1.7 Os Estados Unidos e o surgimento do Proibicionismo
Durante o século XIX, observou-se uma significativa evolução da Química como ciência e o conseqüente isolamento do princípio ativo de diversas plantas, entre eles a morfina, um dos alcalóides do ópio, no ano de 1806, a codeína em 1832, a cocaína em 1860 e a heroína em 1883. [27]
Valendo-se de intensa divulgação publicitária, tais drogas surgem como solução para problemas de saúde, passando a ser indicadas como estimulantes e analgésicos capazes de aplacar a dor ou a tosse, sendo vendidas livremente em farmácias e drogarias da América, Ásia e Europa. [28]
Apesar de não constituir-se, nesse período, como problema de ordem jurídica ou política, inicia-se toda uma movimentação contrária às drogas, em especial por parte da sociedade norte-americana que, baseada em princípios morais, atribui a tais substâncias, capazes de alterar comportamentos, a causa da degradação social no mundo pós-revolução industrial.
Um dos fatores primordiais que conduziram a essa ainda impúbere mudança de perspectiva foi a associação do consumo de drogas à violência e a classes sociais menos abastadas. [29]
Discorrendo sobre tal aspecto, o qual se encontra na origem da ideologia do proibicionismo, Antônio Escohotado escreve que:
"As diferentes drogas associam-se agora a grupos definidos por classe social, religião ou raça; as primeiras vozes de alarme sobre o ópio coincidem com a corrupção infantil atribuída aos chineses, o anátema da cocaína com ultrajes sexuais dos negros, a condenação da marijuana com a irrupção de mexicanos, e o propósito de abolir o álcool com imoralidades de judeus e irlandeses. Todos estes grupos representam o ‘infiel’ – por pagão, por papista ou por verdugo de Cristo -, e todos se caracterizam por uma ‘inferioridade’, tanto moral como econômica. Outras drogas psicoativas supertóxicas – como os barbitúricos – não chegam a vincular-se a marginais e imigrantes, e carecerão de estigma para o reformador moral". [30]
Com a intensificação dos brados proibicionistas, surge no seio da sociedade civil norte-americana um grande número de sociedades e ligas que lutam pela moralização dos costumes e pela abolição do consumo de álcool e demais drogas, entre elas o Partido Proibicionista (Prohibition Party), criado em 1869, a Sociedade nova-iorquina para supressão do vício, em 1868, e a Liga Anti-Saloon (Anti Saloon League), fundada em 1895. [31]
A cooptação de outros movimentos sociais e profissionais para a causa moralista, entre eles as associações médicas e farmacêuticas, que ainda buscavam a obtenção do monopólio sobre a prescrição de drogas, fez com que a ideologia proibicionista alcançasse os meios políticos.
Entretanto, antes mesmo de aprovar leis internas de combate às drogas, o governo dos Estados Unidos inicia sua cruzada contra os entorpecentes em reuniões internacionais, tendo sido a primeira delas realizada com o intuito de discutir a questão do ópio na China.
1.8 Os EUA e a Conferência de Xangai (1909)
No final do século XIX, observou-se um aumento considerável no consumo de ópio nos EUA, provocado em grande parte pela intensa imigração de chineses para o território americano.
A difícil fase nas relações comerciais entre EUA e China, vivida durante o governo do presidente Franklin Roosevelt, aliada à pressão exercida pelos movimentos moralistas, deram azo à convocação, pelo governo norte-americano, da Conferência de Xangai, ocorrida em 1909, a qual contou com a participação de 13 (treze) países.
Apesar de não ter produzido os resultados práticos almejados pela delegação norte-americana, como a elaboração de determinações impositivas acerca das drogas, a Conferência de Xangai representou o marco inicial da preocupação internacional sobre entorpecentes, estabelecendo as bases para a realização de outras Conferências. [32]
1.9 A legalização da ideologia do proibicionismo nos EUA
A Lei Harrison (Harrison Act), editada em 1914, foi a primeira lei norte-americana visando o controle sobre a produção, fornecimento e posse de ópio, morfina e cocaína. Tal lei pretendia restringir o uso das respectivas drogas aos casos em que houvesse determinação médica, criando ainda o "Narcotics Control Department", organismo responsável pela fiscalização de tais substâncias. [33]
O ano de 1919 consagrou a vitória da ideologia do proibicionismo, com a aprovação da lei federal que ficara conhecida como Lei Seca (Volstead Act). A 18ª Emenda à Constituição norte-americana proibiu a produção, o transporte, a importação e a exportação de bebidas alcoólicas em todo o território do país.
