Palavras-chave: responsabilidade civil, dano moral, arbitramento, tabelamento, natureza da indenização, quantificação do valor indenizatório, casuística e jurisprudência do STJ, inversão da função de desestímulo.
Para determinar o valor do montante indenizatório no dano moral, o legislador conferiu ampla liberdade ao magistrado, como não poderia deixar de ser, pois esse deve examinar os fatos em sua concretitude para arbitrar uma justa indenização [01].
A par do subjetivismo inerente a esse escaninho da responsabilidade civil, com escopo de evitar a discricionariedade, alguns critérios devem ser observados pelo prudente arbítrio do magistrado, como a extensão do prejuízo, as particularidades do caso sub judice, a condição econômica das partes, o grau de culpa do ofensor e a função de desestímulo da indenização.
A função de desestímulo da indenização por dano moral
A priori, é fundamental esclarecer que justa é a indenização capaz de compensar a vítima pelos danos experimentados e, na mesma medida, punir o ofensor pela prática ofensiva, a fim de desestimular novos atos lesivos. É dessa maneira que a moderna e atualizada jurisprudência[02], assim como a doutrina[03], concebem a indenização por dano extrapatrimonial. Não é por outra razão que o Projeto de Lei 276/2007 pretende acrescentar ao art. 944 do Código Civil um §2º, alterando a redação do atual parágrafo único para a seguinte:
"A reparação por dano moral deve constituir-se em compensação ao lesado e adequado desestímulo ao lesante".
O Código de Defesa do Consumidor, o mais moderno diploma legislativo de nosso ordenamento, em sintonia com os novos anseios sociais, já garante ao consumidor o direito de prevenir novas lesões, a teor de seu artigo 6º, inciso VI, o que só é possível quando considerada a natureza punitiva da indenização.
Nessa seara se agiganta o papel do magistrado, pois somente ele, analisando o conjunto fático-probatório sob a ótica do razoável e atento às condições subjetivas das partes, é capaz de arbitrar um montante indenizatório suficiente a compensar a vítima pelos prejuízos experimentados e constranger o ofensor a não reincidir na prática lesiva.
O tabelamento e sua inviabilidade
Em oposição à tese por nós advogada, existem aqueles que defendem a tarifação do quantum debeatur nas indenizações pelo agravo imaterial. Há em nosso ordenamento alguns dispositivos que tabelam o valor dessas reparações e não são poucos os projetos de lei que tramitam ou tramitaram a fim de estabelecer a tarifação, em substituição ao arbitramento vigente[04].
Esses atos legislativos e projetos de lei nos parecem eivados de manifesta inconstitucionalidade, visto que a Lei Maior adotou o sistema aberto, em oposição a toda e qualquer espécie de limitação. Se o constituinte não limitou o valor indenizatório, impossível o legislador infraconstitucional o fazer.
Os tribunais superiores não acolhem tese diversa. Acertadamente, o Supremo Tribunal Federal, nos autos da ADPF 130 julgou que a Lei de Imprensa não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988 [05], enquanto o Superior Tribunal de Justiça afastou a aplicação dos limites estabelecidos na mesma lei para a indenização por dano moral [06], tendo sumulado o mesmo entendimento[07].
O sistema de tabelamento mostra-se inviável, porque ainda que o legislador se empenhasse em tarifar todas as situações alcançadas por seu conhecimento e imaginação, o poder criativo da realidade social é sempre surpreendente ao olhar do jurista, capaz de criar situações antes inimagináveis.
Além disso, esse modo de quantificar a lesão extrapatrimonial é despersonalizado e desumanizado[08]. Suponhamos que "José" compra um veículo da empresa A e efetua o pagamento no ato da compra, mas, por um equívoco, a empresa A o inscreve no rol dos maus pagadores. Contudo, ao tomar ciência do engano, providencia de imediato a sua retirada, apesar disso, José ajuíza ação de indenização por dano moral.
