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Tributação aos inativos no holocausto neoliberal

23/12/1998 às 00:00
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Na febre alucinógena de mais um suicida ajuste fiscal, visando atender interesses ditados pela agiotagem internacional, no "mundo globalizado", o Poder Executivo Federal busca extrair receita das bases econômicas miseráveis, esquecendo-se, propositalmente, das "grandes fortunas" concentradas e identificáveis no Brasil.

Nesse propósito, editou-se a Medida Provisória n° 1.723, de 29 de outubro de 1998 (D.O.U. de 30.10.98 - Seção 1, pág. 5), com a determinação de que "os servidores públicos federais, estaduais e municipais e os militares dos Estados e do Distrito Federal, inativos e pensionistas, deverão contribuir para o respectivo regime próprio de previdência social, mediante alíquotas não inferiores às aplicadas aos servidores ativos do respectivo ente estatal" (art. 3°).

A exemplo do que escrevemos contra o texto da malsinada Medida Provisória n° 1.415, de 09 de maio de 1996, e suas sucessivas reedições, rejeitadas, por inconstitucionais, pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Congresso Nacional, a inconstitucionalidade, aqui, ainda, se apresenta grosseira, a desafiar os brios da Justiça, sob todos os ângulos e vertentes da normatividade anã, que veicula tristezas e dissabores ao servidor público inativo e agora, também, a seus pensionistas, cujas remunerações têm natureza estritamente alimentar, garantindo-lhes, com dificuldade, o mínimo existencial, para suas sobrevivências.

A Medida Provisória 1.723/98, com requintes de crueldade, tira o pão-de-cada-dia da boca das pessoas carentes, enfermas e viúvas, sob o rótulo de pensionistas.

O bombardeio fiscal-tributário, que incide sobre a sofrida remuneração dos servidores públicos, ativos e inativos, nesse holocausto neoliberal, mediante a tributação do imposto de renda na fonte, CPMF e contribuições sociais, caracteriza um verdadeiro confisco dessa base remuneratória, que nossa Lei Maior repudia, em suas limitações ao poder de tributar da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (CF, art. 150, IV).

Ninguém duvida mais da natureza jurídico-tributária da contribuição social em tela (CF, art, 149, caput). De outra banda, o Sistema Tributário Nacional não contempla medida provisória, como instrumento normativo, próprio e regular, de geração de tributos, a não ser em caráter excepcional, observados os pressupostos de urgência e relevância e a atuação extraordinária de natureza legiferante do órgão congressual (CF, art. 62 e respectivo parágrafo único).

Medida Provisória, no regime presidencialista do Brasil, é ato do Príncipe, que só possui validade jurídica quando, em seu uso constitucionalmente mitigado, recebe a pronta acolhida do povo, através de seus representantes no Congresso. Diversos são os efeitos dessa esdrúxula figura no regime parlamentarista da Itália, que a nós brasileiros, quase nada aproveita, em terras onde, costumeira e historicamente, são de "ver-a-cruz".

A hipótese que ora se analisa desborda dos parâmetros constitucionais em vigor.

Ainda que imprestável, como instrumento normativo-tributário, a infeliz Medida Provisória n° 1.723/98 privilegia os Militares Federais e os Agentes Políticos, excluindo-os do raio de sua incidência (arts. 1°, caput e 3°), em visível afronta ao princípio constitucional da isonomia tributária (CF, art. 150,II).

O Príncipe abusa e o Congresso se omite, autorizando, com seu silêncio agressor, as reiteradas edições e reedições de Medidas provisórias, como a que ora se estampa no ordenamento jurídico, com violação frontal do princípio-garantia da legalidade estrita, em seara tributária (CF, art. 150, I ; CTN, art. 97, incisos I a V), olvidando-se de que nossa Lei Suprema lhe impõe o dever de "zelar pela preservação de sua competência legislativa, em face da atribuição normativa dos outros Poderes (CF, art. 49, XI). Com essa postura anticívica , o Congresso Nacional cada vez mais se enfraquece perante o Executivo, dominador e abusivo.

Medida Provisória, iniludivelmente, não é lei (is not law), mas lex in fieri; a legitimar-se no ordenamento jurídico, pelo Congresso Nacional, se observadas as exigências do referido artigo 62 e respectivo parágrafo único da Lei Fundamental.

Não há tributo, sem consentimento popular prévio, através de lei, em sentido pleno, que o estabeleça e, no caso em exame, tal consentimento não houve, nem decerto haverá, por óbice constitucional, intransponível.

Há de ver-se, ainda, que o prazo legal de validade das medida provisórias, excepcionalmente autorizadas na Constituição Federal (art. 62 e respectivo parágrafo único) é improrrogável e fatal. Tais medidas não sobrevivem no mundo jurídico além de trinta dias. Inexiste outorga constitucional para serem reeditadas.