Entretanto, em doze anos de vigência, a Lei Seca desencadeara a expansão sem precedentes da corrupção em todos os níveis institucionais norte-americanos, e a formação de diversas organizações criminosas que, com a revogação de tal lei, passariam a explorar outras substâncias proibidas, como a cocaína e a morfina.
1.10 Conferências Internacionais sobre drogas anteriores à criação da ONU
A ideologia do proibicionismo conseguira se desenvolver e transpor fronteiras por meio das conferências internacionais que se seguiram à Convenção de Xangai de 1909.
Em dezembro de 1911, também patrocinada pelos EUA, ocorreu a Conferência Internacional do Ópio, em Haia, na Holanda. Assinado em janeiro de 1912, o documento proveniente da conferência apresentava diretrizes no sentido de que os Estados signatários deveriam proibir em seus territórios o uso de ópio e cocaína que não tivesse sido estabelecido por determinação médica. [34]
Prejudicada pelo início dos combates da Primeira Guerra Mundial, a convenção internacional em destaque entrou em vigor em 1921, tendo sido o seu documento incorporado como anexo ao Tratado de Versalhes.
Após a primeira grande guerra foi fundada a Liga das Nações, que se constituiu como a primeira organização internacional nos moldes atualmente conhecidos, com fins políticos, poder regulamentar, personalidade internacional e modos de decisão pela maioria, e cujas bases e objetivos foram lançados pelo presidente dos Estados Unidos na época, Woodrow Wilson. [35]
A convenção constitutiva da Liga das Nações, em seu artigo 23, "c", "reconheceu a atribuição de elaboração de acordos sobre o tráfico de ópio e outras drogas nocivas" [36], tendo sido criada em 1921 a "Comissão Consultiva do ópio e outras drogas nocivas".
Sob a égide da organização intergovernamental em comento, a qual apresentava como membros permanentes de seu Conselho Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra e Japão, [37] foram realizadas outras conferências, entre elas a de 1924, que resultou na assinatura do acordo de Genebra, em 19 de fevereiro de 1925, o qual efetivou as disposições da Conferência de Haia, de 1912; a conferência de Genebra ocorrida também em 1924, no mês de novembro, que ampliou o conceito de entorpecente e estabeleceu as bases do controle do tráfico internacional; e as Conferências de 1931 e 1936, também celebradas em Genebra, sede social da Sociedade das Nações, em que se estabeleceu a obrigação de os Estados signatários proibirem a disseminação do vício em seus territórios. [38]
1.11 Convenções internacionais posteriores à criação da ONU
Após a Segunda Guerra Mundial, mais especificamente em 1946, a Liga das Nações fora sucedida pela Organização das Nações Unidas, sob a influência da qual foram assinados os protocolos de 1946, 1948 e 1953, que além de atualizar acordos anteriores, restringiram a produção de ópio exclusivamente para uso médico.
1.11.1 Convenção Única de Nova York sobre Entorpecentes (1961)
A Convenção Única sobre Entorpecentes, assinada em 1961 na sede da ONU, representou o mais completo documento internacional de pretensões proibicionistas.
Fixando a competência da Organização das Nações Unidas em matéria de fiscalização internacional de entorpecentes, o texto da Convenção elenca e classifica algumas substâncias, distribuindo-as em quatro listas, amplia as medidas de controle, burocratiza a estrutura fiscalizadora internacional e estabelece o procedimento necessário para a inclusão de novos psicotrópicos a serem controlados. [39]
Introduzindo tais objetivos a serem alcançados, o preâmbulo do documento esclarece as intenções dos Estados-partes e preconiza a cooperação internacional no combate ao uso de entorpecentes desviado de sua destinação original:
Preâmbulo – As Partes, preocupadas com a saúde física e moral da humanidade, reconhecendo que o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para o alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais fins.
