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Denúncia anônima virtual: outro passo rumo a um Estado Policial

21/03/2010 às 00:00
Leia nesta página:

"Não se pode permitir a criação de um Estado

Policial no Brasil; estamos vivendo uma

ameaça ao Estado Democrático de Direito".

Ministro Gilmar Mendes.

A delegacia da Polícia Federal (PF) em Foz do Iguaçu criou recentemente um endereço de e-mail para que informações confidenciais possam ser proporcionadas, também, através da internet. Essa medida visa preservar o anonimato de denunciante que encaminhar sua informação para o e-mail da Polícia Federal, com o objetivo claro de ampliar o número de denúncias com a utilização da internet.

É muita clara a intenção da PF de recorrer à internet para ampliar as ferramentas à disposição dos denunciantes anônimos, por isso a utilização no título deste artigo da expressão "denúncia anônima virtual".

São medidas como essa que confirmam o alerta do Ministro Gilmar Mendes de que estamos realmente vivendo uma ameaça ao Estado Democrático de Direito. É clara a tentativa de implementação de um Estado Policial no Brasil, disfarçada por argumentos de combate à criminalidade (a justificativa atual foi "aprimorar o trabalho de combate à criminalidade e ampliar as ferramentas à disposição dos denunciantes").

Não se pode ceder ao discurso do medo! É necessário nos prevenirmos contra esse discurso falacioso, de aplauso fácil e grande comoção popular, pois aos poucos se pretende minar nosso sistema de direitos e garantias individuais consagrados pela Constituição da República de 1988.

Vale lembrar que o Estado Democrático de Direito tem uma dimensão antropocêntrica na medida em que se arrima, fundamentalmente, na dignidade da pessoa humana, sendo que essa dignidade somente será preservada se os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, mencionados na Constituição Federal tiverem o necessário respeito.

E o processo penal serve como efetivo instrumento de garantias dos direitos e liberdades individuais, assegurando os indivíduos contra os atos abusivos do Estado (instrumentalidade). Por este motivo, o processo penal deve passar pelo filtro constitucional e se democratizar, o que se manifesta pelo fortalecimento do sujeito passivo que deixa de ser visto como mero objeto, passando a ocupar uma posição de destaque como parte, com verdadeiros direitos e deveres.

Portanto, é seguro afirmar que o processo penal deve se adequar à Constituição Federal (e não o contrário), pois é um instrumento a serviço da ordem constitucional.

Feitas as devidas ressalvas, é possível constatar que a delação de forma anônima está sujeita a uma instransponível exigência de previsão legal, por configurar em claro sacrifício de direitos fundamentais.

Veja-se que o Código de Processo Penal permite que qualquer do povo delate, mas não faz qualquer menção à possibilidade do anonimato, o que impede essa modalidade espúria de delação de conviver com um processo penal constitucionalizado.

A ausência de previsão legal da possibilidade de utilização da denúncia anônima acarreta na violação ao princípio constitucional da legalidade e do devido processo legal.

Nesse sentido, ensina Paulo Rangel que "a tramitação regular e legal de um processo é a garantia dada ao cidadão de que seus direitos serão respeitados, não sendo admissível nenhuma restrição aos mesmos que não prevista em lei" (RANGEL, Paulo. Direito processual penal –15. Ed. – Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p. 4).

É preciso destacar que a proibição da delação anônima não se confunde com a faculdade que tem o cidadão de levar ao conhecimento da autoridade policial a notícia de um crime.

Deve-se esclarecer que qualquer pessoa do povo que tiver conhecimento da existência de infração penal em que caiba a ação pública, poderá, verbalmente ou por escrito, comunicá-la à autoridade, nos termos do art. 5º, § 3° do Código de Processo Penal (é a chamada delatio criminis, ou seja, comunicação de uma infração penal à autoridade policial feita por terceiro e não pela vítima ou seu representante legal).

Portanto, a delação é mera faculdade e, tanto é assim, que se alguém deixar de fazê-lo não sofrerá nenhuma sanção.

Resta claro que não há previsão legal para a delação anônima, e não existe lacuna, no presente caso, a ser superada pelo recurso à analogia.

Não fosse vedada, o crime de denunciação caluniosa se transformaria em letra morta (art. 339 do Código Penal), pois seria impossível identificar o autor deste crime, incentivando-se, consequentemente, a impunidade.

Para aclarar a questão, veja-se o magistério de Tourinho Filho: "Na verdade, se o nosso Código Penal erigiu à categoria de crime a conduta de todo aquele que dá causa à instauração de investigação policial ou de processo judicial contra alguém, imputando-lhe crime de que o sabe inocente, como poderiam os "denunciados" chamar à responsabilidade o autor da delatio criminis se esta pudesse ser anônima"?

E continua o respeitado doutrinador: "A vingar entendimento diverso, será muito cômodo para os salteadores da honra alheia vomitarem, na calada da noite, à porta das Delegacias, seus informes pérfidos e ignominiosos, de maneira atrevida, seguros, absolutamente seguros, da impunidade" (TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal – 26. Ed. – São Paulo: 2004, p. 222).

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Assim sendo, qualquer do povo pode fazer uma delação, desde que assuma a responsabilidade, identificando-se.

No entanto, não é o que está ocorrendo na prática, em que prevalece a generalização dessa medida (disque-denúncia, Informante Cidadão, entre outros), assumindo verdadeiro caráter de massificação, e, consequentemente, institucionalização.

Não é por outro motivo que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal considera a denúncia anônima como insuficiente para iniciar uma investigação criminal.

Em decisão recente o Min. Celso de Mello (Habeas Corpus 100042/RO) afirmou que as autoridades públicas não podem dar início à investigação penal baseando-se unicamente em denúncia anônima. No tocante às peças apócrifas, afirmou que "não podem ser formalmente incorporadas a procedimentos instaurados pelo Estado, salvo quando forem produzidas pelo acusado ou, ainda, quando constituírem, elas próprias, o corpo de delito".

Em outra oportunidade assim se manifestou o Min. Marco Aurélio, também do Supremo Tribunal Federal: "A se agasalhar a óptica da denúncia anônima, mediante carta apócrifa, ter-se-à aberta a porta à vindita, a atuação voltada tão-somente a prejudicar desafetos, alguém que tenha contrariado interesses" (HC 84827).

E mais uma vez somos presenteados com outra medida que pretende melhorar a captação de denúncias anônimas, em mais um passo rumo à instauração de um Estado Policial no Brasil, e tudo em troca de um suposto maior combate à criminalidade.

Ora, não se pode compactuar com esse incentivo ao denuncismo irresponsável, incompatível com a vida em um Estado Democrático de Direito.

Ante todo o exposto, pode-se afirmar com segurança que não se pode compactuar a devassa na vida das pessoas, tampouco ceder ao discurso do medo.

Resta saber qual o caminho que desejamos seguir.

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Sobre o autor
Diogo Bianchi Fazolo

Advogado do escritório DBF Advocacia, em Foz do Iguaçu (PR).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FAZOLO, Diogo Bianchi. Denúncia anônima virtual: outro passo rumo a um Estado Policial. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2454, 21 mar. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/14547. Acesso em: 22 nov. 2024.

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