A proteção dos direitos fundamentais, por muito tempo, foi concebida somente dentro dos limites de cada Estado soberano. Porém, quando as relações internacionais se intensificaram e os Estados romperam as barreiras jurídicas que os prendiam ao clássico conceito de soberania, foi possível coexistir um sistema de proteção dos direitos fundamentais com o sistema de proteção internacional dos direitos do homem.
O discurso sobre a universalização dos direitos humanos deflagrou-se no pós-guerra, quando a comunidade internacional passou a reconhecer que a proteção dos direitos humanos constitui questão de legítimo interesse e preocupação internacional.
No Brasil, a Constituição Federal de 1988 foi um marco jurídico da transição democrática e da institucionalização dos direitos humanos, sendo ainda a nossa primeira Carta a elencar o princípio da prevalência dos direitos humanos como princípio fundamental a reger o Estado nas relações internacionais (art. 4º, II).
Em 1992, nosso país ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como o Pacto de San José da Costa Rica, e, em 1998, houve o reconhecimento da jurisdição da Corte Interamericana, órgão previsto naquela Convenção com competência para julgar os Estados-partes por violações de direitos humanos.
A primeira condenação do Estado Brasileiro pela Corte Interamericana foi em 2006, no Caso Damião Ximenes Lopes, o que sugeriu a oportunidade de se pesquisar os mecanismos possíveis de cumprimento das sentenças proferidas por este órgão internacional.
Tudo começou em 22 de novembro de 1999, quando a brasileira Irene Ximenes Lopes Miranda exerceu seu direito de petição perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, levando ao conhecimento das autoridades internacionais as atrocidades cometidas contra seu irmão Damião Ximenes Lopes, que culminaram com sua morte dentro de uma clínica psiquiátrica em Sobral-CE.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão também criado pelo Pacto de San José com competência para examinar as comunicações encaminhadas por indivíduos ou entidades não-governamentais contendo violação de direito humano por um Estado-parte.
Nesse sentido, foi a denúncia de Irene, que alegou culpa do Estado Brasileiro pela morte de seu irmão, uma vez que a clínica em que ele foi internado prestava serviços públicos pelo SUS – Sistema Único de Saúde, além de ser injustificável a demora na prestação judicial e omissão na condução da investigação dos fatos.
Em regra, ao receber a denúncia, a Comissão decide sobre sua admissibilidade, solicita informações ao governo denunciado e, se entender necessário, pode ainda encaminhar o caso para julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Vale lembrar que somente a Comissão e os próprios Estados-partes possuem legitimidade para encaminhar um caso à Corte, que é formada por sete juízes indicados pelos Estados-membros da OEA – Organização dos Estados Americanos. Sua competência contenciosa deriva de declaração específica reconhecendo-a, o que foi feito pelo Brasil mediante o Decreto Legislativo nº 89, de 3 de dezembro de 1998.
Após longa análise do caso de Damião Ximenes Lopes (caso nº 12.237), a Comissão Interamericana o apresentou para julgamento pela Corte em outubro de 2002.
Verificou-se que Damião fora vítima de maus tratos e tortura que o levaram à morte dentro de uma clínica psiquiátrica conveniada ao SUS onde estava internado para tratamento. Somada a essa barbárie, foi constatada a lentidão da Justiça Brasileira no desfecho dos processos civil e criminal que, após sete anos depois do ocorrido, ainda não haviam sido concluídos.
Sendo assim, o Brasil acabou sendo condenado por violação dos direitos consagrados nos artigos 4º (direito à vida), 5º (direito à integridade pessoal), 8º (direito às garantias judiciais) e 25 (direito à proteção judicial) do Pacto de San José.
Esta sentença impôs ao Brasil a obrigação de pagar uma indenização aos familiares da vítima, além de condená-lo às medidas de não repetição, realizando programas de capacitação para os profissionais de atendimento psiquiátrico do SUS, dentre outras políticas públicas, a fim de se evitar a ocorrência de fatos similares no futuro.
A Corte Interamericana tem construído sólida jurisprudência no sentido de se distinguir reparações e indenizações no sentido de que a primeira constitui gênero e a segunda espécie. Assim, costuma utilizar o conceito de reparação integral que contempla os seguintes elementos: a) garantia de não repetição (o Estado deve assegurar que os atos lesivos não se repetirão); b) obrigação de investigar os fatos e sancionar os responsáveis (trata-se de medida que exige o devido processo legal e o tempo razoável para o seu desfecho); c) reparação material de natureza pecuniária e simbólica (indenização).