Reconhecendo que a toxicomania é um grave mal para o indivíduo e constitui um perigo social e econômico para a humanidade, conscientes de seu dever de prevenir e combater esse mal.
Considerando que as medidas contra o uso indébito de entorpecentes, para serem eficazes, exigem uma ação conjunta e universal, julgando que essa atuação universal exige uma cooperação internacional, orientada por princípios idênticos e objetivos comuns, reconhecendo a competência das Nações Unidas em matéria de controle de entorpecentes e desejosas de que os órgãos internacionais a ele afetos estejam enquadrados nessa Organização, desejando concluir uma convenção internacional que tenha aceitação geral e venha substituir os tratados existentes sobre entorpecentes, limitando-se nela o uso dessas substâncias a fins médicos e científicos e estabelecendo uma cooperação e uma fiscalização internacionais permanentes para a consecução de tais finalidades e objetivos, concordam, pela presente, no seguinte. [40]
Observa-se pela análise do texto inicial da convenção em destaque a busca pela transnacionalização do controle das drogas, a qual se consolidará com a aprovação da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de Viena (1971), e que se "insere no projeto de transnacionalização do controle social, cuja finalidade é dirimir as fronteiras nacionais para o combate à criminalidade" [41].
Ao entrar em vigor, a Convenção Única sobre Entorpecentes anulou as convenções e acordos anteriores, salvo a Convenção de Genebra de 1936, que restou parcialmente revogada.
Com tal medida, buscou-se englobar em um único instrumento internacional todas as determinações de controle da produção, fabricação, exportação, importação, distribuição, comércio, uso e posse de entorpecentes.
As convenções e acordos anteriores a 1961 que restaram substituídos foram arrolados pelo artigo 44 da Convenção Única sobre Entorpecentes. [42]
A persecução dos objetivos traçados pela Convenção de 1961 ficou a cargo da Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social e do Órgão Internacional de Fiscalização de Entorpecentes.
De acordo com o artigo 8º do documento em análise, coube à Comissão de Entorpecentes velar pelo fiel atendimento aos dispositivos da Convenção, fazendo recomendações para a execução de suas finalidades e pedindo a atenção dos Estados não signatários para decisões ou determinações que fossem adotadas.
Já ao Órgão Internacional de Fiscalização coube zelar pela aplicação dos sistemas de estimativas e estatísticas, impor limitações à produção internacional de ópio, fiscalizar o cultivo da dormideira, das folhas de coca e da planta da cannabis, estabelecer regime de licença para a fabricação de entorpecentes, derivados ou não das plantas citadas, e fiscalizar o comércio internacional.
Os Estados-membros forneceriam ao Órgão estatísticas relativas à produção ou fabricação de entorpecentes, além de dados relativos a consumo e apreensões efetuadas. [43]
Com base nessas informações, o Órgão Internacional cotejaria os limites de fabricação e importação com a quantidade de entorpecentes consumida em cada território, notificando os Estados-membros que extrapolassem as estimativas.
A efetividade da fiscalização estava diretamente relacionada à obediência ao regime de licenciamento imposto à produção, comércio e distribuição de substâncias arroladas pela Convenção, além do cumprimento das obrigações estabelecidas aos Estados-membros e a criação pelos mesmos de órgãos nacionais que controlassem a fabricação de entorpecentes. [44]
Na tentativa de determinar quais substâncias encontravam-se sob a tutela de seus dispositivos, o documento internacional em análise apresentava, em anexo, quatro listas: as listas I e II relacionavam as substâncias tidas como entorpecentes, fossem eles naturais ou sintéticos; a lista III apresentava um rol de preparados de entorpecentes e a lista IV abrangia entorpecentes perigosos e suscetíveis de uso indevido, sujeitando-se, portanto, a uma fiscalização especial.
Vale ressaltar que, diante da perspectiva de avanços nos campos da Química e da Medicina, a própria convenção previu a possibilidade de surgimento de novas substâncias capazes de produzir efeitos nocivos, criando, portanto, um procedimento específico para a inserção das mesmas nas respectivas listas.
