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Aposentados versus Executivo: a emenda inconstitucional

01/12/1999 às 01:00
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Após a goleada sofrida no primeiro tempo, com a histórica decisão do Excelso Pretório, que certamente servirá para calar, por alguns dias, aqueles que não acreditam na independência de nossa mais alta Corte, volta o adversário, com o mesmo técnico e os mesmos jogadores, agora mediante a apresentação de duas propostas de emenda constitucional, para as quais pretende conseguir o apoio de pelo menos três quintos dos deputados e senadores, no intuito de reformar a Constituição Federal e viabilizar a cobrança da contribuição previdenciária dos servidores públicos inativos e dos pensionistas.


Ninguém razoavelmente informado desconhece que não podem ser responsabilizados, os inativos e os pensionistas, pelo propalado deficit nas contas do INSS. Ao contrário, a situação a que hoje chegamos resultou essencialmente do péssimo gerenciamento administrativo, que justiça seja feita não foi privilégio do atual governo, bem como da tradicional fraude, da sonegação oficialmente acobertada e da irresponsável utilização das verbas da previdência para outras finalidades. Ninguém com um mínimo de discernimento pode acreditar que os servidores públicos federais que, com honrosas exceções, trabalharam, contribuíram para a previdência, e se aposentaram, de acordo com as regras então vigentes, são responsáveis pelo alegado " rombo" da previdência. Cálculos atuariais isentos certamente provariam que as contribuições assim recolhidas seriam, normalmente, suficientes para fazer face ao pagamento dessas aposentadorias e pensões, sem que houvesse necessidade de que viesse agora o Governo pretender impor ou cooptar os Governadores, os Partidos e o Congresso Nacional, para a aprovação daquelas normas, francamente inconstitucionais e imorais.

Os aposentados e pensionistas não são também culpados, é claro, pelas medidas inconseqüentemente adotadas, pelo Governo Federal, nos anos noventa, que levaram ao enorme aumento do número de inativos no serviço público federal, bem como ao desemprego generalizado e ao crescimento sem precedentes da economia informal, que não gera receita, mas consome vultosos recursos públicos.

Nos recentes debates a respeito da Emenda Constitucional nº. 20/98 e da Lei nº. 9.783/99, que precederam a histórica decisão do Supremo acima referida, eminentes juristas contribuíram com suas críticas para defender a Constituição dos atentados que contra ela se pretendia perpetrar e para proteger os direitos adquiridos de aposentados e pensionistas, contando tão-somente com a coragem e a independência do Supremo, que mesmo tendo sofrido diversas ameaças, decidiu conforme as normas constitucionais, possibilitando a sobrevivência do Estado de Direito. Mas a vitória não foi definitiva, porque a luta sempre recomeça e os direitos devem ser reconquistados a cada dia. Quem não luta pelos seus direitos, já o dizia Jhering, merece ser pisado como um verme.

Pretender o Executivo, esquecendo que as normas constitucionais são obrigatórias em confronto com qualquer poder estatal discricionário (Crisafulli), atropelar as cláusulas pétreas, para atingir seus descabidos objetivos, através de emenda constitucional, instrumento formalizador da atuação do Congresso como órgão constituinte derivado, cujos poderes são por definição limitados no próprio texto constitucional, seria um renascer dos Atos Institucionais, estes sim juridicamente ilimitados e pior, excluídos da apreciação judicial.

O Congresso Nacional não é órgão constituinte. É órgão legiferante, devendo portanto respeitar as normas constitucionais. A Constituição é o Estatuto do Poder, e suas regras são obrigatórias para o Governo e para os governados, para o Legislativo, para o Executivo e para o Judiciário.

Esperamos sinceramente que o Congresso evite macular irremediavelmente sua tradição de órgão democrático e defensor do Estado de Direito, para que não sejamos obrigados a contar apenas, mais uma vez, com o Supremo, para a defesa de nossa ordem jurídica.

O que o Governo está pretendendo, reformar a Constituição para permitir a cobrança da contribuição previdenciária dos funcionários públicos já aposentados e dos pensionistas, em franco desrespeito à garantia constitucional dos direitos adquiridos, somente seria possível através de um ato revolucionário, ou de um golpe de estado. Melhor que se rasgue a Constituição, porém às claras, através da edição de um Ato Institucional, como em 64, ao em vez de se pretender que o Congresso Nacional aprove essa aberração jurídica, e que o Supremo seja obrigado a considerá-la constitucional, pena de terem os Ministros reduzidos seus estipêndios. Ao menos, pela edição do Ato Institucional, não ficariam enxovalhados o Congresso e o Supremo.