É sabido que a natureza dos direitos protegidos e reconhecidos por uma sentença da Corte já é motivo bastante para que o Estado brasileiro busque mecanismos que assegurem a efetividade da tutela jurisdicional deferida e não interponha obstáculos que possam significar, em última instância, a negação da própria justiça.
No entanto, o Brasil ainda não se posicionou legalmente sobre a forma de cumprimento das decisões da Corte, apesar de já ter sido condenado novamente e ainda existirem outros processos em trâmite contra nosso país para serem julgados.
A despeito da falta de legislação interna orientando a forma a ser seguida, o Estado Brasileiro não se furtou ao cumprimento das sentenças condenatórias da Corte.
Em relação às políticas públicas que devem ser implementadas pelo Estado como "medida de não-repetição", no caso específico de Damião Ximenes Lopes, algumas foram adotadas e reconhecidas na própria sentença, com destaque para a aprovação da Lei nº 10.216/2001, a Lei da Reforma Psiquiátrica.
Não obstante, a Corte reiterou a necessidade de o Estado brasileiro continuar desenvolvendo um programa de formação e capacitação de médicos psiquiatras, psicólogos, enfermeiros, auxiliares de enfermaria e todo o pessoal vinculado à prestação do serviço público de saúde mental.
Ainda no caso de Damião, em relação à indenização pecuniária a ser paga pelo governo brasileiro, foi editado um Decreto (nº 6.185/2007) autorizando a Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República a dar cumprimento à sentença exarada pela Corte Interamericana, considerando a criação prévia de uma rubrica orçamentária "para pagamento de indenização a vítimas de violações das obrigações contraídas pela União por meio de adesão a tratados internacionais de proteção de direitos humanos".
Assim dispôs referido Decreto:
, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da Constituição, eO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Considerando a sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Damião Ximenes Lopes;
Considerando a existência de previsão orçamentária para pagamento de indenização a vítimas de violação das obrigações contraídas pela União por meio da adesão a tratados internacionais de proteção dos direitos humanos;
DECRETA:
Art. 1º Fica autorizada a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República a promover as gestões necessárias ao cumprimento da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, expedida em 4 de julho de 2006, referente ao caso Damião Ximenes Lopes, em especial a indenização pelas violações dos direitos humanos aos familiares ou a quem de direito couber, na forma do Anexo a este Decreto.
E, desta forma, foi dado cumprimento à sentença internacional proferida pela Corte Interamericana, sem muito questionamento jurídico acerca do procedimento adotado pelo governo brasileiro, até mesmo porque se estava diante de uma lacuna legislativa sem precedentes para orientar a Administração Pública quanto ao seu modo de agir.
Ocorre que o Brasil já conhecia o artigo 68.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, o qual dispõe que a indenização fixada na sentença da Corte poderá ser executada no país respectivo pelo processo interno vigente para a execução de sentenças contra o Estado.
Isso significa que a parte da sentença que determinar o pagamento de reparações pode ser executada no país segundo o processo interno vigente para a execução de sentenças contra a Fazenda Pública.
Tal afirmativa nos conduz ao entendimento de que a indenização pecuniária fixada pela Corte Interamericana poderia ter sido executada nos moldes do artigo 100 da Constituição Federal, que dispõe sobre o pagamento por precatórios pelo Estado quando este é condenado judicialmente.
Convém observar que as sentenças da Corte são sentenças equiparadas à sentença nacional e não se confundem com a sentença estrangeira, assim considerada aquela proferida por autoridade de outro país e que, para ter força executória no Brasil, deve passar pelo crivo do Superior Tribunal de Justiça (artigo 105, I, i, CF).
A homologação de sentenças estrangeiras decorre do princípio costumeiro internacional que desobriga o Estado a reconhecer decisões emanadas de outras soberanias. O procedimento perante o STJ objetiva certificar que a sentença estrangeira não ofende a soberania nacional nem a ordem pública e que se reveste dos requisitos extrínsecos indispensáveis à sua homologação.
Diferente é a situação da sentença internacional. Tendo em conta que o tribunal internacional profere sentenças por força de um tratado assinado e ratificado pelo Estado-parte, em que este transferiu parcela do seu poder de imperium quando se sujeitou à jurisdição daquele, não há que se falar em desrespeito à autonomia e à exclusividade da jurisdição do Poder Judiciário brasileiro ao acatar tal decisão sem necessidade de homologação.
Dessa forma, quando o Brasil ratificou a Convenção Americana, e especialmente quando reconheceu a competência da Corte em 1998, igualmente transferiu parte do seu imperium para aquele tribunal. Nesse sentido, pode-se afirmar que suas decisões não necessitam de homologação na ordem interna [01].
