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O caso dos crucifixos: um jeitinho alemão

18/03/2010 às 00:00
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A ponderação de princípios, como modalidade de resolução de (aparente) conflito entre garantias fundamentais (em contraposição à subsunção das regras) leva em consideração o peso relativo de cada um em determinado caso concreto, não ocorrendo a revogação de um pela aplicação do outro. Ainda, pode ocorrer que mais de uma garantia incida concomitantemente, produzindo parcialmente seus efeitos jurídicos.

Na Alemanha, a mesma situação gerou interpretações diferentes pelo Tribunal Constitucional Federal, diante de valores constitucionais distintos utilizados para resolver o conflito.

Em 1991, os pais de uma aluna de escola pública na cidade de Bruckmuehl, no Estado da Baviera (ou Bayern), postularam à direção a retirada de crucifixos existentes nas salas de aula. Por serem ateus, entendiam que sua filha, com 10 anos de idade, deveria ser educada na maior neutralidade possível, sem ideologias ou religiões.

Diante da negativa da escola, buscou-se uma solução judicial para o assunto. Inicialmente, o Tribunal Administrativo de Regensburg manteve a decisão da escola de permanecer com os crucifixos sobre os quadros-negros.

Porém, em 10 de agosto de 1995, o Tribunal Constitucional Federal concluiu (por 5x3 votos) que a instalação de crucifixos nas salas de aula das escolas públicas contraria o art. 4º, § 1º, da Constituição alemã: "A liberdade de crença, consciência e a liberdade de confissão religiosa e ideológica são invioláveis". Na interpretação do tribunal, a Constituição confere tanto a liberdade de se ter uma religião, quanto a de não seguir nenhuma (liberdade religiosa negativa). Portanto, a inclusão de crucifixos nas escolas públicos força todos os alunos a terem contato com símbolos que não necessariamente condizem com sua opção individual, e opõe-se a essa liberdade constitucional.

A Baviera é o segundo Estado mais populoso da Alemanha, com aproximadamente 12 milhões de habitantes, de maioria católica. Historicamente, a região sempre teve tradição religiosa, inclusive se envolvendo na Guerra dos Trinta Anos contra os protestantes a partir de 1618.

Todavia, não reflete a opinião da maioria do país: em pesquisa realizada no ano de 2007, verificou-se que 56% da população alemã é contrária à conservação de crucifixos nas escolas. Entre os católicos, a questão também é praticamente dividida, pois apenas 56% declararam ser favoráveis à manutenção.


O "Jeitinho" Alemão

A despeito disso, a decisão da Corte Constitucional alemã gerou grande debate na região e no país, acerca dos limites da separação entre Estado e Igreja, com políticos como Edmund Stoiber (governador da Bavária) e Helmut Kohl (chefe de governo do país) se opondo abertamente à decisão judicial.

A fim de contornar o julgamento, e manter a tradição cristã nas escolas, o legislativo estadual da Bavária propôs, em 12 de setembro de 1995 (32 dias após a decisão), e pouco tempo depois aprovou uma lei prevendo que as escolas estaduais devem (e não só podem) ter crucifixos nas salas de aula, considerando a maioria católica, os valores cristãos na educação e por constituírem uma expressão das tradições culturais da Bavária.

Desse modo, o "jeitinho" alemão buscou justificar a existência dos crucifixos como uma questão cultural, e não religiosa, logo, não afronta a Constituição.

Evidentemente o caso voltou a ser discutido judicialmente. Contudo, em três processos diferentes, julgados no ano de 1997, o Tribunal Constitucional Bávaro, o Tribunal Federal Administrativo e o Tribunal Constitucional Federal entenderam que a lei estadual que previu a instalação de crucifixos nas salas de aula, fundada em razões históricas e culturais da Baviera, é constitucional.

Assim, dois anos após declarar que a imposição dos crucifixos viola a liberdade religiosa negativa, a Corte Constitucional corroborou o "jeitinho" alemão, e permitiu a exposição dos símbolos religiosos nas escolas públicas, por meio de uma ponderação de princípios diferente daquela utilizada no primeiro julgamento (com um valor novo, não discutido anteriormente).

Outros países passaram por discussão semelhante, como a Itália, que possui uma lei de 1920 prevendo a obrigatoriedade dos crucifixos nos colégios. Em 2009, a Corte Europeia de Direitos Humanos declarou a ilegalidade dessa imposição, por entender que viola a liberdade de religião e o pluralismo necessário para a educação e a democracia (o que pode afetar as normas dos outros países da União Europeia, inclusive a Alemanha).

