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Da inconstitucionalidade da contribuição previdenciária dos servidores inativos

24/06/1998 às 00:00
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A Medida Provisória n° 1.415 de 29 de abril de 1996 e suas reedições, sendo a última em 27 de março de 1998 sob o n° 1.463-24, trouxe em seu art. 7° modificação ao art. 231 da Lei n° 8.112/90 instituindo como contribuintes da seguridade social além dos servidores ativos os inativos, igualando a contribuição mensal sobre os proventos destes às mesmas alíquotas dos servidores em atividade (§ 3°). Devido a sua inconstitucionalidade, a Medida Provisória original e suas reedições trouxeram uma enxurrada de ações no âmbito da Justiça Federal visando proteger o aposentado federal de mais este ataque a sua dignidade. Vejamos a seguir os principais pontos de incompatibilidade com a Carta Magna que a modificação acarreta:


1 - Princípio da Legalidade

Sabe-se, por reiteradas decisões do STF, que a Seguridade Social é custeada por Contribuição Social, que difere em substância do Imposto, quanto à natureza jurídica, tendo grande importância na discussão ora travada para a determinação do artigo constitucional regulador desta nova fonte de custeio. Sendo que para novo Imposto o processo legislativo segue a inteligência do art. 154, I CF/88 determinante da competência residual da União em constituir novos impostos, contanto que não cumulativos, por meio Lei Complementar. No caso da Contribuição Social devemos nos guiar pelo art. 195 § 4°, o qual dita que a seguridade social será financiada através de várias contribuições das mais diferentes camadas da sociedade, inclusive pelos trabalhadores (inciso II). E que a criação de nova fonte de custeio será instituída da seguinte maneira, in verbis :

"§ 4° - A lei poderá instituir outras fontes destinadas a garantir a manutenção ou expansão da seguridade social, obedecido o disposto no art. 154, I"

Percebe-se imediatamente a comunicação com o art. 154, I; porém somente no que diz respeito aos critérios da não cumulatividade e da não coincidência de base de cálculo ou fato gerador aos preexistentes. Não tendo a mesma necessidade de lei complementar, mas especifica o legislador a necessidade de lei.

Superado este primeiro ponto, vejamos a incompatibilidade da Medida Provisória como processo legislativo para a instituição de nova fonte de custeio da seguridade social.

A Medida Provisória tem caráter de excepcionalidade que deve ser editada somente em urgência e relevância, e contando que estes conceitos são bastante fluídos na doutrina nacional, deve-se ter atenção que a urgência ditada pela Constituição deve ser especialíssima em se percebendo a possibilidade do Presidente da República de pedir urgência na tramitação de projeto de lei de sua iniciativa nas Casas Legislativas (art. 64, § 1°), além do que a relevância deve ser maior que a comum, visto que todas as matérias legislativas presumem-se relevantes.

Ademais, as Medidas Provisórias são bastante diferentes das leis, e isto não só pelo órgão que a expede, mas também porque elas têm força de lei, ou seja, a Constituição não as equiparou com a lei ordinária seguidora do processo legislativo comum, e que permite ampla discussão dos legisladores, e deu-lhe apenas força de lei para fazê-la coercitiva e obrigatória aos a ela submetidos, não se pode querer compará-las à lei ordinária, pois se assim o fosse o legislador constitucional teria dito expressamente e não se utilizado da expressão : força de lei (a hermenêutica constitucional é da interpretação sistemática, e olhando o sistema constitucional não há igualdade na hierarquia legislativa entre Medida Provisória e Lei). Isso sem contar a precariedade que reveste a Medida Provisória, haja visto, a necessidade de convalidação de outro Poder.

Outro grande problema da edição da Medida Provisória como instrumento de instituição de nova fonte de custeio da seguridade social é a sua vida curtíssima, pois já determinado na própria Constituição o seu prazo de validade, não tendo como a lei ordinária a perpetuidade de suas determinações. Isto causa uma situação problemática, pois a Medida Provisória perdendo sua eficácia, ou seja, não sendo convalidada retornam os atos a data de sua edição(efeito ex tunc). A situação seria facilmente resolvida se a Presidência da República não reeditasse a Medida Provisória não convalidada, porém com a reedição ela perpetua uma situação esdrúxula no mundo jurídico, amesquinhando o Princípio da Segurança Jurídica (art. 5, XXXVI) do cidadão que não sabe mais a que Medida Provisória se insurgir.

