na possibilidade de o agente conforme as suas condições particulares, em dado contexto fático, prever o resultado, ao passo que a previsibilidade objetiva representa a possibilidade de qualquer pessoa, dotada de razoável prudência e equilíbrio (o famoso "homem médio"), antever o resultado.
Frise-se que o tipo culposo é formado pela previsibilidade objetiva, e não pela previsibilidade subjetiva. Desse modo, para a configuração do crime culposo o que importa é se havia condições de se prever o resultado, pouco importando se este era ou não previsível para o agente, em particular. A questão da previsibilidade subjetiva será objeto da culpabilidade, normalmente no item exigibilidade de conduta diversa, embora possa ser analisada, ainda, no âmbito da imputabilidade.
A ausência de previsibilidade objetiva (isto é, do dever genérico de cuidado) resulta na atipicidade da conduta. Já a ausência de previsibilidade meramente subjetiva (isto é, do dever particular de cuidado) ocasiona a exclusão da culpabilidade, muito embora se mantenha a tipicidade culposa.
Veja o seguinte exemplo: Antônio trafegava em velocidade permitida (ou, ainda, acima desta – o que caracterizaria eventual conduta imprudente) com seu veículo, quando, ao fazer a curva, se depara com uma pessoa deitada no meio da pista. O motorista tenta desviar, mas não consegue e acaba atropelando e matando o "louco" que se colocou em plena madrugada, em local totalmente escuro e sem sinalização de luz, no meio da rodovia e, pior, após curva que impossibilitava qualquer visão do restante da pista pelo motorista. É evidente que, neste caso, pouco importa se a conduta do motorista era prudente ou imprudente, pois, de qualquer modo, afastada resta a tipicidade culposa, diante de completa ausência de previsibilidade objetiva do resultado.
2.4. Resultado Não Querido.
Nos crimes culposos o resultado naturalístico integra a noção do tipo penal, de modo que a ausência de lesão a bem jurídico exclui a tipicidade. A simples conduta, sem o conseqüente resultado lesivo, é incapaz de configurar o crime culposo. Pode existir conduta imprudente, negligente ou imperita com flagrante quebra do dever objetivo de cuidado, revestida de completa previsibilidade objetiva do resultado, mas se este último (evento lesivo) não ocorrer não haverá crime culposo.
A grande maioria da doutrina é enfática ao afirmar que inexiste crime culposo de mera conduta. Somente a minoria, dirigida pelas lições de Magalhães Noronha, em famosa obra intitulada "Do Crime Culposo", tem ousado sustentar o contrário.
No entanto, seguindo a posição doutrinária amplamente majoritária, é de se afirmar que, além de existir o resultado, é necessário, ademais, que este não tenha sido querido pelo agente. Se o agente quer o resultado ou assume o risco de produzi-lo, haverá crime doloso, e não culposo (exceção feita ao especialíssimo caso da culpa imprópria).
2.5. Nexo de Causalidade.
Os crimes culposos, enquanto crimes materiais, conforme lição da maioria da doutrina, dependem da ocorrência do resultado naturalístico para a sua consumação. Imprescindível para a verificação do crime culposo, portanto, a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta humana inicial voluntária e o conseqüente resultado não querido, produzido graças à inobservância do dever de cuidado.
Destaque-se que a moderna dogmática penal (vide Cezar Roberto Bitencourt e Luiz Régis Prado [08]) tem substituído a antiga expressão "nexo de causalidade" pelo atual título de "conexão interna entre o desvalor da ação (ou seja, inobservância do cuidado objetivamente devido) e desvalor do resultado (ou seja, lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico)", indicativo da necessidade de que "o resultado decorra exatamente da inobservância do cuidado devido, ou, em outros termos, que esta seja a causa daquele". [09]
2.6. Adequação Típica.
É lição corrente a de que os crimes culposos encerram tipos penais abertos, uma vez que reclamam juízo de valor sobre a ocorrência ou não de rompimento com o dever objetivo de cuidado, de previsibilidade objetiva do resultado, etc. Fala-se em tipo penal aberto porque não há uma descrição completa e pormenorizada no tipo legal do que seja o crime culposo, limitando-se o legislador a indicar que certa figura penal incriminadora admite a modalidade culposa. Não há, por exemplo, descrição precisa do crime de lesões corporais culposas. O legislador apenas preceitua, no § 6º do art. 129 do CP, que "se a lesão é culposa" comina-se pena de detenção de 2 (dois) meses a 1 (um) ano.
Referências Bibliográficas.
ALVES, Roque de Brito. Programa de Direito Penal. Recife: FASA, 1986.
BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal: parte geral. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1999.
BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000.
COSTA JÙNIOR, Paulo José da. Código Penal Anotado. São Paulo: Perfil, 2005.
MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. v. 1. 15 ed. São Paulo: Atlas, 1999.
PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v. 1. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
Notas
- ALVES, Roque de Brito. Programa de Direito Penal. Recife: FASA, 1986, p. 117.
- COSTA JÙNIOR, Paulo José da. Código Penal Anotado. São Paulo: Perfil, 2005, p. 89.
- Embora tenhamos dito que a conduta humana inicial voluntária no delito culposo não é criminosa, é preciso dizer que, por vezes, esta pode assumir natureza contravencional (ex.: art. 31 da LCP – omissão de cautela na guarda ou condução de animais; art. 34 da LCP – direção perigosa de veículo na via pública; etc) ou até mesmo figurar como crime de perigo abstrato (ex.: art. 132 do CP – perigo para a vida ou saúde de outrem), sempre lembrando que este último tem tido a sua constitucionalidade questionada em face dos modernos princípios penais, como o da ofensividade. Deixando de lado a discussão sobre a constitucionalidade dos crimes de perigo abstrato, o que ocorre nessas situações, portanto, é que, tendo qualquer resultado lesivo e preenchidos os demais requisitos da figura típica culposa, haverá crime culposo. Do contrário, pode o agente responder a título de contravenção penal ou crime de perigo abstrato.
- PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro. v. 1. 3 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 303.
- Dissemos que o fim visado pela conduta humana no crime culposo é, em regra, lícito, pois, excepcionalmente, em se tratando de culpa imprópria, é querido, desejado resultado ilícito pelo agente.
- MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal. v. 1. 15 ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 145.
- BARROS, Flávio Augusto Monteiro de. Direito Penal: parte geral. v. 1. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 168.
- PRADO, Luiz Regis. op. cit., p. 304.
- BITENCOURT, Cezar Roberto; CONDE, Francisco Muñoz. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 205.