A "convalidação" ou prorrogação no tempo de medidas provisórias caducas, com mais de 30 dias, atenta, em suas sucessivas reedições, contra a norma regular de urgência (45 dias), que nossa Cana Magna reservou à apreciação de projetos de lei de iniciativa do Presidente da República perante as Casas do Congresso Nacional (CF, art. 64, §§ 1° e 2°), afirmando-se a garantia do due process of law.

Sob outro ângulo, a petulante Medida Provisória n° 1.723/98, ao anunciar que entra em vigor na data de sua publicação (art. II), por sua natural precariedade normativa, fere o princípio da anterioridade nonagesimal, a que se reporta o parágrafo 6° do art. 195 da Constituição Federal.

A contribuição tributária, que se pretende impor ao servidor inativo, por força da viciada Medida Provisória n° 1.723/98, não encontra amparo, também, no artigo 195, I a III, nem no parágrafo 6° do art. 40 da Cana Magna, posto que, nos dispositivos citados, não se elege o aposentado como contribuinte do custeio de aposentadorias e pensões, mas o servidor, na forma da lei.

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A Lei n° 8.112/90 define o servidor, como sendo a pessoa legalmente investida em cargo público (art. 2°). Ora, ninguém, mentalmente são, ousaria afirmar que o aposentado ainda é servidor. Já o fora e, por tudo que fez (ou não fez), mas, de qualquer modo, tendo contribuído, na forma legal, para custear sua aposentadoria, quando em atividade, deve, agora, colher os frutos dessa contribuição, como um direito social do inativo. Em sentido contrário, a aposentadoria não seria um prêmio legal, como direito do trabalhador (CF, art. 7°, XXIV), mas um cruel castigo, como, de resto, tem sido, nos redemoinhos dos sucessivos planos salvadores da economia do capitalismo neoliberal, com requintes antropófagos de selvageria tupiniquim.

A Constituição Federal sempre que se refere aos aposentados do serviço público, dispensa-lhes a denominação de servidor público inativo (ADCT, art. 20) ou, simplesmente, inativo (CF, art. 40, § 4°), para distingui-lo do servidor ativo ou, tão-somente, servidor (CF, art. 40, § 6°).

A Emenda Constitucional n° 03/93 ao determinar a reedição do parágrafo 6° do prefalado artigo 40 da Lei Maior, desenganadamente, não contemplou os inativos, mas, os servidores, na forma da lei. O inativo já não é servidor, porque deixou o serviço público, com a aposentadoria.

Não se cuida, aqui, de questão relacionada, apenas, a regime jurídico do funcionário público, mas, sobretudo, da definição legal de quem deva ser o sujeito passivo de uma determinada relação jurídico - tributária, que, pelo visto, não é o aposentado, como servidor inativo, e, sim, o servidor público, em atividade.

Na hipótese de incidência da contribuição social, em referência, não deve figurar o aposentado, por inexistir outorga constitucional, no ponto.

De ver-se, por último, que a garantia fundamental do direito adquirido (CF, art. 5°, XXXVI), guiada, na aposentadoria, pelo princípio tempus regit actum, não autoriza a tributação em foco sobre os proventos do aposentado, com base na isonomia remuneratória do parágrafo 4° do artigo 40 da Lei Suprema, tendo em vista que a norma, ali, referida não admite aplicação aos inativos, com efeitos negativos da "reformatio in pejus", mas, tão-somente, a interpretação que lhes for favorável, in bonam panem, exatamente, para que a aposentadoria seja usufruida como um direito, conquistado pelo trabalhador, e não como uma pena a ser cumprida, até a morte, pelo infeliz que, durante quase toda a sua vida, serviu ao povo, na oficialidade do Estado.

Tributar os proventos da aposentadoria, com a contribuição compulsória de quem já pagou, na ativa, para obtê-la, como um direito social e de gozo legítimo, será mais um atentado contra a cidadania, a violar um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, na busca de uma sociedade livre, justa e solidária (CF, art. 3°, I) ou, no mínimo, um ato de perversão tributária, a penalizar, sem previsão em lei, a quem praticou, no curso de sua vida, somente atos lícitos, a não merecer castigos, mas o prêmio social do trabalho realizado, que há de ser uma aposentadoria condigna e sem temores.

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Sobre o autor
Antônio Souza Prudente

juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região especialista em Direito Privado e Processo Civil pela USP e em Direito Processual Civil, pelo Conselho da Justiça Federal (CEJ/UnB), mestrando em Direito Público pela AEUDF/UFPE, Professor

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PRUDENTE, Antônio Souza. Tributação aos inativos no holocausto neoliberal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 27, 23 dez. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1449. Acesso em: 22 dez. 2024.

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