O artigo 3º da Conferência de 1961 determinava que, de posse de informações que ensejassem alterações em uma das listas de substâncias, qualquer Estado-membro ou a própria Organização Mundial de Saúde poderia notificar o Secretário-Geral das Nações Unidas, o qual repassaria a notificação aos demais países e à Comissão de Entorpecentes do Conselho Econômico e Social.
Se a nova substância a ser analisada se enquadrasse nas listas I ou II, tratando-se portanto de entorpecente, as partes analisavam a possibilidade de aplicação provisória das medidas de fiscalização estabelecidas pela própria Convenção.
De acordo com a recomendação da OMS sobre os efeitos nocivos da substância, a Comissão decidiria pela pertinência ou não da inclusão da mesma em uma das listas.
Tratando a notificação realizada por alguma das partes de substância já inserida em lista, a Comissão, analisando o parecer da OMS, decidiria pela transferência da substância de uma para outra lista ou mesmo pela sua exclusão.
Vale lembrar que todas as decisões tomadas pela Comissão de Entorpecentes, além de se sujeitarem a revisão pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, deveriam ser comunicadas pelo Secretário-Geral a todos os Estados-membros, aos Estados não-membros que faziam parte da Convenção, à OMS e ao Órgão Internacional de Controle de Entorpecentes.
No que concerne às ações legais contra o tráfico ilícito e a posse de entorpecentes, a Convenção Única de 1961 buscou estabelecer uma cooperação mútua entre as partes e as organizações internacionais, visando um combate efetivo e generalizado. [45]
Sob o ponto de vista teórico, começa a ser gerado o modelo médico-sanitário-jurídico de controle dos sujeitos envolvidos com drogas, que se fundamentava na distinção entre consumidor e traficante, por meio da utilização, nas próprias legislações, dos binômios dependência-tratamento e tráfico-repressão. [46]
Segundo Salo de Carvalho:
sobre os culpados (traficantes) recairia o discurso jurídico do qual se extrai o estereótipo criminoso do corruptor da moral e da saúde pública. Sobre o consumidor incidiria o discurso médico consolidado pela perspectiva sanitarista em voga na década de cinqüenta, que difunde o estereótipo da dependência. [47]
O artigo 38 da Convenção de 1961 é um claro exemplo da adoção dessa teoria da diferenciação:
Tratamento de Toxicômanos
1. As partes darão especial atenção à concessão de facilidades para o tratamento médico, o cuidado e a reabilitação dos toxicômanos.
2. Se a toxicomania construir um problema grave para uma das Partes, e se seus recursos econômicos o permitirem, é conveniente que essa Parte conceda facilidades adequadas para o tratamento eficaz dos toxicômanos. [48]
O documento também faz indicações de medidas internas a serem adotadas pelos países-membros, ressaltando, de forma recorrente, o respeito aos dispositivos constitucionais, penais e processuais penais de cada legislação. [49]
Cabe ressaltar ainda que em 25 de março de 1972, em Conferência de plenipotenciários convocada pelo Conselho Econômico e Social da Organização das Nações Unidas, os países membros firmaram um protocolo de emendas à Convenção Única de Entorpecentes de 1961, documento esse aprovado no Brasil por meio do Decreto Legislativo n.º 88, de 1972.
O texto do protocolo em questão alterou disposições relativas à composição e atribuição do Órgão Internacional, à política de estimativas e fornecimento de dados e estatísticas a serem fornecidas pelos Estados-membros, assim como algumas medidas relativas à fiscalização e controle de substâncias previstas nas listas apresentadas pela própria Convenção.
1.11.2 Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de Viena (1971)
Analisando as quatro listas de substâncias apresentadas pela Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961 observa-se a não inclusão de produtos sintéticos como as anfetaminas e os barbitúricos.
Visando abranger as novas substâncias e atualizar os mecanismos de fiscalização e controle, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas solicitou a convocação de uma nova convenção, tendo sido realizada em 21 de fevereiro de 1971, na cidade de Viena, a Conferência sobre Substâncias Psicotrópicas.
Analisando o texto desta convenção, observa-se primeiramente uma mudança no conceito utilizado para denominar as substâncias sujeitas a controle.