Na Suíça, também em 2009, iniciou-se polêmica discussão sobre a possibilidade – ou não – da construção de minaretes (torres existentes nas mesquitas).

A França, em 2004, proibiu o uso de símbolos e vestimentas religiosas nas escolas públicas (com o objetivo de impedir o uso de burcas), o que ainda gera intensos debates.

Nos Estados Unidos, a Suprema Corte decidiu em 1947 o caso Everson v. Board of Edcation, no qual concluiu que o Estado de Nova Jérsei, ao cobrar um imposto sobre o financiamento do distrito escolar, que era utilizado (entre outros fins) para pagar o transporte escolar de crianças que frequentavam escolas religiosas particulares, não violou a Constituição.


Liberdade Religiosa no Brasil

Diante disso, questiona-se: a obrigação na manutenção de crucifixos em escolas públicas, ou a proibição destes e de outros símbolos e trajes religiosos, ou até mesmo a autorização à sua presença, ao arbítrio da direção escolar, seria possível no Brasil?

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A Constituição brasileira aborda a religião em diversos dispositivos:

No preâmbulo, já se encerra o texto com a expressão "(...) promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil".

Entre as garantias constitucionais, o art. 5º, VI, lista como sendo "(...) inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Trata-se do direito de liberdade de crença, de consciência (ambas de cunho íntimo) e de culto religioso (exteriorização da crença ou da consciência).

Também no art. 5º, os incisos VII e VIII garantem a prestação de assistência religiosa nas entidades civis e militares de internação coletiva (ou seja, em presídios, hospitais, quartéis, etc.), e o direito de escusa de consciência: ninguém pode ser privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.

Ainda, o art. 19, I, estabelece a separação entre Estado e Igreja, ao proibir que União, Estados, Distrito Federal e Municípios criem ou subvencionem cultos religiosos ou igrejas, tampouco atrapalhem o seu funcionamento ou mantenham com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança (permitida somente a colaboração de interesse público, desde que prevista em lei).

O art. 143, § 1º e 2º, permite a prestação de serviço militar alternativo àqueles que alegarem imperativo de consciência (como o decorrente de crença religiosa), e isenta os eclesiásticos do serviço militar obrigatório, em tempo de paz.

O § 1º do art. 210 prevê o ensino religioso como uma disciplina facultativa nas escolas públicas de ensino fundamental, e o art. 226, § 2º, determina que o casamento religioso tem efeito civil.

A discussão sobre a existência de crucifixos em escolas e órgãos públicos não é recente no Brasil, mas passa por períodos variáveis de intensidade dos debates. Atualmente, a controvérsia aumentou em decorrência de ações judiciais sobre o tema.

Em agosto de 2009, a 3ª Vara Federal de São Paulo indeferiu pedido liminar em ação civil pública proposta pelo Ministério Público Federal, para a retirada de símbolos religiosos de órgãos públicos.

O Conselho Nacional de Justiça já decidiu, em quatro pedidos de providência, que a presença de símbolos religiosos em órgãos judiciários não viola a laicidade do Estado.

Provavelmente, da mesma forma que a Corte Constitucional alemã, o STF deverá ser provocado a se manifestar sobre o assunto. Porém, diferentemente daquele país, o nosso Poder Legislativo não se preocupou em debater e regulamentar a questão.

Poderá o caso ser resolvido de modo similar ao da Alemanha, com um "jeitinho" brasileiro, igualmente considerando a manutenção de símbolos religiosos em escolas e outros locais públicos como uma questão cultural, e não somente religiosa?

Destaca-se que a alegação genérica de laicidade do Estado é insuficiente para resolver a questão, pois, como visto, somente impede que os órgãos públicos criem, auxiliem ou impeçam o funcionamento de cultos religiosos ou igrejas (art. 19, I, da Constituição), não vedando a existência de símbolos ou o uso de vestimentas religiosas.

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Sobre o autor
Oscar Valente Cardoso

Professor, Doutor em Direito, Diretor Geral da Escola da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul, Coordenador do Comitê Gestor de Proteção de Dados do TRF da 4a Região, Palestrante, Autor de Livros e Artigos, e Juiz Federal

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Oscar Valente. O caso dos crucifixos: um jeitinho alemão. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2451, 18 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14527. Acesso em: 12 out. 2024.

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