De outro lado, "João" compra um veículo da empresa B e também realiza o pagamento no ato da compra, porém, a empresa B envia-lhe uma série de cobranças, sendo informada várias vezes que a quantia cobrada já foi quitada. Mesmo assim, a empresa B permanece com as cobranças durante 6 meses, quando então providencia a inscrição de João junto aos órgãos de restrição ao crédito e, depois de informada pelo consumidor do engano, não realiza a devida retirada. Em razão disso João demanda a empresa B para ter seus prejuízos compensados.
Em relação à condição das partes, anote-se, hipoteticamente, que José já possuía inscrições anteriores ao tempo da inserção indevida e a empresa A é uma pequena loja de venda de veículos. Por seu turno, João nunca experimentara tamanho constrangimento e a empresa B é uma das maiores do ramo automobilístico brasileiro e uma nas quais inscrições indevidas são mais freqüentes.
Pelo tabelamento as indenizações arbitradas nos dois exemplos seriam iguais, malferindo os princípios constitucionais norteadores de nosso ordenamento jurídico: a dignidade da pessoa humana e a isonomia.
Por fim, é certo que o magistrado, após equacionar os fatos, a condição das partes e peculiaridades do caso concreto, está muito mais próximo de estabelecer o quantum ideal do que o legislador que deve trabalhar com uma fórmula geral e abstrata.
O STJ e o desestímulo às avessas
Em teoria, o STJ adota a tese, já consagrada entre os juristas, da dupla função da indenização por dano extrapatriomonial [09]. Entretanto, a prática forense tem demonstrado uma enorme contradição nesse tribunal, visto que a maioria dos recursos especiais em ações indenizatórias são parcialmente providos, com a redução dos valores arbitrados em primeiro e segundo grau, sob o falho argumento de que se evita o enriquecimento sem causa da vítima.
As atuais decisões do Superior Tribunal de Justiça revelam um tabelamento implícito [10] e inconstitucional. Para inscrição indevida, por exemplo, o STJ tabelou indiretamente o preço de compensação de R$ 10.000,00 – STJ: 4ª Turma: REsp nº 590.342 – RJ, REsp nº 908.480 – PI, REsp 706.126 – SC; 3ª Turma, REsp nº 1.105.974 – BA. Com isso a corte pôs à venda o dano moral e inverteu a sua função coadjuvante que, agora, passa a ser estimular o ato ofensivo.
Com muita propriedade, CARLOS ROBERTO GONÇALVES ensina que a noção prévia do valor a ser indenizado permite ao agressor comparar o montante indenizatório com as possíveis vantagens decorrente da prática do ato ilícito, optando, em alguns casos, pela prática ofensiva[11].
Se o propósito inicial era aplicar uma indenização que respondesse aos anseios sociais, com a diminuição das práticas lesivas, o atual posicionamento da Corte Especial desvirtua o instituto. Em rigor, ocorre um desestímulo às avessas, a vítima é desestimulada a enfrentar todos os dissabores trazidos por uma contenda judicial para receber, ao final, um valor irrisório.
De outro vértice, o ofensor é estimulado a práticas lesivas, porque sabe que, não obstante o arbitramento de uma indenização justa pelo magistrado de primeiro grau, em última instância, o valor será revisto. Ademais, poucos serão os que perseguirão a reparação de seus direitos na esfera judicial com valores reparatórios que não compensam nem os aborrecimentos de uma contenda judicial, tampouco o prejuízo experimentado.
Sob outra ótica, indaga-se: o que representa R$ 10.000,00 para uma empresa com o faturamento trimestral de R$ 3,79 bilhões de reais como a VIVO S.A., uma das recordistas em demandas[12]? Ou ainda para empresas como a TAM LINHAS AÉREAS, de faturamento trimestral de R$ 2,3 bilhões[13]? Como pode o STJ acreditar que esses valores realmente desestimulam as práticas lesivas?
Prova inconteste da ineficácia dos atuais valores indenizatórios é a enorme reincidência dos atos ofensivos. Consequentemente há o abarrotamento do Judiciário com ações que poderiam ser evitadas se o "Tribunal da Cidadania" defendesse efetivamente os interesses do cidadão.