O termo "entorpecente", recorrente no texto da Convenção Única de 1961, foi substituído pela expressão "substância psicotrópica", com significado mais abrangente, designando qualquer substância de origem natural ou sintética ou qualquer produto presente em uma das quatro listas da nova conferência.
Não realizando alterações relativas aos órgãos internacionais, a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971 aperfeiçoou todo o sistema de controle e fiscalização da produção, fabricação, exportação, importação, distribuição, comércio, uso e posse de substâncias psicotrópicas, além de estabelecer listas de substâncias usadas com maior freqüência.
Essa evolução dos instrumentos internacionais de repressão às drogas sofreu influência direta da política adotada pelo governo dos Estados Unidos a partir do final da década de sessenta, mais especificamente durante o governo de Richard Nixon, política essa caracterizada pelo recrudescimento da repressão ao comércio e ao consumo de substâncias entorpecentes e que ficara conhecida como "Guerra às Drogas" (War on Drugs).
Acerca do governo do presidente Nixon e sua política contrária as drogas, Salo de Carvalho escreveu que:
Nixon, com o importante e estratégico trabalho de George Bush, que ocupava na época o cargo de representante dos EUA nos assuntos relativos à política de drogas na Organização das Nações Unidas (ONU), conduz a opinião pública a eleger as drogas, principalmente a heroína e a cocaína, como (novo) inimigo interno da nação. Todavia, com a popularização do consumo de heroína e a criação dos programas de metadona, forma indireta de controlar e legalizar o consumo, o inimigo interno teve de ser substituído, projetando-o ao exterior.
Rosa Del Olmo lembra que o processo de transferência, com a responsabilização dos países marginais pelo consumo interno de drogas nos EUA, acabou por produzir a dicotomização "mundo livre" versus "países inimigos". [50]
Na esteira da "Guerra às Drogas" surge o discurso jurídico-político de controle dos indivíduos envolvidos com substâncias psicotrópicas, atribuindo ao traficante o papel de inimigo interno da nação e justificando, dessa maneira, o incremento nas penas e o desrespeito a direitos e garantias fundamentais da pessoa humana. [51]
Com a efetivação da transnacionalização do controle de drogas ilícitas, alcançada através desta Convenção e incentivada, em especial, pelos Estados Unidos, os discursos de combate às drogas rompem fronteiras e passam a influenciar de forma significativa as políticas de segurança pública dos países da América Latina.
A Convenção de 1971 ampliou as medidas a serem adotadas pelos Estados-membros na luta contra o abuso de substâncias psicotrópicas e contra o tráfico ilícito, estabelecendo ainda as disposições penais pertinentes a cada conduta.
Acerca das medidas penais a serem adotadas em relação a usuários de drogas, o artigo 22 do documento em questão determina que:
Art. 22, I, "b". não obstante a alínea precedente, quando dependentes de substâncias psicotrópicas houverem cometido tais delitos, as partes poderão tomar providências para que, como uma alternativa à condenação ou pena ou como complemento à pena, tais dependentes sejam submetidos a medidas de tratamento, pós-tratamento, educação, reabilitação, e reintegração social, em conformidade com o parágrafo 1 do artigo 20. [52]
Percebe-se claramente a adoção do discurso médico-jurídico fundamentador da teoria da diferenciação, na medida em que prescreve o tratamento como solução a ser adota em casos de abuso de drogas.
O artigo 20 da convenção sintetiza essa preocupação:
1 - As partes comprometem-se a adoptar todas as medidas suscetíveis de prevenir o abuso das substâncias psicotrópicas e assegurar a rápida identificação, assim como o tratamento, a educação, a pós-cura, a readaptação e a reintegração social das pessoas envolvidas; elas comprometem-se a coordenar os seus esforços para a consecução desse fim.
2 – As partes comprometem-se a favorecer tanto quanto possível a formação do pessoal para assegurar o tratamento, a pós-cura, a readaptação e a reintegração social das pessoas que abusam de substâncias psicotrópicas.