Resumindo, a Medida Provisória com suas particularidades e imperfeições não é método democrático e, para agradar os positivistas, o processo constitucional regular para a adoção de nova fonte de custeio da seguridade social. A imposição de encargo sobre os proventos dos inativos deve ser, se conseguisse se superar os outros problemas que abaixo demonstra-se, precedida por ampla discussão no âmbito das Casas Legislativas seguida de votação vencendo a maioria simples. A grande diferença da instituição por Medida Provisória e por Lei Ordinária, abstraindo a tecnicidade da questão, é que o processo legislativo concede aos cidadãos a possibilidade de intervenção no resultado através de suas organizações civis, pressionando os legisladores para atenderem a seu pedidos.


2 - Princípio da Anterioridade Nonagesimal

A questão da imposição de novo tributo no Brasil segue a regra de só ser possível sua exigibilidade pela Administração Pública no exercício seguinte a sua regular instituição. Isto sem dúvida previne o contribuinte de ver-se de uma hora para outra surpreendido com nova carga tributária, podendo no caso dos empresários, exempli gratia, preparar o caixa de suas empresas para as novas regras. Porém, no caso da Contribuição Social há uma especialidade inscrita no art. 195, § 6°, in verbis:

"§ 6° - As contribuições sociais de que trata este artigo só poderá ser criado, após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado, não se lhes aplicando o disposto no art. 150, III, b"

Isto posto, vamos a algumas simples considerações de caráter algébrico. A Medida Provisória tem, como já dito, "prazo de vida" de 30 dias sendo que a sua não conversão em lei acarreta sua retirada do mundo jurídico retornando os atos praticados sob sua égide ao status quo ante. Porém, no caso de regulamentação de Contribuição Social por Medida Provisória nunca será possível sua cobrança, uma vez que tem que respeitar o prazo nonagesimal constitucional, ou seja, a Medida Provisória sempre perderá sua validade antes que efetivamente possa ser colocada em prática.

E acrescente-se em nada adiantaria a reedição da Medida Provisória que inspirou o prazo de validade, pois a edição de nova Medida Provisória, mesmo que convalide integralmente a anterior, não tem o condão de manter a contagem do prazo de noventa dias para a cobrança da nova Contribuição Social. Além do mais, argumentando-se agora com a aceitação da manutenção da contagem do prazo pela reedição da Medida Provisória, seria no mínimo incompatível com o Princípio da Razoabilidade, isto só para citar este princípio, esperar-se a edição de três reedições para que só então se pudesse cobrar a contribuição. Lembre-se também que ter-se-ia, para manter a cobrança, continuar reeditando indefinidas vezes a Medida Provisória.

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3 - Direito Adquirido e do Ato Jurídico Perfeito

O art. 5°, XXXVI CF/88 garante ao cidadão a proteção do Direito Adquirido e do Ato Jurídico Perfeito, o primeiro é um direito que "se incorporou definitivamente ao patrimônio e à personalidade de seu titular, de modo que nem lei nem fato posterior possa alterar tal situação jurídica, pois há direito concreto, ou seja, direito subjetivo e não direito potencial ou abstrato", ou seja, já se consubstanciou nas mãos do adquirente à totalidade do direito. O segundo caracteriza-se pela impossibilidade de turbação de ato jurídico que se consumou no tempo, segundo a norma vigente, e que cumpriu todos os requisitos estabelecidos para a sua realização, no caso do inativo o cumprimento do tempo de serviço predeterminado, o pedido formal de aposentadoria e o deferimento pelo órgão administrativo a que se ligue o servidor. Desta forma estar-se-á produzindo seus efeitos jurídicos e efetivamente exercendo o direito perfeito e completo e seguro constitucionalmente contra qualquer fato posterior que atente contra sua integridade enquanto ato jurídico. Como complementaridade ao dito sobre Ato Jurídico Perfeito e Direito Adquirido vejamos os §§ 1° e 2° do art. 6° da Lei de Introdução ao Código Civil, ipsis litteris :

"§ 1° - Reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou.