Sem a pretensão de esgotar o assunto, é bom questionar ainda a possibilidade de revisão do montante indenizatório pelo STJ em virtude de sua Súmula 7. Para essa corte, afastada da razão, só é possível a revisão do valor quando esse se mostrar desproporcional, de sorte que haveria uma questão de direito e não mais uma quaestio facti.
Entretanto, na autorizada voz de SÉRGIO CAVALIERI FILHO, no agravo moral, não se prova o dano, mas o fato ofensivo:
"Neste ponto, a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. Se a ofensa é grave e de repercussão, por si só justifica a concessão de uma satisfação de ordem pecuniária ao lesado. Em outras palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras de experiência comum."[14]
Como o STJ pode julgar a proporcionalidade do valor compensatório de olhos vendados, sem adentrar o plano fático e violar sua súmula 7? No dano moral, fato e direito estão intimamente ligados, não podem ser decantados como fantasia o tribunal em apreço.
Conclusão
É lamentável a atual posição do Superior Tribunal de Justiça que, com receio do enriquecimento ilícito, pôs à venda o dano moral, autorizou as ofensas extrapatriominais àqueles capazes de pagar o seu preço, rasgando o princípio da dignidade da pessoa humana. Já alertara IHERING de que pior do que cometer injustiças, é tolerá-las. Os ilustres ministros, no entanto, parecem esquecer essa tão antiga, porém atual lição.
Novamente, a história se repete no país tropical, instituições e institutos, jurídicos e políticos, são desvirtuados em favor de uma minoria, que, desta vez, é representada pelas grandes empresas, e a justiça, para o "Tribunal da Cidadania", não ganha contornos diversos da que lhe dera Transímaco.
Notas
- REALE, Miguel. O Dano Moral no Direito Brasileiro, in "Temas de Direito Positivo", São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992;
- Por todos: TJRS, Apelação Cível nº 70030112940; TJRS, Apelação Cível 70021392626;
- DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, volume 7: responsabilidade civil, cit., p. 108; GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – volume 3: responsabilidade civil, 2ª ed., São Paulo: Saraiva, 2004, p. 87; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, volume 2. 20. ed. São Paulo: Editora Forense, 2003. p. 315-316;
- O mais conhecido desses dispositivos é a Lei de Imprensa, quanto aos projetos legislativos, tem-se, por exemplo, o Projeto de Lei 7124/2002, apresentado pelo deputado Antônio Carlos Valadares.
- vide STJ-2ªTurmaREsp 1127546/SP, rel. min. Castro Meira, DJe 29.10.09;
- STJ-3ªTurma, Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 871254 / RJ, rel. min. Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJ-RS), DJe 01.07.09;
- Súmula 281-STJ: A indenização por dano moral não está sujeita à tarifação prevista na lei de Imprensa;
- DINIZ, Maria Helena, op. cit., p. 104;
- STJ, REsp 575023/RS, Segunda Turma, rel. min. Eliana Calmon, p. 27.04.2007, p. 217;
- RESEDÁ, Salomão. A função social do dano moral, Florianópolis, Conceito Editorial, 2009. LIMA, Erick C. L.. O valor do dano moral na casuística do STJ . Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 743, 17 jul. 2005. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/7014>. Acesso em: 26 fev. 2010
- Apud RESEDÁ, Salomão, op. cit., p. 194;
- Disponível em: http://computerworld.uol.com.br/telecom/2008/07/30/vivo-fatura-3-79-bilhoes-de-reais-no-segundo-trimestre-de-2008/. Acesso em 17.02.10;
- Disponível em: www.tamvirtual.net/forum/index.php?topic=833.0. Acesso em 17.02.10;
- CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de Responsabilidade Civil, 5ª ed., Malheiros, 2004, p. 100/101. O próprio STJ acolhe essa tese: 4ªTurma, REsp 1.105.974, rel. min. Sidnei Beneti, j. 23.04.2009.