3 – As partes comprometem-se a auxiliar as pessoas que necessitem de apoio no exercício da sua profissão, no sentido de adquirirem o conhecimento dos problemas resultantes do abuso das substâncias psicotrópicas e pela sua prevenção, e comprometem-se a desenvolver igualmente este conhecimento no seio do grande público, no caso de se considerar que o abuso destas substâncias alastre muito rapidamente. [53]
1.11.3 Convenção Contra o Tráfico Ilícito de Entorpecentes e de Substâncias Psicotrópicas (1988)
A convenção aprovada pelo Congresso Nacional através do Decreto Legislativo n.º 162, de 14 de junho de 1991, resume a política de repressão às drogas ilícitas adotada durante toda a década de oitenta por diversos tratados internacionais.
Surge, no entanto, uma nova preocupação: a associação do tráfico ilícito com organizações criminosas internacionais, exigindo a intensificação dos meios jurídicos de combate às drogas e uma maior cooperação internacional, já que a erradicação do tráfico ilícito de entorpecentes é tida como responsabilidade coletiva de todos os estados.
O discurso alarmista inicia-se no próprio preâmbulo:
As partes nesta Convenção, profundamente preocupadas com a magnitude e a crescente tendência da produção, da demanda e do tráfico ilícitos de entorpecentes e substâncias psicotrópicas, que representam uma grave ameaça à saúde e ao bem-estar dos seres humanos e que têm efeitos nefastos sobre as bases econômicas, culturais e políticas da sociedade;
Profundamente preocupadas também com a sustentada e crescente expansão do tráfico ilícito de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas nos diversos grupos sociais e, em particular, pela exploração de crianças em muitas partes do mundo, tanto na qualidade de consumidores como na condição de instrumentos utilizados na produção, na distribuição e no comércio ilícitos de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, o que constitui um perigo de gravidade incalculável;
Reconhecendo os vínculos que existem entre o tráfico ilícito e outras atividades criminosas organizadas, a ele relacionadas, que minam as economias lícitas e ameaçam a estabilidade, a segurança e a soberania dos Estados;
Reconhecendo também que o tráfico ilícito é uma atividade criminosa internacional, cuja supressão exige atenção urgente e a mais alta prioridade;
Conscientes de que o tráfico ilícito gera consideráveis rendimentos financeiros e grandes fortunas que permitem às organizações criminosas transnacionais invadir, contaminar e corromper as estruturas da administração pública, as atividades comerciais e financeiras lícitas e a sociedade em todos os seus níveis;
Interessadas em eliminar as causas profundas do problema do uso indevido de entorpecentes e de substâncias psicotrópicas, compreendendo a demanda ilícita de tais drogas e substâncias e os enormes ganhos do tráfico ilícito;
Reconhecendo que a erradicação do tráfico ilícito é responsabilidade coletiva de todos os Estados e que, para esse fim, é necessária uma ação coordenada no nível da cooperação internacional;
Reconhecendo também a importância de fortalecer e intensificar os meios jurídicos efetivos para a cooperação internacional em matéria penal para suprimir as atividades criminosas internacionais do tráfico ilícito. [54]
Pautando-se pelo discurso jurídico-político, a Convenção de 1988 propõe aos Estados-membros a adoção de sanções penais no combate à conduta de posse de drogas para consumo pessoal, atribuindo às medidas de tratamento, educação e acompanhamento caráter substitutivo ou complementar.
Tal assertiva pode ser extraída do teor do parágrafo segundo e da alínea "d" do artigo 3º do texto da convenção:
2 – Reservados os princípios constitucionais e os conceitos fundamentais de seu ordenamento jurídico, cada Parte adotará as medidas necessárias para caracterizar como delito penal, de acordo com seu direito interno, quando configurar a posse, à aquisição ou o cultivo intencionais de entorpecentes ou de substâncias psicotrópicas para consumo pessoal, contra o disposto na Convenção de 1961, na Convenção de 1961 em sua forma emendada, ou na Convenção de 1971.
d) As Partes poderão, seja a título substitutivo de condenação ou de sanção penal por um delito estabelecido no parágrafo 2 deste Artigo, seja como complemento dessa condenação ou dessa sanção penal, propor medidas de tratamento, educação, acompanhamento posterior, reabilitação ou reintegração social do delinqüente. [55]