§ 2° - Consideram-se adquiridos assim os direitos que o seu titular, ou alguém por ele, possa exercer, como aqueles cujo começo do exercício tenha termo pré-fixo, ou condição preestabelecida inalterável, a arbítrio de outrem"

Tomando estes parâmetros de avaliação vemos a incompatibilidade da Medida Provisória instituidora da contribuição social dos inativos, pois ela vem modificar o valor dos proventos a ser recebido pelo inativo, ferindo a norma constitucional diretamente. Com a inclusão do inativo como contribuinte à seguridade social ataca-se o seu direito de receber os proventos da aposentadoria e estabelece-se relação direta de oposição entre a Medida Provisória e o Direito Adquirido e o Ato Jurídico Perfeito. Sobre o assunto o Supremo Tribunal Federal assim sumulou, in verbis:

"Súmula n° 359 - Ressalvada a revisão prevista em lei, os proventos da inatividade regulam-se pela lei vigente ao tempo em que o militar, ou servidor civil, reuniu os requisitos necessários, inclusive a apresentação do requerimento, quando a inatividade for voluntária"

Não cabe pelo que se vê qualquer alegação que convalide a instituição do inativo como contribuinte da seguridade social. Ora, se a aposentadoria é um prêmio ao servidor por ter dedicado grande parte de sua vida aos serviços públicos, não se pode por uma questão de melhorar o caixa da seguridade social querer-se prejudicar diretamente os servidores inativos que já deram sua contribuição para a Administração Pública nos mais variados setores.


4 - Irredutibilidade de Vencimentos

Como último ponto nesse estudo sobre a inconstitucionalidade do art. 7° da Medida Provisória vejamos o art. 194, parágrafo único, inciso IV, verbis ad verbum :

"Art.194 - omissis

Parágrafo único - Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos :

IV - irredutibilidade do valor dos benefícios."

Não muito se precisa dizer sobre o assunto devido à clareza com que o nexo de causalidade da instituição da contribuição social dos inativos estabelece com este inciso. A irredutibilidade deve ser entendida como um ponto basilar da organização da Seguridade Social, atribuindo-lhe confiabilidade, pois se diferente o fosse qual seria o servidor que, de bom grado, optaria por contribuir com parte de seus vencimentos para ela se no final, quando deveria ter o direito de perceber os benefícios da aposentadoria, pudesse ser ceifado de tal vencimento, no todo ou em parte, por fato posterior ao "acordo" prévio entre ele e a Seguridade Social.



5 - Conclusão

Conclui-se que a instituição de nova fonte de custeio para a Seguridade Social através da tributação dos proventos da aposentadoria é inconstitucional por ferir vários dos princípios constitucionais. À luz da Ciência do Direito não há como aceitar-se que a caneta de um homem possa prejudicar tantos que deveriam estar resguardados pela Constituição Cidadã e que, no entanto, vêem-se incapazes de reagir a tantos mandos e desmandos da Administração Federal que através do desvirtuamento do instituto da Medida Provisória vem governando o país a sua vontade, com a irritante passividade do Congresso Nacional, Poder com força suficiente para restabelecer a ordem federativa. Não se poupe também de críticas o Supremo Tribunal Federal que como protetor da Constituição tem se mostrado ineficiente às mostras de autoritarismo e centralismo do Poder Executivo.

A continuar esta situação o texto da Constituição sempre mostrar-se-á inútil perante a sociedade já tão incrédula da legitimidade com que os seus governantes utilizam-se das prerrogativas a eles concedidas por Lei. Não se pode aceitar este estado de coisas, a Medida Provisória não pode ser mais uma saída fácil para o Governo Federal para estabilizar o orçamento ou equilibrar a balança de pagamentos. A Medida Provisória é instrumento de uso excepcional que deve ser utilizado somente nos casos descritos na Constituição, no mais o desvio de poder surge, com ele os atentados aos direitos individuais e daí a menor confiança da população nos seus governantes é um passo já dado.



BIBLIOGRAFIA

1- Bussada, Wilson. Súmulas do Supremo Tribunal Federal : acórdãos de origem & sentenças decorrentes, vol. II, São Paulo : Jurídica Brasileira, 1994.
2 - Diniz, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, 2° ed. atual. e aum., São Paulo : Saraiva, 1996.
3 - Silva, José Afonso da Silva. Curso de Direito constitucional Positivo, 6° ed. ver. e amp., São Paulo : Revista dos tribunais, 1990.
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Sobre o autor
Luiz Alberto Rocha

professor de Direito em Belém (PA)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Luiz Alberto. Da inconstitucionalidade da contribuição previdenciária dos servidores inativos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 3, n. 25, 24 jun. 1998. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1451. Acesso em: 26 abr. 2024.

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