A partir dessa conclusão, o procedimento a ser adotado para o pagamento das indenizações fixadas pela Corte parece ser indubitável.
O sistema dos precatórios surgiu com a Constituição de 1934 no intuito de moralizar os pagamentos feitos sem critério pelo Estado. O sistema utilizado até então, de submissão aleatória ao Congresso Nacional das sentenças judiciais condenatórias do erário, estimulava uma advocacia administrativa que favorecia o pagamento de certos créditos em detrimento de outros [02].
Na Constituição de 1988, o precatório está previsto como sistema especial de pagamento pela Fazenda Pública, até hoje associado à idéia de moralidade da Administração.
Esse modelo de realização de pagamentos devidos pela Fazenda em virtude de sentença judiciária enfatiza a isonomia entre os credores e o princípio da impessoalidade, impedindo qualquer espécie de favorecimento, seja por razões políticas, seja por razões pessoais [03].
Sobre o sistema de pagamentos por precatórios, elucidou Pontes de Miranda: "Não digamos que seja perfeito. Reconheçamos-lhe a juridicidade e a eticidade dos seus propósitos" [04].
De fato, já decidiu o STF que "a norma consubstanciada no art. 100 da Carta Política traduz um dos mais expressivos postulados realizadores do princípio da igualdade, pois busca conferir, na concreção do seu alcance, efetividade à exigência constitucional de tratamento isonômico dos credores do Estado" [05].
Além do mais, a Constituição Federal adota a regra da ordem dupla de precatórios, que consiste na observância cronológica das requisições judiciais de pagamento de créditos de natureza alimentícia, que detêm preferência, e de créditos de outras naturezas, de forma paralela.
No caso das indenizações fixadas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, deveriam ser consideradas como créditos de natureza alimentícia, nos termos da nova redação dada pela Emenda Constitucional nº 62/2009 ao art. 100, §1º.
Dentre os poucos doutrinadores que já enfrentaram o tema, pode-se citar André de Carvalho Ramos [06], que, ao interpretar o art. 68.2 da Convenção, conclui pela via única do processo de execução contra a Fazenda Pública, nos termos do artigo 100 da Constituição Federal e dos artigos 730 e 731 do Código de Processo Civil.
Porém, há quem discorde do uso do precatório para o pagamento de uma indenização imposta por corte internacional, mais pela sua morosidade do que por seu senso de justiça.
Realmente, ao ratificar o Pacto de San José, o Brasil assumiu o dever de adequar seu ordenamento jurídico à normativa internacional (artigo 2º) e também a isso se soma a vedação de invocar questões de ordem interna para descumprir ou cumprir imperfeitamente as decisões de uma Corte Internacional, como referido no art. 27 da Convenção de Viena sobre os tratados.
No entanto, até o momento não houve um posicionamento do Congresso Nacional sobre a forma de execução dessas decisões a nível interno, gerando incertezas e inseguranças jurídicas.
Não disciplinar a forma de execução das sentenças da Corte Interamericana é deixar nosso país totalmente à mercê do acaso, o que não condiz com um tratamento sério e despolitizado que se atribui aos Direitos Humanos.
Ante a atual situação, é latente a necessidade de uma emenda constitucional ou mesmo legislação disciplinando o tema, ou continuaremos em um campo rico para as interpretações e manobras jurídicas, o que, apesar das boas intenções, pode não estar alcançando o ideal de justiça: tratar os iguais de maneira igual, dando a cada um o que é seu.
Somente deste modo o Brasil estará fortalecendo a jurisdicionalidade atribuída à Corte Interamericana, o que demonstra maior respeito às suas decisões, uma vez que equiparadas às sentenças nacionais contra a Fazenda Pública, e o mais importante: representará maior respeito aos direitos humanos.
BIBLIOGRAFIA
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Notas
- PETIOT, Patrick. A responsabilidade internacional do Estado brasileiro por violação de direitos humanos: o pagamento de reparações, Dissertação para obtenção do título de mestre pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília - UnB, Brasília, 2005, p. 169.
- PETIOT, Patrick. Op. cit., p. 130-131.
- MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 15ª ed., São Paulo: Editora Atlas, p. 509.
- Apud PETIOT, Patrick. Op. cit., p. 132.
- STF – Pleno – ADIN nº 584/PR – Medida Cautela – rel. Min. Celso de Mello, Diário da Justiça, Seção I, 22 de maio de 1992, p. 7.213.
- RAMOS, André de Carvalho. Direitos Humanos em juízo, São Paulo: Max Limonad, 2001.