A existência de uma ordem jurídica somente se justifica pela necessidade de Segurança, para que ninguém possa ser, a qualquer momento, despojado de tudo que legalmente amealhou, em toda uma vida, o que exige, evidentemente, o respeito aos direitos adquiridos (CF, art. 5º, inciso XXXVI). Se realmente existe o deficit das contas previdenciárias, não mereceria ele do Governo providências idênticas às adotadas, com proverbial celeridade, em relação à recente crise do sistema financeiro, em vez da pretendida postergação dos requisitos de segurança inerentes ao Estado de Direito?

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Ressalte-se, ainda, que mesmo que a vigente Constituição Federal não proibisse, terminantemente, no § 4º do artigo 60 (cláusulas pétreas), qualquer proposta de emenda tendente (simplesmente tendente) a abolir os direitos e garantias individuais, como aliás inexistia tal proibição em qualquer de nossas Constituições anteriores, é claro que seria a própria negação da ordem jurídica retirar do texto constitucional qualquer desses direitos e garantias.

Não se trata, conforme dito pelos defensores da emenda, de não querer o brasileiro pagar aquilo que o governo exige da coletividade, mesmo porque a vontade do governo deve ser, apenas, a vontade da maioria, e não pode pretender o Governo impor ao funcionalismo ainda maiores sacrifícios, após cinco anos de cortes e de salários congelados. Não podem ser transformados os servidores civis e militares, conforme afirma Carlos Chagas, em réus de crime de lesa-pátria, apontados como responsáveis por todas as desgraças nacionais.

Aliás, também não tem cabimento citar artigo de Decreto do Interventor Magalhães Barata, para justificar o que se quer fazer hoje com os aposentados, a menos que pretenda o Governo Federal editar Atos Institucionais para autorizar a cobrança dessas contribuições previdenciárias, de forma retroativa, ignorando a garantia constitucional da irretroatividade da lei e a proibição de que seja objeto de deliberação qualquer proposta de emenda constitucional tendente (simplesmente tendente, não é preciso que seja expressa) a abolir os direitos e garantias individuais.

Da mesma forma o argumento, que é também do Presidente FHC, de que não é justo que outros paguem para que os aposentados e pensionistas se beneficiem, é completamente falso, porque estes já contribuíram durante 30 ou 35 anos, e ninguém razoavelmente informado desconhece que não podem eles ser responsabilizados pelo propalado deficit nas contas do INSS. Ao contrário, a situação a que hoje chegamos resultou essencialmente do péssimo gerenciamento administrativo, que justiça seja feita não foi privilégio do atual governo, bem como da tradicional fraude, da sonegação oficialmente acobertada e da irresponsável utilização das verbas da previdência para outras finalidades. Assim, o aposentado de hoje é aquele funcionário público que já trabalhou toda a sua vida. Existem exceções, claro, que ninguém desconhece, mas se o funcionário trabalhou e se aposentou, de acordo com as regras então vigentes, não seria justo negar-lhe agora o direito a receber uma aposentadoria digna, correspondente aos vencimentos da atividade, conforme garante a Constituição Federal. E se essa norma for também suprimida, é claro que em breve nenhum aposentado receberá mais do que um salário mínimo. É preciso não esquecer, também, que o funcionário de hoje é o aposentado de amanhã, isso se tiver sorte.

É absurda, assim, a pretensão de atingir retroativamente os funcionários já aposentados e os pensionistas, pela simples aprovação de uma emenda constitucional destinada a produzir efeitos ex tunc.

A Democracia, diz Celso Ribeiro Bastos, em seu Dicionário de Direito Constitucional, é a mobilização da vontade popular, mas feita com respeito aos direitos individuais. Daí porque a grande coincidência entre as expressões Democracia e Estado de Direito. De fato, se descontroladas essas manifestações em massa, o povo pode transformar-se, na mão de prestidigitadores políticos, inescrupulosos, em verdadeiro escravo.


Resta-nos confiar no Congresso Nacional, para que não aprove essas emendas, claramente tendentes a abolir direitos e garantias individuais.(art. 60, § 4º, inciso IV)

Se, mesmo assim, essas emendas forem aprovadas, resta-nos confiar nos juízes e Tribunais, últimos baluartes na defesa do Direito, porque se a reforma da Constituição vulnerar as cláusulas pétreas, os direitos e garantias individuais, se ela atingir as liberdades públicas, o sistema de garantia da pessoa humana, e conseqüentemente a democracia, estará destruído o Estado de Direito, suprimida a Constituição, inviabilizado um governo de leis e implantado um governo do arbítrio.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Fernando. Aposentados versus Executivo: a emenda inconstitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 4, n. 37, 1 dez. 1999. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/1454. Acesso em: 22 dez. 2024.

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Texto elaborado a partir da fusão de artigos do autor, publicados nos jornais O Liberal e A Província

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